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Nações Unidas vivem nos anos 40. Reformas são urgentes

Nações Unidas vivem nos anos 40. Reformas são urgentes

A ONU é o mais próximo que temos de um parlamento mundial e a importância da Assembleia tem crescido à medida que os países de rendimentos mais baixos ficam cada vez mais frustrados por suportarem o peso dos choques globais, sem qualquer decisão efetiva nas soluções.

POR THALIF DEEN

Politicamente, as Nações Unidas têm sido amplamente descritas como um fracasso monumental – com pouco ou nenhum progresso – na resolução de alguns dos conflitos militares e guerras civis passados ​​e em curso no mundo, incluindo Palestina, Saara Ocidental, Caxemira e, mais recentemente, Ucrânia, Iémen, Afeganistão, Síria, Sudão e Myanmar, entre outros.

Ainda assim, para dar ao diabo o que lhe é devido, a ONU fez progressos notáveis ​​no fornecimento de alimentos, abrigo e cuidados médicos a milhões de pessoas envolvidas em conflitos militares, inclusive na Ucrânia, no Sudão, na Síria, na Líbia e na Somália. Terá a ONU gradualmente se transformado em organização de ajuda humanitária, algo como “diplomatas sem fronteiras”?

Quão justas são essas caracterizações?

No encontro de alto nível da 78ª Assembleia Geral da ONU, inaugurada nesta terça-feira (19), as lideranças de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (P5) desapareceram em combate, com ausências notáveis em Nova York, como é o caso da China, da França, do Reino Unido e da Rússia.

O único membro do P5 presente foi o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, segundo a falar no palanque de oradores, atrás do seu homólogo do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que tradicionalmente abre os discursos na Assembleia Geral. Não estará presente o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, o país mais populoso do mundo que, como potência emergente, pretende liderar o Sul global.

Existe uma mensagem escondida para a ONU nessas ausências? A ONU estaria começando a perder a sua utilidade do ponto de vista político e geopolítico?

O Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres, relativizou as ausências antes da abertura da 78.ª Assembleia Geral. Em sua avaliação, a primeira semana de alto nível da Assembleia não é “mais ou menos relevante porque temos ou não um líder de um país”. O importante, sublinhou, “são os compromissos que os governos estão dispostos a assumir em relação aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a muitos outros aspectos nesta semana. Não é uma feira de vaidades, o que importa não é a presença deste ou daquele líder, mas o compromisso do respectivo governo em relação aos objetivos” da Assembleia e das cúpulas que marcam sua primeira semana.

Entretanto, a reforma da ONU, incluindo a revitalização da Assembleia Geral, o aumento do número de membros permanentes do Conselho de Segurança e a falta de empoderamento de gênero nos mais altos escalões da hierarquia da ONU, tem sido debatida durante décadas, mas nenhuma dessas questões decolou. Isso acontecerá um dia?

Em entrevista à IPS, Natalie Samarasinghe (1), Diretora Global de Advocacia da Open Society Foundations, afirma que a mudança é um desafio que a ONU deve enfrentar.

A organização baseia-se no equilíbrio entre princípios e política, prevalecendo os primeiros apenas quando conseguem estar alinhados com os segundos. Tem sido subversivo, apoiando a luta contra o colonialismo e o apartheid, e ajudando os marginalizados a avançar a sua causa através do desenvolvimento e dos direitos humanos.

Ao mesmo tempo, ajudou a manter as estruturas de poder de 1945. Isto se reflete nas prioridades, na programação e no pessoal da ONU. Essa fórmula está mais fraca agora, quando a ONU parece periférica no domínio da paz e da segurança, lutando para coordenar as respostas globais às crises dos últimos anos.

Isso não significa que a organização não possa mudar. A ONU de hoje seria irreconhecível para os seus fundadores: com o seu forte foco no desenvolvimento sustentável, quase quatro vezes o número de Estados-Membros e organismos dedicados a quase todas as dimensões do esforço humano.

A Carta das Nações Unidas não menciona os icônicos capacetes azuis ou a Unicef, talvez a marca mais conhecida da organização, nem alude ao papel do secretário-geral como o principal diplomata do mundo.

O Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) e a Gavi, a aliança multissetorial para a vacinação, inconcebível há sete décadas, são outros exemplos da capacidade da ONU para se adaptar às novas realidades. Contudo, outras partes da Organização parecem congeladas no tempo, principalmente o Conselho de Segurança.

A mudança é possível? É deprimente que a perspectiva de uma mulher Secretária-Geral ainda pareça remota, ou que apenas quatro dos 78 presidentes da Assembleia Geral tenham sido mulheres. Este não deve ser o nosso limite máximo para a reforma, mas sim o nosso piso. Embora na ONU exista a rotação regional de cargos, por que não a rotação de gênero? Essa é uma mudança tão viável quanto necessária.

O Conselho de Segurança, por seu lado, é provavelmente a área com menos espaço de movimento. Mas a sua estagnação – em termos de substância e de reforma – aumentou o desejo de que a Assembleia Geral funcionasse como contrapeso aos clubes exclusivos.

A ONU é o mais próximo que temos de um parlamento mundial e a importância da Assembleia tem crescido à medida que os países de rendimentos mais baixos ficam cada vez mais frustrados por suportarem o peso dos choques globais, sem qualquer decisão efetiva nas soluções.

Isso faz parte de uma tendência mais ampla na ONU que abrange melhorias no processo de seleção do Secretário-Geral em 2016, o sucesso de Liechtenstein em garantir que um veto do Conselho desencadeasse automaticamente um debate na Assembleia, e o mecanismo de investigação da Síria.

A verdadeira ação provavelmente ocorrerá fora de Nova York. Líderes como Biden e Macron parecem ter atendido aos apelos de Mottley, Akufo-Addo e outros para reformar a arquitetura financeira internacional. O G20 em Nova Deli repetiu a linguagem da Iniciativa Bridgetown e da Agenda V20 sobre questões como a dívida e o acesso ao capital.

Tudo isto mostra que podemos ter finalmente chegado a um ponto em que os países mais vulneráveis não mais suportam o status quo, e os mais ricos percebem que a interdependência não é apenas um conceito.

IPS: Barbara Woodward, embaixadora britânica na ONU, sublinhou a ambição do Reino Unido de impulsionar a reforma do sistema multilateral, ao dizer: “Queremos ver os assentos permanentes no Conselho alargados para incluir a Índia, o Brasil, a Alemanha, o Japão e um africano. O processo de modificação da Carta da ONU é tão árduo e longo neste momento?

Natalie Samarasinghe: Mesmo em 1945, a composição do Conselho de Segurança era um compromisso, com membros permanentes e vetos destinados a encorajar as cinco potências da época a agirem como guardiãs da ordem internacional. Essa ilusão foi destruída antes de a tinta da Carta secar, quando a Guerra Fria encerrou a lua-de-mel da organização.

Hoje, o nosso mundo multipolar e polarizado é um tanto caótico. Conflitos de longa data, como os da Palestina e Caxemira, continuam por resolver, enquanto as crises se acumulam: Afeganistão, Etiópia, Haiti, Mianmar, Sudão, Síria, Ucrânia.

Alguns comentadores sustentam frente à agressão desenfreada da Rússia, que não é a primeira vez que um dos cinco membros permanentes (P5) invade um país. Outros têm uma visão reducionista do papel do Conselho de prevenir conflitos entre os P5, em vez de manter a paz e a segurança. Depois de 18 meses de atos genocidas, é difícil não ver isso como um emblema dos fracassos e das limitações da ONU.

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Mesmo nas áreas onde a ONU teve sucesso, ela está enfraquecendo. A maioria das pessoas remonta a duas décadas, na Libéria ou em Serra Leoa, quando lhes é pedido que citem operações de paz bem-sucedidas. Até o seu colapso, o acordo cerealífero do Mar Negro, foi um raro exemplo de mediação bem feita.

Invariavelmente, as discussões sobre como fortalecer a capacidade de paz e segurança da ONU centram-se no Conselho de Segurança. Desde a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, alguns Estados, incluindo os Estados Unidos, tornaram-se mais insistentes na necessidade de mudança. Contudo, o interesse renovado não tornou a reforma mais provável.

Do ponto de vista processual, a reforma exige a modificação da Carta das Nações Unidas. Isto requer a aprovação de dois terços dos membros da Assembleia Geral e a ratificação das suas assembleias legislativas, incluindo as de todos os P5.

Aconteceu apenas uma vez em relação ao Conselho (em 1965, quando o número de membros aumentou de 11 para 15 e o limite de votação aumentou em conformidade). Politicamente, um dos maiores obstáculos é a falta de acordo entre as regiões sobre quem deve obter um assento.

Você pode ler a versão em inglês deste artigo aqui .

A reforma do Conselho é uma conquista que vale a pena prosseguir e que merece mais criatividade, no que diz respeito ao papel das organizações regionais, por exemplo. Mas talvez seja melhor canalizar esta energia para a forma de aproveitar o poder coletivo do sistema da ONU como um todo.

Das sanções às investigações, a Assembleia Geral poderia fazer muito mais em matéria de paz e segurança, nomeadamente com base na proposta do Liechtenstein. A Comissão de Consolidação da Paz também poderia adquirir maior proeminência, por exemplo incorporando atores como instituições financeiras internacionais. E vale a pena estudar como a mediação poderia ser realizada de forma diferente, com mais recursos e um grupo de negociadores mais diversificado.

IPS: As organizações da sociedade civil, OSC, têm desempenhado um papel importante no mandato das Nações Unidas para garantir a paz e a segurança internacionais, proteger os direitos humanos e fornecer ajuda humanitária. A ONU deu às OSC o lugar que lhes cabe?

NS: Mais de 200 organizações da sociedade civil estiveram presentes no nascimento da ONU. A sua presença contribuiu para a referência da Carta aos Direitos Humanos, à igualdade de gênero e à justiça social.

Setenta e oito anos depois, milhares deles afluíram a Nova Iorque para a abertura da Assembleia Geral. Cada dia mais pessoas trabalham com a ONU, à medida que as suas atividades humanitárias e de desenvolvimento se multiplicam. Essas áreas representam hoje mais de 70% de seus recursos e aproximadamente dois terços dele.

Mas muitas OSC trabalham à margem. Apenas uma pequena fração é autorizada a entrar na sede da ONU, enquanto aqueles que estão no terreno enfrentam frequentemente grandes obstáculos à cooperação. Por mais que se fale em parcerias, existe uma situação semelhante para outros intervenientes, desde governos locais até empresas.

Isto ignora que talvez a transformação mais profunda da comunidade internacional nas últimas décadas não tenha sido o realinhamento geopolítico, mas a ascensão de atores não estatais.

Vivemos num mundo onde os lucros do setor privado superam o PIB, onde os movimentos sociais podem mobilizar milhões de pessoas e os influenciadores podem arrecadar milhares de milhões com um único post; onde uma menina sentada na porta da escola com uma placa pode mudar a conversa global. No entanto, o sistema internacional permanece teimosamente centrado no Estado.

Em vez disso, as parcerias deveriam ser a norma. As OSC são essenciais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e enfrentar as alterações climáticas. Prestam ajuda essencial em crises humanitárias e intervêm em zonas de conflito. Defendem aqueles que são ignorados e maltratados e atuam como parceiros e consciência das Nações Unidas.

As suas contribuições devem ser valorizadas e alavancadas através de um defensor de alto nível da sociedade civil, de maiores recursos para grupos de base e de uma estratégia de envolvimento abrangente. À medida que aumentam as preocupações com a legitimidade e o poder, esta estratégia deve incluir uma transferência gradual das funções humanitárias e de desenvolvimento da ONU para os parceiros locais.

Isto promoveria um maior sentido de propriedade, agência e responsabilidade. Também poderia dar nova vida aos ODS. Desse ponto de vista, a ONU ajudaria a aliviar o crescimento insustentável de sua carga de trabalho, e a liberar recursos limitados para miticar a incompatibilidade sobre o terreno de diversas funções que se espera: políticas, humanitárias, de desenvolvimento e de direitos humanos.

É provável que tal medida encontre uma resistência considerável, inclusive por parte da ONU. É mais fácil citar o número de escolas construídas ou de refugiados resgatados como prova de sucesso, especialmente quando as tensões geopolíticas tornam mais desafiadores avançar em áreas como definição de normas e a mediação.

É precisamente nessas áreas em que a ONU é mais necessária. São funções que não podem ser facilmente desempenhadas por outros. Mesmo com duas organizações regionais a bordo, o G20 não é o G193 (dos 193 países membros da ONU). Ela está numa posição única para fazer a diferença e da coordenação de emergência até à solidariedade global.

Esse deveria ser o espírito que orienta os preparativos para a Cúpula do Futuro do próximo ano: uma lista de tarefas realista para a ONU, maior responsabilização para os parceiros e maior ambição para os povos do mundo.


(1) Natalie Samarasinghe também atuou como CEO da Associação das Nações Unidas – Reino Unido, tornando-se a primeira mulher nomeada para essa função; foi redatora dos discursos do 73º Presidente da Assembleia Geral; e chefe de estratégia da iniciativa do 75º aniversário da ONU. Comentadora frequente de questões da ONU, editou publicações sobre desenvolvimento sustentável, alterações climáticas e conflitos; escrito para Routledge e OUP sobre direitos humanos; e co-editou o SAGE Major Work on the UN. Ela também apoiou uma série de coligações da sociedade civil, incluindo a campanha 1 por 7 mil milhões para melhorar o processo de seleção do Secretário-Geral, da qual foi cofundadora. Relatório do Bureau da ONU do IPS.


FOTO DE CAPA

Líderes de estados, empresas e sociedade civil reuniram-se em Nova Iorque para a Cimeira sobre Ambição Climática organizada pelo Secretário-Geral da ONU. © UN News/Anton Upensky


Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.
Tradução: Tatiana Carlotti

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