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Violência genocida contra indígenas no Brasil cresceu com Bolsonaro

Violência genocida contra indígenas no Brasil cresceu com Bolsonaro

O Cimi registrou 795 assassinatos de indígenas em todo o país durante o governo Bolsonaro, contra 500 nos quatro anos anteriores (2015-2018). Esse aumento de 59% contrasta com os 34% do Mato Grosso do Sul, onde passaram de 109 para 146 nos mesmos períodos. O estado continua sendo um dos mais afetados por suicídios, homicídios culposos…

POR MÁRIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – “Os fazendeiros agora estão matando com seus veículos, porque atropelar não é crime, é acidente. Eles seguem a orientação de seus advogados”, alertou Simão Guarani Kaiwoá, sobrevivente de um tiroteio em sua aldeia indígena em 2016.

Dois casais indígenas foram mortos a facadas em julho, apontou ele, como evidência das novas táticas de assassinato sofridas pelos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, estado do centro-oeste do Brasil, especialmente os Guarani.

Simão, que adota o sobrenome de seu povo natal, como é costume entre os indígenas brasileiros, teme uma nova onda de ataques de fazendeiros diante da retomada das demarcações de terras indígenas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no poder desde 1º de janeiro.

Integrante da coordenação da Aty Guasu, a grande assembleia do povo Guarani, e seu representante na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ele falou à IPS por telefone de sua aldeia, Kunumi, no município de Caarapó.

No Mato Grosso do Sul, é menos perceptível o aumento da violência contra os povos indígenas no Brasil promovido pelo governo anterior, presidido pelo ultradireitista Jair Bolsonaro (2019-2022), e retratado em relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado em 26 de julho.

A razão não é positiva: os conflitos e agressões naquele estado são permanentes e custaram muitas vítimas décadas atrás.

O Cimi registrou 795 assassinatos de indígenas em todo o país durante o governo Bolsonaro, contra 500 nos quatro anos anteriores (2015-2018). Esse aumento de 59% contrasta com os 34% do Mato Grosso do Sul, onde passaram de 109 para 146 entre os mesmos períodos.

O estado do centro-oeste continua sendo um dos mais afetados por outros tipos de violência que atingem os indígenas como suicídios, homicídios culposos (que são acidentes), racismo e falta de assistência governamental em saúde e alimentação, pelos dados que o Cimi vem monitorando desde 1994, e sistemática e anualmente desde 2003.

Sonia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas, durante sua aparição perante uma comissão do Congresso Nacional, em Brasília, em maio Seu ministério é uma criação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao retornar ao poder em janeiro, e representa a importância que o governante atribui à política indígena, ao contrário de seu antecessor, o direitista Jair Bolsonaro. Imagem: Lula Marques/ Agência Brasil

Crueldade adicional

“Bolsonaro tornou mais clara a violência do Estado e da sociedade contra os indígenas. Tornou-a mais brutal, cruel, de maldade sem limites”, resumiu Lucia Helena Rangel, antropóloga que coordena os relatórios anuais do Cimi.

Seu governo adotou medidas administrativas destinadas a extinguir a política indigenista prevista na Constituição de 1988, reduzindo o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e retirando a função de demarcação das terras indígenas para transferi-la ao Ministério da Agricultura, regido por interesses opostos.

Mais do que isso, Bolsonaro nomeou pessoas não apenas alheias às questões [indígenas], mas claramente contrárias às suas missões, com muitos soldados e policiais para dirigir a Funai e os órgãos ambientais. Estimulou invasões de terras indígenas por garimpeiros, madeireiros e fazendeiros enquanto apontava a adesão a essas atividades como o único caminho para o futuro dos indígenas.

Era a velha ideia de que eles deviam abandonar o seu modo de vida e “integrar-se na sociedade envolvente ou desaparecer”, mas “os indígenas não querem isso e não estão desaparecendo, mas sim aumentando a sua população”, disse Rangel.

A população indígena no Brasil, que na década de 1980 era estimada em cerca de 250 mil pessoas, vem crescendo rapidamente nos censos nacionais. Em 2010, eram 896,9 mil, e nos dados preliminares do censo de 2022, o número sobe para 1,65 milhão num total populacional de 203,1 milhões. O número de pessoas que agora se identificam como indígenas e não o faziam antes aumentou principalmente.

A ideia da assimilação é rejeitada pela Constituição que, desde 1988, reconhece “a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições” dos indígenas, além dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Um helicóptero do Exército brasileiro leva alimentos para o povo Yanomami em Roraima, estado do extremo norte do Brasil, enquanto transporta doentes para o hospital de Boa Vista, capital do estado, em janeiro deste ano. A invasão do território indígena, ignorada ou mesmo incentivada pelo governo anterior, provocou uma crise sanitária e alimentar entre os Yanomami, com muitas mortes. Imagem: CMA-Public Photos See More

Genocídio

“Não há dúvida de que Bolsonaro, sob seu governo, naturalizou o genocídio”, disse a antropóloga na introdução do relatório, em artigo coescrito com Roberto Liebgott, formado em Filosofia e Direito, e missionário do CIMI no sul do Brasil.

Sua pregação de que os indígenas “têm terras demais e direitos demais”, junto a outras ações políticas e governamentais “libertou” os agentes da violência que compunham o quadro genocida detalhado no relatório, apontou Rangel, por telefone à IPS, de São Paulo.

Além dos 795 assassinatos, nos quatro anos de governo Bolsonaro morreram 3.552 crianças indígenas de até quatro anos, a maioria por causas evitáveis como gripe, pneumonia, desnutrição e diarreia, agravadas pela queda na assistência médica e alimentar nesse período.

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A tragédia ficou mais visível na crise humanitária que eclodiu em janeiro, no extremo norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela. A invasão do território do povo Yanomami por quase 20.000 garimpeiros, como são chamados os garimpeiros ilegais, e a falta de serviços de saúde do estado, causaram dezenas de mortes em 2023, por tiroteio, desnutrição e malária, principalmente entre crianças cujas fotos chocaram o mundo.

Aos 535 suicídios de indígenas, entre 2019 e 2022, somam-se a mortalidade infantil e outras mortes e danos atribuídos à “violência por omissão do poder público” e ao conjunto de “descasos” com saúde, educação, alimentação, judiciário e segurança territorial. O relatório também detalha o aumento da violência sexual, tentativas de assassinato, homicídios aparentemente não intencionais, ameaças e abuso de poder entre outras violências cometidas.

A violência contra o patrimônio indígena, refletida em 158 conflitos territoriais e 309 invasões para extração mineral, madeireira ou pesqueira e para ocupação agrícola, aumentou com a decisão de Bolsonaro de rejeitar a demarcação e a inviolabilidade das terras indígenas.

Lideranças indígenas na sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, em junho deste ano, durante o julgamento da demarcação de terras indígenas, que deve ser retomado em setembro. Os 11 magistrados do mais alto tribunal devem decidir se é válido o “prazo provisório”, pelo qual os indígenas só têm direito às terras que ocuparam em 5 de outubro de 1988, quando foi aprovada a atual Constituição brasileira. Imagem: Nelson Jr./SCO-STF

Conflitos territoriais perenes

Esse é um drama particularmente intenso no Mato Grosso do Sul, devido ao número de áreas em disputa, fazendas legalmente constituídas há muito tempo, em áreas reivindicadas por indígenas, muitos dos quais estão vivendo acampados enquanto aguardam a demarcação das terras onde viviam.

Em junho de 2016, Simão Guarani Kaiwoá após ser baelado no peito e no abdômen, sobreviveu ao ataque de dezenas de homens, armados por fazendeiros, contra o acampamento Tey Kue, que foi montado pelos indígenas nas terras onde viviam antes de serem expulsos e que reivindicam como suas. Sete indígenas foram baleados.

No que ficou conhecido como “Massacre de Caarapó”, nome do município local, Clodiodi Rodrigues de Souza, agente de saúde de 26 anos, morreu após ser baleado no peito.

Seu pai, Leonardo de Souza, posteriormente reagiu contra os policiais que fiscalizaram o local do conflito. Foi acusado de mantê-los reféns e torturá-los. Foi preso e condenado a 18 anos de prisão. “É uma injustiça. Ele não matou, não roubou, mandou matar o filho, mas está condenado a 18 anos de prisão por lutar por seus direitos, enquanto nenhum dos fazendeiros que participaram do massacre está preso”, Kaiowá protestou.

Bolsonaro agravou a situação ao interromper por quatro anos as demarcações de terras e apoiar os latifundiários, explicou.

A demarcação é a fórmula constitucional no Brasil para devolver legalmente as terras ancestrais às comunidades originárias. Já são 496 terras indígenas homologadas, ou seja, com o processo completo.

Este processo inclui estudos antropológicos para certificar a área “tradicionalmente ocupada” por um grupo indígena, audiências com os interessados ​​e a conclusão através da assinatura do Presidente da República, que formaliza a legalização da terra indígena coletiva.

Mas há outras 240 áreas, em diferentes fases de identificação, estudos antropológicos ou trâmites no Ministério da Justiça, antes de chegar à presidência para a ata final. Essa situação fomenta conflitos que se multiplicaram porque o governo Bolsonaro paralisou todos os processos de demarcação, o que agravou a incerteza.

Além disso, está pendente uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre se a restituição de terras deveria ser restrita a um “quadro temporário”, o que limitaria esse direito às terras que estavam em mãos indígenas em 5 de outubro de 1988, quando a lei foi promulgada na atual Constituição.

As tragédias para os indígenas vão além do direito à terra, acontecem antes de Bolsonaro e tendem a se repetir, avalia Kaiowá. “No Mato Grosso do Sul, 10% do território é indígena, mas agora só temos 0,2% e queremos ter pelo menos 2%”, argumenta ao enfatizar que suas reivindicações pouco afetam os fazendeiros. O estado tem um total de 2,75 milhões de habitantes e cerca de 100 mil indígenas.

“Aqui reina o racismo”, definiu o advogado Wilson Matos da Silva, mestiço de Guarani e Terena, os dois povos indígenas mais numerosos do estado.

Há 150 indígenas detidos no estado e mais de 500 mandados de prisão, muitos para uma população tão minoritária, segundo ele. “Muitos estão presos apenas por serem indígenas”, disse à IPS, por telefone, da aldeia Jaguapiru onde mora, em Dourados, município de 243 mil habitantes.

Um exemplo de óbvio “abuso de poder racista” foi a prisão de uma professora indígena, na frente de seus alunos, por causa de uma denúncia infundada, algumas semanas atrás, disse ele.

Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.


FOTO DE CAPA: Participantes do Acampamento Terra Livre, tradicional manifestação indígena anual, que este ano teve como tema a retomada das demarcações de terras indígenas, interrompidas durante os quatro anos do governo do ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

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