A armadilha (parte 1)

A armadilha (parte 1)

As eleições de 2022 deixaram um resultado amargo para os brasileiros, apesar do alíviocom a derrota do energúmeno, e do movimento golpista que resultou no atentado àdemocracia do dia 8 de janeiro.

Este artigo tem a pretensão de descrever o conjunto de dificuldades, melhor dizendo,
de perigos, que ameaçam o governo do presidente Lula. O intrincado quadro em que
atua o novo governo terá, como resultado mais negativo, a possível repetição das
tentativas de golpe, em especial o tipo de golpe hoje mais comum nas democracias
abaladas, o parlamentar, com o afastamento do presidente por impeachment, tal como
ocorreu com a presidente Dilma Roussef. Mas o risco mais provável está na sucessão
presidencial, em 2026. Um fracasso, real ou fabricado midiaticamente na grande
imprensa e nas redes sociais pode levar à eleição de um avatar do energúmeno, que
deve se tornar inelegível se a justiça cumprir o seu papel.

Como os perigos são muitos, o artigo vai se desdobrar em uma série, para tornar a
leitura mais palatável, embora indigesta. No último texto pretendo apontar alguns
caminhos possíveis para garantir a sobrevivência da nossa democracia e evitar outros
quatro anos de destruição do meio ambiente, das relações sociais, da economia e das
instituições, a partir de 2026.

As relações com o Congresso Nacional:

As eleições de 2022 deixaram um resultado amargo para os brasileiros, apesar do alívio
com a derrota do energúmeno, e do movimento golpista que resultou no atentado à
democracia do dia 8 de janeiro.

Lula ganhou por uma margem mínima. A vitória eleitoral foi fundamental para afastar o
perigo maior da permanência de Bolsonaro no poder, mas o preço pago foi enorme.
Por um lado, Lula precisou do apoio de setores que, no passado, estiveram firmes à
frente de todas as tentativas de afastar um governo de esquerda. A grande imprensa
foi decisiva tanto para derrubar a Dilma como foi, agora, para eleger o Lula. Políticos,
empresários e personalidades comprometidos com o impeachment ajudaram a
descartar o energúmeno. Se dependesse apenas das forças progressistas Lula teria
perdido as eleições. Por outro lado, o voto para o Congresso e para os governos
estaduais não acompanhou o voto em Lula para presidente. A direita cresceu de forma
significativa, seja na sua expressão mais fisiológica (voto no centrão), seja na sua
expressão mais ideológica (voto nos candidatos bolsonaristas).

A explicação deste voto, aparentemente esquizofrênico, pode ser encontrada em vários
fatores: o mais importante foi o poder eleitoral do chamado orçamento secreto,
seguindo-se a força das redes sociais, do voto evangélico e da derrama de benesses do
governo com efeitos na base mais empobrecida da população. Ao custo de centenas de
bilhões de reais que mandaram para o espaço o tão valorizado (por empresários e
economistas conservadores) teto de gastos, o voto dos mais pobres, apesar de
ajudarem a eleger Lula, também garantiu uma margem significativa para os candidatos
de direita ao Congresso. Mesmo o voto em Lula nesta categoria foi menor do que o
esperado.

O resultado destas eleições foi a formação do congresso mais a direita no Brasil,
provavelmente desde que os escravagistas perderam a maioria no ocaso do Império.

A bancada progressista, e mesmo este qualificativo tem que ser tomado com uma
pitada de sal, é amplamente minoritária e a direita, seja o centrão fisiológico ou a base
bolsonarista, tem grande poder de fogo. O primeiro efeito deste resultado foi a
manutenção da presidência da Câmara nas mãos de Artur Lira, o cacique que controlou
o orçamento secreto. Lula entendeu que não tinha bala na agulha para peitar este
personagem sinistro e fez um pacto com o diabo. Era o preço para aprovar a PEC dos
gastos sociais para o orçamento de 2023. Esta decisão foi tomada pelo congresso em
fim de exercício e Lira está ainda mais empoderado com a composição daquele que
tomou posse este ano. Lira entrou pesado na definição dos novos poderes na Câmara,
colocando uma maioria de seus pares na Mesa Diretora e em Comissões permanentes,
como a CCJ. Está com todas as cartas na mão e nem precisa de !cartas na manga” para
manipular cada votação. O governo vai penar na mão dele.

A aposta de Lula foi a de compor uma base parlamentar de sustentação, atraindo
partidos da direita para governar com ele. MDB, União Brasil, PSD e outras siglas
menores receberam ministérios e grandes organizações do Estado, como a CODEVASF.
Agora Lira e seus sócios pretendem manter a FUNASA, um dos instrumentos usados no
orçamento secreto para distribuir benesses entre os deputados e senadores. O
loteamento de cargos está emperrado pela resistência do PT e do Lula em entregar
posições importantes. Mas Lira já deu um cheque mate e ameaçou não aprovar
propostas caras ao governo. Depois de uma conversa “íntima”, Lula, aparentemente,
cedeu.

O preço do loteamento é caro. Ministros e dirigentes pouco confiáveis estão em cargos
importantes e mostram uma independência que resvala para a traição, nomeando ou
mantendo bolsonaristas notórios. Os vetos do PT estão se concentrando na rejeição de
lavajatistas e golpistas que se envolveram na derrubada de Dilma, mas os bolsonaristas
sem esta pecha estão abundando no governo. Esta escolha de inimigos me parece mais
eivada de rancor do que de avaliação política. Um lavajatista convicto ou arrependido é
uma ameaça maior ou menor do que um bolsonarista enrustido ou assumido no
governo? É uma luta perdida para a esquerda e as concessões vão se sucedendo.

Entregar ministérios para a direita fisiológica tem um preço em termos de
funcionamento do governo. O que esperar de ministros desta base esdrúxula do atual
governo? Temas importantíssimos como a mudança da matriz de transportes, hoje
centrada nos caminhões, para adotar um sistema intermodal mais racional e
econômico e menos dependente de estradas de rodagem, vão ficar na gaveta. Para o
ministro no cargo importa mais investir em estradas, o que facilita manipulações de
concorrências e acesso a propinas.

O outro preço a pagar está na imagem do governo. Os indicados pelo bloco de Lira
estão sendo apontados como corruptos e prevaricadores pela imprensa, mas seus
partidos simplesmente cobraram de Lula a sua manutenção e ele teve que engolir. Para
a opinião pública estas concessões não são aceitáveis e a imagem do governo vai se
contaminando com a impressão de que temos mais do mesmo, corrupção, nepotismo
e locupletação. E não ajuda nada o fato de que elementos da esquerda também
entraram na dança, com lobbies para colocar familiares em cargos públicos.

Todas estas concessões, entretanto, não são suficientes para garantir a base
parlamentar. Isto se dá porque os partidos da direita, centrão e outros, não tem
qualquer coerência interna. Como a base dos acordos se dá por vantagens individuais
para parlamentares e não por convergência programática partidária, cada deputado
que não se sente contemplado na partilha se posiciona como !independente”, até ficar
satisfeito com alguma benesse. Não duvido que o orçamento secreto vá voltar a existir,
com forma menos escrachada que no passado, permitindo ampliar a compra de
deputados e senadores. O efeito colateral é a corrosão do controle do executivo sobre
a proposição e execução do orçamento, limitando os recursos governamentais para
seus programas sociais e econômicos.

No seu primeiro governo, Lula teve de comprar votos no varejo para ganhar espaço no
congresso. No governo de Dilma, a compra foi no atacado, entregando posições
importantes para ganhar o apoio de partidos fisiológicos. Agora o congresso aprendeu
que tem força para manipular o orçamento em função de seus interesses menores e se
propõe a chantagear o governo em cada votação, com ou sem acordo com as
lideranças da frágil base governamental.

A aposta de Lula é de conseguir grandes realizações apesar de todas estas concessões
ao fisiologismo. É uma espécie de pedágio para poder governar pelo povo. Se der
certo, a opinião pública vai ignorar ou minimizar os inevitáveis escândalos de
corrupção e malversação de recursos públicos e reelegê-lo em 2026. Podem estranhar
esta previsão de uma nova candidatura de Lula, mas não me parece que exista uma
solução eleitoral sem ele. Mesmo um governo bem-sucedido teria dificuldades de
promover um sucessor capaz de capitalizar um bom resultado, repetindo a vitória de
Dilma, quadro menos atraente do que Haddad, por exemplo, mas que carece do
carisma mínimo para o enfrentamento com a direita empoderada. Se os resultados do
governo Lula forem menos do que espetaculares, mesmo o próprio Lula teria
dificuldades para se reeleger. E, lembremos, Lula não é um garoto e a pressão vai ser
insana. Mas deixemos estas especulações para o futuro.

Para resumir, Lula depende de um congresso hostil para aprovar leis essenciais para
que seu governo decole. Mais do que derrubar o teto de gastos, e isto não vai passar
com facilidade no congresso, a proposta chave é a reforma tributária. E Lira já está
mostrando suas garras, tentando colocar em votação uma proposta mínima que não
altera o quadro fiscal regressivo que caracteriza a situação atual. A gritaria contra uma
eventual elevação de impostos para os mais ricos, cobrança sobre lucros e dividendos,
entre outras medidas, vai ser enorme. Já seria difícil com um congresso progressista
devido à artilharia da mídia e do empresariado, em particular do setor financeiro. Com
este congresso…a luta vai ser renhida.
(continua no próximo artigo)

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