“Como enfrentar um ditador” de Maria Ressa

“Como enfrentar um ditador” de Maria Ressa

Maria Ressa, que recebeu o Nobel da Paz de 2021, traz um depoimento detalhado de como funciona o mundo do jornalismo e da informação em geral, neste novo universo digital. O exemplo que ela adota é o do seu país, as Filipinas, mas a sua longa experiência na luta contra a manipulação é apresentada junto…

Ficou muito fácil transformar nossa memória através de nossas emoções
Maria Ressa (p. 317)

Nesta era de invasão de privacidade, de uso da conectividade global para fins políticos, do marketing comportamental, não basta denunciar as fakenews, precisamos repensar de maneira mais ampla o resgate do sistema de informação e da própria democracia. 

De que adianta o voto livre se as pessoas que votam não têm acesso à informação, e se tornam alvo de manipulações em escala industrial? Maria Ressa, que recebeu o Nobel da Paz de 2021, traz um depoimento detalhado de como funciona o mundo do jornalismo e da informação em geral, neste novo universo digital. O exemplo que ela adota é o do seu país, as Filipinas, mas a sua longa experiência na luta contra a manipulação é apresentada junto com exemplos de Trump, de Bolsonaro, de Orbán, de Erdogan e vários outros:  o que Shoshana Zuboff nos apresenta no seu clássico The Age of Surveillance Capitalism, Ressa materializa no caso concreto da luta por organizar e consolidar formas democráticas de informação participativa em rede. Uma leitura de primeira importância, e que se lê em dois dias: excelente jornalista, sabe contar a história. 

O contexto que Ressa enfrenta nos é familiar. O país tinha passado por uma longa ditadura, com Ferdinand Marcos, que governou para as elites, e legou 70 mil detidos, 34 mil torturados e 3240 mortos. Governou entre 1965 e 1986, período muito próximo da nossa ditadura. Frente à revolta popular de 1986, com conselho de Ronald Reagan, fugiu para o Havaí, levando uma fortuna de 10 bilhões de dólares. Com Aquino e outros presidentes, as Filipinas tiveram democracia até 2016, quando Rodrigo Duterte, um fanático da ultradireita, assumiu o poder, em nome da luta contra as drogas, levando a anos de massacres justificados como combate à criminalidade. 

Em 2022 – o livro da Ressa é muito atual – é um filho do antigo ditador Marcos, BongBong Marcos, que foi eleito, após uma gigantesca ofensiva através das mídias sociais, para limpar a imagem do seu pai. A vice-presidente é Sara Duterte, filha do ex-presidente. O pesadelo continua. Estou resgatando este pequeno histórico, porque o que constatamos é que hoje ditadores podem perfeitamente se adaptar aos processos eleitorais, conquanto assegurem o controle dos sistemas de informação. E o paralelo com o Brasil é impressionante. As Filipinas foram colônia americana entre 1898 e 1946, herança pesada. Não há um ’Lula filipino’ no horizonte.  

É essa a guerra que Ressa enfrenta, criando um sistema paralelo de jornalismo, por meio de um processo inovador de captação, verificação, e divulgação em rede de informações confiáveis, no quadro de uma organização chamada Rappler. São quatro mulheres jovens que se juntaram, e saindo da mídia tradicional – Ressa era profissionalmente mais experiente, tinha sido responsável pela CNN americana para a Ásia – e usando as mídias sociais, passaram a construir uma rede de repórteres-cidadãos para gerar notícias e análises divulgadas online, mas no quadro de um rigoroso sistema de verificação dos fatos. Aliaram-se com dezenas de outras organizações, assegurando uma ampla capilaridade no país, usando plataformas já existentes, em particular o Facebook, e depois veículos próprios. 

Hoje Ressa é fortemente crítica do Facebook, mostrando como a plataforma privilegia mensagens em função da rentabilidade que geram, e o que rende mais é navegar nas emoções, no ódio, na raiva, mensagens que se multiplicam muito mais. “Estudos já demonstraram que de 80% a 95% da nossa tomada de decisões não se baseia no que nós pensamos, mas sim em como nos sentimos.”(142) Claramente, falar para o fígado rende mais. Enquanto Ressa e as companheiras fundavam o Rappler, Duterte, como presidente, montou uma gigantesca indústria de mensagens que polarizaram o país, destruindo, com a apoio de Facebook, “a perspectiva de uma internet inclusiva”: “O Facebook representa uma das ameaças mais graves para as democracias do mundo inteiro, e fico espantada ao ver que permitimos que nossas liberdades nos fossem tiradas pela tecnologia, com sua avidez de crescimento e de receitas… Raramente Facebook dá prioridade às salvaguardas para os quase 3 bilhões de usuários na sua plataforma, que em 2020 obteve uma receita de 85,9 bilhões de dólares. Em 2021 foram 120,18 bilhões de dólares, um aumento de 40%.” Os americanos comentam que antigamente os poderosos nos controlavam “by the balls”, hoje é simplesmente “by the eyeballs”, olhos grudados nas telinhas. 

Nesse sentido Ressa é muito próxima de Shoshana Zuboff, que mostra “como as empresas da mídia social se apropriaram de nossos atos e das nossas vidas particulares – usando o aprendizado de máquinas e a inteligência artificial para coletar e organizar nossos dados pessoais e construir modelos para cada um de nós – e em seguida declararam publicamente que agora eram donas desses ativos empresariais, depois usados para criar os algoritmos que nos manipulam insidiosamente em troca do lucro.”(303)  

Em termos econômicos, as plataformas de comunicação usam o que se chama monopólio de demanda: se queremos comunicar, temos de usar a mídia que os outros usam, e as plataformas que se expandiram passam a não ter concorrentes, ou poucos, favorecendo a formação de gigantescas fortunas, mas também deformações profundas quando, em nome da liberdade de acesso, permitem que robôs produzam milhões de mensagens sem controle de veracidade ou de fonte. É viável trabalhar de outra forma? 

A Rappler é um exemplo: “Percebi então como pode ser poderosa a mídia participativa: como os cidadãos, com seus celulares, ficam empoderados para exigir justiça e responsabilidade. Isso me mostrou como a tecnologia pode ser usada para o bem – para o empoderamento dos cidadãos, para a participação eleitoral e o engajamento democrático, e para a integridade e a verdade.”(125)

O desafio nos concerne a todos. Em fevereiro de 2023, Lula afirmou: “Quero conversar com o Biden sobre isso, vou propor o assunto no G20, para a gente definir como fazer essa coisa democrática, extraordinária, que são as plataformas de internet e as redes sociais, virar uma coisa realmente boa.” Dado o peso das plataformas na formação de opiniões, e os rumos desastrosos que tomaram, trata-se de uma iniciativa estratégica. O livro da Ressa, na medida em que detalha a sua luta para construir um sistema de informação confiável, descentralizado e participativo, e que teve imenso sucesso, demonstrando a sua viabilidade mesmo no contexto de ataques da máquina do governo Duterte, é uma leitura muito importante. Democratizar a comunicação é um dos nossos principais desafios. É só olhar o que o bolsonarismo conseguiu fazer no país. 

A visão é de sistemas descentralizados e participativos: “Nós podíamos, por meio de crowdsourcing, criar um jornalismo participativo e ajudar a construir as instituições do nosso país de baixo para cima. Isso me dava mais esperanças do que a governança de cima para baixo que vínhamos cobrindo havia anos. O governo sempre funciona melhor quando a população está envolvida.”(134) Ressa afirma que temos sim de nos apropriar das novas tecnologias, mas inverter os seus impactos. “Esses mesmos avanças que saudei com entusiasmo em 2011 logo seriam aperfeiçoados pelo modelo de negócio das plataformas, cooptados pelo poder do Estado e voltados contra o povo, impulsionando a ascensão dos autoritários digitais, a morte dos fatos e a insidiosa manipulação das massas com que convivemos hoje.”(137) Não é só nas Filipinas: 

“Basta substituir Duterte por Modi, Bolsonaro ou Trump, e você já entendeu o que eu quero dizer.”(179) Ressa tentou alertar o Facebook, inclusive em reunião com Zuckerberg: “Em 2018, concluí que o Facebook não faria nada relevante. E em 2020 passei a considerar o Facebook um malfeitor.” (276) O caso do Cambridge Analytica mostrou a profundidade da deformação, não como dano colateral, mas como manipulação organizada. 

O livro serve para entender as dinâmicas, acompanhar formas alternativas de organização, e em particular dimensionar as ameaças, quando as deformações estão atingindo tantos países. “É por isso que essas redes de propaganda são tão eficazes na reescrita da História: o índice de difusão da mentira é bem maior do que o da checagem de fatos que se segue, e quando a mentira é desmascarada, aqueles que já acreditam nela geralmente se recusam a mudar de opinião. O impacto das redes sociais sobre o comportamento das pessoas é igual em outras partes do mundo.”(308)

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