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Erminia Maricato: “Apesar de legislação e políticas premiadas, a maioria urbana vive numa cidade sem lei e sem direitos”

Erminia Maricato: “Apesar de legislação e políticas premiadas, a maioria urbana vive numa cidade sem lei e sem direitos”

Arquiteta e urbanista comenta os principais entraves das cidades brasileiras e aponta a participação popular como o caminho para o resgate da democracia e efetiva transformação das nossas periferias. “Legislação existe, basta aplicá-la”, aponta.

POR TATIANA CARLOTTI

O Brasil concentra a maior parte de sua população nas cidades, mas, apesar de termos uma legislação avançada e políticas públicas que se tornaram referência internacional, a maioria dos brasileiros vive numa cidade sem lei e sem direitos. É sobre essa contradição que nos conta a arquiteta e urbanista Erminia Maricato.

Em entrevista ao Fórum 21, ela traz um panorama dos principais paradoxos e entraves da vida nas cidades, recuperando o ciclo da democracia participativa, das lutas contra a Carestia dos anos 1970, passando pela Constituição de 1988 até as prefeituras democráticas das décadas posteriores.

Participante ativa desses movimentos, Maricato reúne a análise teórica e a prática política no território. Foi durante anos professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde fundou o Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos. Na gestão pública, além de ter participado da proposta de reforma urbana de iniciativa popular da Constituinte, foi Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do lendário governo Erundina (1989-1992) em São Paulo, e Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003-2005) durante o governo Lula.

Consultora de diversas entidades e governos nacionais e internacionais, sua voz engrossou o coro dos que denunciaram o golpe em 2016, quando participou ativamente da Frente Povo sem Medo, articulando a BRCidades, uma potente rede de pesquisadores, profissionais, movimentos sociais e coletivos da juventude, da população negra e das lutas de gênero reunida em torno de um projeto para as cidades brasileiras. Confiram a entrevista:

Fórum 21 – Erminia, como você avalia as eleições municipais deste ano? Quais os desafios e as inovações em relação às eleições anteriores?

Erminia Maricato – O que nós temos em relação à última eleição municipal é o aprofundamento de uma conjuntura de regressão nos direitos humanos e nas políticas públicas, ampliação das desigualdades e recuo dos direitos trabalhistas em todo o mundo, não apenas no Sul Global.

Um contexto de aprofundamento da conjuntura antidemocrática, além de antissocial, sob a hegemonia do capitalismo financeiro e da globalização neoliberal. E, também, enfrentamos a crise climática que não é recente, mas uma novidade das últimas décadas, que põe em risco não apenas o planeta, mas a própria humanidade.

A esquerda sempre discutiu “a força da classe trabalhadora mudando o mundo”. O Espírito de 45, um filme maravilhoso do Ken Loach, mostra o início do chamado “Estado do Bem-Estar Social” (Welfare State), a democracia distributiva adotada pelo capitalismo após a II Guerra, em função de muita luta, em particular a dos sindicatos que eram muito fortes naquele período. A partir da década de 1970, porém, este Estado do Bem-Estar Social sofreu uma profunda mudança.

Hoje, nós vemos o seu desmonte acontecer, culminando em ataques à democracia, com a volta das ideias fascistas. E temos de levar em consideração que o Sul Global nunca conheceu o Estado de Bem-Estar Social pleno. No Brasil, durante o ciclo do desenvolvimento, entre os anos 50 e 60, houve um certo desenvolvimento distributivo, mas, na prática, a imensa parte da população brasileira permaneceu sem acesso ao bem-estar social, devido às nossas raízes escravistas centenárias.

Morro do Andaraí, na zona norte do Rio. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil).

Duas cidades: a formal e a informal

O processo de urbanização no Brasil se deu, principalmente, no século XX. Nós começamos o século com 10% da população nas cidades e terminamos com 80% dos brasileiros nas cidades. Hoje, dez metrópoles abrigam 30% da nossa população. É uma urbanização muito marcada pela velocidade, pela concentração de muitas pessoas em algumas metrópoles e por uma profunda desigualdade e exclusão sociais.

No Brasil não existe “a cidade”, mas “as cidades”. Há uma cidade formal e uma cidade informal. A cidade em que se aplica a legislação de zoneamento, de uso e de ocupação do solo, a cidade oficial. E a cidade construída pelas mãos dos moradores, a cidade sem lei, sem código de zoneamento, nem código ambiental. Uma cidade informal que é fruto da ocupação ilegal da terra, dos loteamentos clandestinos.

Em toda a América Latina, existe a produção informal da cidade. No Brasil, porém, essa ocupação vem sendo dominada pelas milícias e pelo crime organizado. Levantamento do Grupo Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Universidade Federal Fluminense), sobre a informalidade imobiliária no Rio de Janeiro, aponta que mais de 50% da região metropolitana fluminense se encontra sob o comando de organizações armadas. E isso não tem visibilidade na mídia, nem na universidade brasileira.

Não é a minoria da população que forma as nossas periferias, é a maior parte da nossa população metropolitana. Nós somos um capitalismo periférico, onde a maioria dos que vivem nas metrópoles não participa do mercado imobiliário formal, com base em relações capitalistas. É o que marca o nosso subdesenvolvimento e determina nossa condição de país periférico.

Segundo o IBGE, 75,8 milhões de pessoas vivem em casas sem rede de esgoto; e cerca de 16 milhões moram em favelas. Este número tende a ser muito maior, porque não são apenas as favelas que formam as nossas periferias, mas essas ocupações sem engenheiro, sem arquiteto, sem leis, o que inclusive as transforma em áreas de risco. E as periferias estão se reproduzindo, com as características locais, nas regiões do Centro Oeste e do Norte, onde as metrópoles mais crescem atualmente.

Fórum 21 – No mês passado, nós tivemos o caso das 64 famílias despejadas da Ocupação Tiradentes II, em Curitiba. Como fica a situação dessas pessoas? Existem leis para protegê-las?

Erminia Maricato – Eles despejaram a população em plena madrugada gelada. As pessoas diziam “Nós temos crianças e idosos, para onde vamos?” para o oficial de justiça que estava lá. O Judiciário precisa conhecer melhor a legislação. O direito à moradia é constitucional e, neste caso, eles estavam negociando com a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab). Estavam fazendo o cadastro para receber a locação de aluguel social e conseguir a moradia definitiva.

Eu fui secretária de Habitação e Desenvolvimento do governo Erundina (1989-1992) e nós nunca despejamos a população sem que ela tivesse para onde ir numa madrugada gelada. Em dado momento, a Erundina determinou a retirada das pessoas de um território com risco geotécnico. Nós reunimos uma equipe muito competente e analisamos quem precisava sair dali imediatamente e quem podia esperar.

Descobrimos que 5 mil pessoas estavam sob risco iminente e as retiramos em uma semana de suas casas, abrigando essas famílias nas escolas públicas, porque era um período de férias. Nós não tínhamos as moradias, estávamos começando os projetos de desapropriação de terra para aí sim construí-las, então, criamos um programa de locação social para levar as famílias para um aluguel social e depois para uma moradia definitiva. É isso o que eles estavam fazendo em Curitiba.

Erminia Maricato (Foto Reprodução).

A questão central é que não faltam leis, não faltam planos. Nós temos os planos diretores obrigatórios para cidades com mais de 200 mil habitantes e uma Constituição avançada. Eu participei da proposta de reforma urbana de iniciativa popular da Constituição de 1988 e nós conseguimos aprovar a função social da propriedade e a função social da cidade.

Precisamos ampliar o conhecimento da legislação no Brasil para que as pessoas possam exigir o cumprimento da lei. A nossa Constituição traz o preceito da função social da propriedade, ou seja, uma propriedade que não cumpre a sua função social está sujeita a certas medidas públicas, como a ocupação compulsória, desapropriação com título da dívida pública.

Um imóvel vazio sem função social pode ser submetido ao IPTU progressivo, que obriga o proprietário a dar uso àquele imóvel, dentro de um limite de tempo. Apenas no município de São Paulo, não estou falando da região metropolitana, existem 600.000 imóveis vazios e, segundo os dados, temos uma população entre 60 mil e 80 mil moradores de rua. Como pode isso?

Uma especulação desenfreada imobiliária convivendo com esse imenso déficit habitacional e no país inteiro. É vergonhoso. A lei não está sendo cumprida. Por isso insisto: não faltam leis e elas são avançadas, o que falta é aplicar a legislação. Vamos aplicar a Constituição no direito ao transporte, no direito à moradia, no direito ao saneamento, porque nós temos problemas que são estruturais na produção do espaço.

Claro que é importante aperfeiçoar as leis, mas não adianta aperfeiçoar se não aplicarmos a legislação que já temos. Nós vivemos em condições pré-modernas de produção de grande parte do nosso espaço. Não faltam planos diretores. Não falta Lei. Falta conhecimento sobre a realidade e sobre a nossa legislação.

Políticas festejadas em todo o mundo

A nossa legislação, o Estatuto da Cidade, é festejada no mundo todo. O Brasil já trilhou um caminho civilizatório independente do que o Roberto Schwartz chama de “ideias fora do lugar”, que seria pensar o urbanismo brasileiro a partir da perspectiva da Europa. Nós não podemos fazer isso. A Europa não tem a maior parte de sua população urbana fora do mercado imobiliário como a nossa.

Nossa desigualdade é estrutural e calcada no que chamo, com base no José de Souza Martins, de “nó da Terra”.  As relações sociais em nosso país são atravessadas pela propriedade formal da terra. Há uma cisão entre os que detêm e os não detêm a propriedade formal da terra. Essa é uma chave explicativa do Brasil, porque ter uma propriedade legal formal é possível apenas para a elite.

Uma elite, é bom dizer, que não deixa de ser grileira. A história da Lei de Terras no Brasil, a partir de 1850, é a história da ocupação ilegal no campo. Agora, uma coisa é a elite ocupar ou comprar de forma não totalmente regular, outra são os descendentes de escravos ou as camadas populares.

Do ponto de vista da apropriação formal, a maior parte dos territórios metropolitanos são irregulares e Ilegais. Entretanto, a vítima é sempre a população que, sem recursos para adquirir uma casa no mercado, fica desprotegida das políticas sociais de moradia, obrigada a comprar a casa informal ou a ocupar o terreno. E as pessoas que já são vítimas passam a ser vistas como criminosas pela ocupação dessas terras.

Imagens de Queiciane e seus filhos e Daniele, moradoras de uma ocupação na cidade de São Paulo. (Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil).

Aí vem a história do “vamos fazer um novo plano diretor”. Aplicar o que já existe seria de bom tamanho, mas onde está a força política para aplicar o que está aí? Caímos sempre no mesmo ponto: a aplicação das leis é discriminatória.

Nós temos de reconhecer que ultimamente as nossas instituições tiveram um papel surpreendente durante a tentativa de golpe do 8 de janeiro. Mas, em relação à questão urbana, apesar de sua imensa importância, ela ainda tem muito pouco prestígio na discussão política.

Fórum 21 – Quais os principais pontos que os setores progressistas e de esquerda precisam ficar atentos nas eleições deste ano?

Erminia Maricato – Os setores progressistas e de esquerda precisam se lembrar do quanto o poder local é importante para a democracia e para a reconstrução democrática. Nas cidades vivem 85% da nossa população. E grande parte desse contingente não exerce o seu direito à cidade porque foi expulsa para as periferias não-urbanizadas.

Muitas vezes, essas pessoas ocupam áreas de proteção ambiental, como as regiões de mananciais onde está a reserva de água da cidade. Existem quadrilhas loteando terreno nessas regiões. Agora, se a reserva de água de uma cidade, com mais de 20 milhões de habitantes, não é uma questão de segurança, o que será?

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O fato é que os dramas diários da classe trabalhadora são vividos nas cidades. O Brasil é o país com mais empregadas domésticas no mundo, segundo o IBGE.  Elas passam horas nos transportes públicos, porque moram longe dos locais de trabalho. Em São Paulo, 70% dos empregos da região metropolitana estão no centro expandido. A população sofre muito com o preço e as condições de transporte, além da moradia nas atuais condições de saneamento e ambientais que citei antes.

Essas mulheres não participam da política institucional que cooptou a esquerda e os setores progressistas. Nós estamos vendo nas câmaras municipais, como o investimento público ignora os indicadores de vulnerabilidade, aumentando o preço da terra e dos imóveis. É uma disputa pelo orçamento feita por um grupo restrito que está lá.

Fórum 21 – Como furamos a nossa bolha para comunicar esses pontos?

Erminia Maricato – Estamos vivendo uma revolução tecnológica que mudou completamente a comunicação e a nossa subjetividade. É uma ferramenta ainda não regulada o suficiente porque é muito nova, e que, frequentemente, mais desinforma do que informa.

Como se diz, há uma disputa de narrativa acontecendo e são coisas óbvias que precisamos disputar. Comunicar, por exemplo, que não faltam terras para a agricultura familiar, e nem nas cidades para resolvermos o problema de moradia. A comunicação, a formação, a universidade têm um papel fundamental, assim como as escolas públicas, para trazer uma outra narrativa mais adequada à nossa realidade.

E comunicar questões lógicas. O governo Haddad criou o programa Ligue os Pontos, um programa de agricultura familiar dentro do munícipio, abastecendo com a produção desses agricultores a merenda da rede escolar.  Com isso, você também cria hortas em bairros de São Paulo que fornecem alimentos de boa qualidade e, ao mesmo tempo, renda para as pessoas, resolvendo o problema de emprego, de alimentação e do meio ambiente, porque essas unidades não usam agrotóxico e podem ser instaladas em áreas de mananciais.

Esse programa, além de todas essas virtudes, tem uma maior ainda que é eliminar parte da viagem dos alimentos pelas rodovias. Tudo a ver com a questão climática e a racionalização do transporte urbano e rural. É muita viagem poluindo a atmosfera e o ar que estamos respirando nas cidades nos torna doentes.

É tão óbvio tudo isso. Como que a gente não consegue emplacar o lógico é de enlouquecer. Como você apresenta o lógico, o racional? Além de exigir da mídia hegemônica um pouco mais de dignidade em relação à realidade, os partidos também precisam divulgar para as novas gerações que nós já tivemos práticas nesse sentido.

É crucial resgatar a memória das prefeituras democráticas que vivemos. A juventude atual não viveu o ciclo das prefeituras democráticas, um capítulo muito importante da democracia participativa, direta, que as pessoas viveram nos bairros, nas igrejas com as Comunidades Eclesiais de Base, nas Praças Democráticas.

OP em 1993, durante o governo Tarso Genro em Porto Alegre (Foto: Vivi Capellari/ Prefeitura POA). Plenária de OP em Araraquara (Foto: prefeitura de Araraquara).

Ciclo das prefeituras democráticas

O Orçamento Participativo (OP) foi um projeto nosso que ganhou o mundo e foi repetido em várias cidades como Nova York. Ele começou em Porto Alegre, com a população elegendo seus próprios delegados para discutir o orçamento público da cidade. Isso não é um sonho, isso aconteceu neste Brasil que combina o moderno com o arcaico, nas administrações de Olívio Dutra, Luiza Erundina, Vitor Buaiz e tantos outras.

Foi uma coisa maravilhosa, de Norte a Sul do país e não foi fácil para quem estava no governo. Na prefeitura da Luiza Erundina, em São Paulo, nós criamos a Tarifa Social ou Tarifa Zero nos Transportes, fizemos a urbanização das favelas e 14 mil novas unidades construídas através dos mutirões, em um período em que o orçamento estava restrito. Isso só foi possível com democracia local.

Nós precisamos recuperar essas experiências, em vez de deixar o orçamento público nas mãos do lobby, como está hoje. No mapeamento do orçamento público em São Paulo, a continuação da Av. Faria Lima é prioridade nos investimentos do atual prefeito. Enquanto isso as periferias sofrem enchentes de risco, desmoronamentos, epidemias devido à precariedade na coleta de lixo e no tratamento do esgoto.

Então é preciso lembrar as pessoas de que houve sim um período em que a democracia local aconteceu e resgatar essa herança da participação ampliada popular no território. Resgatar a importância da eleição para o poder local, não somente para eleger este ou aquele prefeito, mas para cobrá-lo e o ajudar na instalação efetiva de um governo democrático.

Isso só acontece a partir do poder local. Só assim vamos criar uma democracia capilarizada no território e, para isso, precisamos retomar o controle do orçamento público, e não somente diminuir o “toma lá, dá cá”, que cada vez mais captura os nossos legislativos e o Executivo.

Participação local e resgate da Democracia

Em 1975, eu acompanhei o Movimento Contra a Carestia nos bairros, que começou a partir da luta das mulheres por creches e saúde. Vamos lembrar que nós estávamos na época da ditadura, em meio ao terror, quando essa participação da democracia direta e local aconteceu.

Não podemos esquecer do quanto isso foi importante para recuperar a nossa democracia e o quanto é importante hoje para resgatá-la. Nós tivemos um ciclo desenvolvimentista onde, realmente, parecia que o Brasil ia dar um salto civilizatório emancipatório.  

O rumo do país mudou com o ciclo das prefeituras democráticas; com a chegada do Fernando Henrique Cardoso, que era considerado democrático embora tenha se mostrado um pouco mais liberal do que imaginávamos; e com a eleição, pela primeira vez, de um operário à Presidência da República, em um país profundamente conservador, patrimonialista e patriarcal. Quando começamos a levar em consideração o que está acontecendo no mundo, nós começamos a entender essa regressão.

Quero lembrar também dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) do Darcy Ribeiro, durante o governo Brizola no Rio de Janeiro. Vocês querem algo mais importante do que proteger e formar as crianças e os adolescentes das nossas periferias? Isso é formar o futuro do Brasil. É não deixar essas crianças à mercê do crime organizado, dando formação e provendo alimentação três vezes por dia. É ampliar a formação educacional com esporte, cultura, artes, como faz os CEUS até hoje em algumas regiões de São Paulo, os CIEES (Centro de Integração Empresa-Escola), a Rede Cuca de Fortaleza.

Nós temos heranças desses tipos de centros educacionais no Brasil todo. Em Natal, na Favela Mãe Luiza, existe a Filarmônica de Mãe Luiza, uma orquestra incrível. Lá, as crianças ganham todos esses concursos de matemática e de português, porque passam o dia num equipamento desses, no caso, mantido pela igreja.

Esq.: Orquestra Filarmônica de Mãe Luíza em Natal (Foto: Prefeitura de Natal). À dir. menino brinca Menino brinca na ocupação Prestes Maia em São Paulo (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil).

E o que dizer dos Pontos de Cultura que existem até hoje e são maravilhosos porque trazem uma produção cultural que não atinge a mídia hegemônica? Eles tiveram a virtude de oferecer espaço e condições para as pessoas desenvolveram uma cultura não hegemônica. Não faltam experiências. Com o poder local e a democracia direta, nós podemos superar os nossos problemas.

Fórum 21 – Quais filmes e documentários você indicaria para que possamos circular essas informações e sensibilizar as pessoas sobre os seus direitos no território?

Maricato – Eu tenho muito material no meu sitehttps://erminiamaricato.wordpress.com/. Nos anos 70, o Renato Tapajós fez um documentário chamado Fim de Semana. Ele tinha acabado de sair da prisão, após resistir à ditadura, e eu o ajudei na pesquisa para este filme. A ideia era mostrar o universo absolutamente desconhecido à época da moradia dos trabalhadores nas periferias de São Paulo. Em 1978, eu fiz outro documentário chamado Loteamento Clandestino, que explicava aos compradores de loteamentos ilegais porque não eles eram donos formais de seus lotes, mesmo após comprar e pagar para as imobiliárias que vendiam esses terrenos em plena luz do dia. Os dois estão no meu site.

Reforço o já citado O Espírito de 45 de Ken Loach, que uso sempre nos meus cursos, e acrescento Roma de Federico Fellini. E com colaboração do time maravilhoso do coletivo BR Cidades, segue uma série de filmes, boa parte disponível no YouTube:

Sobre a vida nas grandes cidades:

Edifício Master documentário de Eduardo Coutinho, 2002, que traz o cotidiano dos moradores do Edifício Master, em Copacabana. Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, sobre o universo dos moradores de coberturas de prédio das cidades de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Ver também Conterrâneos Velhos de Guerra (1992) de Vladimir Carvalho sobre a construção de Brasília e as péssimas condições das pessoas de diversas partes do Brasil, especialmente do Nordeste, que chegaram na região em 1959. E A Cidade Não Para (2008) de Isa Grinspum Ferraz, sobre Santo André.

Os curtas Esplendor do Martírio (1974) de Sérgio Peo e Marginalia 70 – Fabulario Tropical (1979) de Geneton Moraes Neto e Entre Rios – a urbanização de São Paulo (2011), de Caio Silva Ferraz, sobre o processo de transformação sofrido pelos cursos d’água paulistanos. E os longas de ficção O Som ao Redor, do premiado diretor Kleber Mendonça Filho. Cidade da esperança (1992) de Roland Joffé, sobre a pobreza na Índia. O argentino Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual, de Gustavo Taretto, sobre a solidão nas grandes metrópoles.

Sobre a luta pelo direito à moradia:

Os mutirões da Leste 1 (2020) e Capacetes Coloridos, ambos de Paula Constante. São Vito, de Camila Mouri e Pedro Caldas, sobre a rotina dos moradores do edifício São Vito, chamado de Treme-Treme, às vésperas da desocupação do prédio, em 2004, na capital paulista. Os curtas Há Lugar – Ocupações na Zona Leste (1987) de Julio Wainer e Juraci de Souza; e também Casas Marcadas de Adriana Barradas, Alessandra Schimite, Ana Clara Chequetti, Carlos R. S. Moreira (Beto), Éthel Oliveira e Juliette Lizeray, sobre as remoções no Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil, no centro do Rio de Janeiro.

De Conrado Ferrato, Rafael Crespo e César Vieira, os longas Quem Mora Lá? e  Limpam com fogo (2018), sobre a epidemia de incêndios em favelas na cidade de São Paulo e a relação com a especulação imobiliária. Sobre a luta na Baixada Santista confiram Vila dos Criadores: o direito de (r) existir (2024), uma criação coletiva do coletivo Athis, que também produziu o longa Bela Vista: Reflexos da Resistência (2021).

Sobre as tragédias ambientais em curso:

A Brasken passou por aqui: a catástrofe de Maceió (2021) também de Carlos Pronzato, que aborda o crime socioambiental que atingiu quase 70.000 pessoas, 4.500 negócios e 30 mil empregos na capital alagoana.

Por fim, como aporte sobre as questões do território:

O site Autogestão & Moradia, com vários videos sobre habitação. A Mostra Ecofalante, que começou na última quarta-feira (31) e vai até o dia 14 de agosto, oferecendo uma programação gratuita nos cinemas da capital paulista, e uma ótima plataforma de filmes com um eixo dedicado às cidades; e também a mostra A Cidade em Movimento do CineBH, programada para 24 e 29 de setembro.


Foto de capa: Montagem com a imagem de Tânia Rêgo / Agência Brasil e foto de Ermínia Maricato. Suas fotos publicadas ao longo da matéria foram retiradas do seu site https://erminiamaricato.wordpress.com/

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