Extrema-direita fora do armário

Extrema-direita fora do armário

Segundo Yascha Mounk, no livro escolhido como o Melhor de 2023 pela The Economist, Financial Times e Prospect Magazine, The Identity Trap: A Story of Ideas and Power in Our Time [“A armadilha da identidade: uma história de ideias e poder em nosso tempo”], o fenômeno político mais marcante da última década foi a ascensão da direita iliberal.

Como narrou em seus dois últimos livros – O Povo contra a Democracia (2018) e O Grande Experimento (2022) –, os partidos de direita antes prestavam certa fidelidade às regras e normas básicas das democracias constitucionais. Mas abraçaram gradualmente uma forma de populismo autoritário: falar em nome de “seu povo” – no caso brasileiro, militares-milicianos, evangélicos e ruralistas – e desrespeitar os resultados eleitorais.

Representa um perigo agudo para a sobrevivência do sistema político democrático. Hoje, esses demagogos lutam falsamente contra o establishment, em “discurso de campanha”, e, depois, caso vitoriosos, passam a representar uma ameaça existencial às democracias.

Por qual razão, então, alguém deveria preocupar-se com a propagação de uma ideologia bem-intencionada, como a síntese da identidade, com o objetivo declarado de luta contra injustiças reais? O tema o citado livro não seria insignificante em comparação com a urgência de combater demagogos populistas como Jair Bolsonaro e Donald Trump?

Primeiro, embora longe de estar derrotado, o fenômeno do populismo de direita é, agora, razoavelmente bem compreendido. O identitarismo, pelo contrário, continua a ser um território estranhamente inexplorado.

Há muitos “gritos” sobre ele nas redes sociais e nos noticiários a cabo. Mas até agora, surpreendentemente, há poucos trabalhos onde se conta a história da sua ascensão, explique as razões do seu apelo e avalie seriamente o efeito possível sobre o mundo.

Segundo, é importante corrigir como as crianças pertencentes a um grupo de identidade são ensinadas a perceber aquelas pertencentes a outros grupos de identidade. Não é nada trivial, no meio de uma pandemia, fenômeno raro em um século, o Estado ter dado prioridade às restrições de uma ideologia nova (e “não testada ou questionada”) em detrimento do salvamento de vidas.

Terceiro, o identitarismo irá provavelmente revelar-se contraproducente para muitas das causas com as quais os seus defensores têm boas razões para se preocuparem. Tornou difícil, para os críticos bem-intencionados, apontar casos nos quais as soluções sugeridas causam danos reais, porque as políticas incentivadas por ele são suscetíveis de piorar o destino da maioria.

Finalmente, o populismo de direita e a armadilha da identidade alimentam-se mutuamente. O horror generalizado, por exemplo, diante à eleição de Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, acelerou a tomada da síntese identitária como guia em muitas instituições de elite. Mas os demagogos como eles prosperam quando as sociedades estão profundamente polarizadas.

Embora os defensores do identitarismo apontem problemas graves, necessitados urgentemente de ser remediados, os princípios defendidos e as soluções oferecidas são susceptíveis de levar mais eleitores para os conservadores de direita. É um grande risco!

Os populistas de direita e os defensores da síntese identitária veem-se uns aos outros como inimigos mortais. Mutuamente, a melhor maneira de vencer um é opor-se ao outro – e, por isso, segundo Mounk, todos preocupados com a sobrevivência das sociedades livres deveriam lutar contra ambos em busca de sensatez em um pacto democrático constitucional, onde se incluem alternância de poder pelos votos e respeito às minorias.

Seu objetivo neste livro é: 1. explicar a natureza da armadilha da identidade, 2. expor por qual razão é tão urgente escaparmos dela e 3. mostrar como podemos fazê-lo.

Na primeira parte do livro, conta a história de como um conjunto de ideias aparentemente díspares veio a formar uma nova ideologia, altamente influente nas principais universidades. Muitos críticos do chamado “woke ou conscientização” diziam ser apenas uma forma de “marxismo cultural”.

Mas a verdadeira história da síntese da identidade, contada por Mounk, apresenta a rejeição de grandes narrativas, incluindo tanto o liberalismo como o marxismo. Pregam apenas a necessidade de os intelectuais falarem em nome dos grupos oprimidos, adotando uma forma de “essencialismo estratégico”.

Na parte II, conta a história de como uma teoria acadêmica aparentemente de nicho pôde ganhar tanta influência, ao longo de uma única década, devido ao crescimento das redes sociais. Os incentivos criados pelas novas formas de repercussão de notícias transformaram os meios de comunicação tradicionais em alto-falantes para esta nova ideologia.

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A eleição de Donald Trump sobrecarregou preocupações bem fundamentadas sobre ameaças a grupos minoritários. Daí passou a parecer desleal aos progressistas criticar quaisquer ideias associadas à esquerda e tornaram as críticas ao identitarismo um tabu em muitos meios sob “patrulha ideológica”.

Quando o identitarismo conquistou o mainstream, os seus proponentes começaram a pressionar por mudanças radicais em áreas-chave da vida pública. Argumentam os membros de diferentes grupos de identidade nunca poderem compreender-se plenamente.

Desconfiam, devido ao sectarismo, quando os membros de um grupo são inspirados pela cultura de outro grupo. Criticam-nos como fosse uma “apropriação cultural”.

São profundamente céticos em relação a princípios como a liberdade de  expressão, usada supostamente para denegrir os grupos minoritários. Abraçam uma forma de “separatismo progressista”.

Defendem políticas públicas onde a forma como o Estado trata as pessoas dependa de categorias de identidade de grupo, como raça, gênero e orientação sexual. Fazem a defesa explícita desse “privilégio compensatório” diante a dívida social do passado.

Na parte III, Mounk defende estas aplicações da síntese identitária poderão revelar-se contraproducentes, corroendo os valores capazes de tornarem possível uma sociedade na qual todas as pessoas possam viver na livre busca do seu melhor. Submetendo cada uma destas afirmações a uma análise filosófica cuidadosa, defende existirem maneiras melhores de lidar com as preocupações motivacionais.

Defensores da síntese da identidade sentem uma raiva justificada por injustiças genuínas. Mas os seus preceitos centrais implicam em um ataque radical aos princípios pactuados como sustentáculos das democracias em todo o mundo.

Felizmente, existe uma alternativa de princípios. Na parte IV, Mounk defende os princípios fundamentais do liberalismo filosófico. Seus adeptos, desde o sábio Iluminismo, acreditam em valores universais e em regras neutras para formular uma crítica construtiva (com alternativas) da opressão histórica e da injustiça persistente.

A chave para uma política aspiracional realmente capacitada para construir um mundo melhor reside em viver de acordo, e não em abandonar, valores universais e regras neutras. A luta pelo futuro da síntese identitária será uma das lutas intelectuais definidoras das próximas décadas.

Na conclusão, Mounk avalia o futuro provável da armadilha da identidade. Mostra como os oponentes íntegros dessa ideologia podem enfrentá-la sem arriscar as suas próprias carreiras profissionais e reputações políticas.

Para aqueles com desejo de compreender a história intelectual da síntese identitária, a parte I será a de maior interesse. Para aqueles em busca de compreender as razões políticas, sociológicas e tecnológicas, possibilitadoras de propiciarem esta ideologia a sair de campus e a conquistar o mainstream, a parte II será de maior interesse.

Para aqueles com finalidade de compreender por qual razão essas ideias, aplicadas a tópicos desde a liberdade de expressão até a apropriação cultural, se revelaram tão contraproducentes, a parte III será a lida com maior atenção. Finalmente, para aqueles com propósito de procurar uma alternativa coerente à armadilha da identidade, a parte IV servirá de guia.

Existem boas razões pelas quais a armadilha da identidade se revelou tão atraente. A resposta correta à ascensão desta nova ideologia identitária não é nem a rejeitar por completo nem adotar as suas premissas-chave sem uma reflexão séria.

Trata-se de submeter a síntese da identidade a uma crítica séria e construtiva, ao oferecer alternativa. Esta crítica de Mounk está aberta a aceitar contribuições.

Em última análise, ele insiste em lutar por uma visão mais ambiciosa e otimista do futuro. Não à toa, em 2023, o livro foi escolhido como o Melhor do Ano por The Economist, Financial Times e Prospect Magazine.

Ilustração: Reprodução

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