Memórias de estudante de esquerda
No fim de 2024, comemoro ½ século como graduado em Ciência Econômica pela FACE-UFMG. Lá fui aluno de tempo integral no Sistema de Bolsa de Estudos.
Em plena ditadura militar (1971-1974), nós alunos-bolsistas fazíamos o Movimento Estudantil (ME), mantendo viva a chama da revolta de esquerda contra a repressão. Em leitura paralelas à do curso “mainstream”, trocávamos sugestões de autores marxistas, muito mais influentes na nossa formação acadêmica.
Como tínhamos de obter a média final acima da nota 7 (sete) em todas as disciplinas, sob a pena de perder a bolsa (1/2 salário-mínimo), estudávamos também a ortodoxia econômica. Depois, foi fácil ser aprovado no exame da ANPEC (Associação Nacional de Pós-graduação em Economia) e, naturalmente, minha primeira escolha foi a Unicamp. Eu recusava ir para a USP do Antônio Delfim Neto ou a EPGE-FGV do Mário Henrique Simonsen, ministros da ditadura!
Para quem não viveu nesse “mundo (acadêmico) paralelo”, na primeira metade dos anos 70s, é habitual citar apenas algumas conhecidas correntes de pensamento econômico do debate econômico no Brasil. Entre elas, Guido Mantega, no livro A Economia Política Brasileira (RJ, Polis/Vozes, 1984) destaca as seguintes.
A corrente do nacional–desenvolvimentismo defendia a intervenção do Estado como fundamental para promover o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Foi bastante influente, especialmente durante o governo de Juscelino Kubitschek na segunda metade da década de 1950, na promoção da industrialização e na adoção de políticas de substituição de importações.
O liberalismo econômico, em contraste, advogava por menor intervenção estatal na economia e pela confiança nos mecanismos de mercado para alocar recursos de acordo com a indicação do sistema de preços relativos. No Brasil, essa corrente ganhou força em governos neoliberais (1990-2002) ao implementarem políticas de privatizações e abertura comercial.
Influenciado pelo estruturalismo da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o neoestruturalismo no Brasil via as estruturas econômicas subdesenvolvidas como um obstáculo ao crescimento. Por isso, o Estado deveria atuar para reformá-las, promovendo mudanças estruturais, como a reforma agrária, de modo a levar à maior competitividade e equidade econômica.
A partir dos anos 70s, enfatizando o controle da oferta de moeda como a principal forma de controlar a inflação, o monetarismo teve maior proeminência. Afonso Celso Pastore assumia ser monetarista e, na presidência do Banco Central, fracassou na tentativa de combater o regime de alta inflação por meio de política monetária para controle da demanda agregada.
Mais importante para nós, militantes do ME, era uma abordagem crítica de raiz marxista. Achávamos só ela incorporar a dimensão política e social da economia, refletindo a própria visão de Economia Política de Karl Marx. Líamos mais sociólogos de esquerda, muitos mineiros como Rui Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos. Foram da geração de Darcy Ribeiro e Edmar Bacha na UnB.
Guido Mantega, no citado livro, discute as abordagens de Rui Mauro Marini e André Gunder Frank da Teoria da Dependência e como ambos se diferenciam em suas análises sobre o subdesenvolvimento da América Latina. Apreciávamos a influência do pensamento de Leon Trotsky na formulação das teorias do primeiro autor, embora hoje o segundo pareça hoje ter sido mais certeiro.
André Gunder Frank defendeu a ideia de o subdesenvolvimento da América Latina não ser uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas sim uma condição estrutural e inerente à inserção dependente dos países periféricos à economia capitalista global. Para Frank, o desenvolvimento dos países centrais ocorreu em simultâneo com o subdesenvolvimento das regiões periféricas, como resultado de um processo histórico de exploração e dominação.
Frank minimizava a importância das dinâmicas internas de classe e das forças produtivas locais, enfatizando o papel da economia mundial e a divisão internacional do trabalho como fatores determinantes no subdesenvolvimento. A riqueza acumulada nos países centrais, em participações acionárias nas empresas transnacionais, obtinha bons resultados da exploração feita nos países periféricos, impedindo suas economias avançarem em direção ao desenvolvimento autônomo.
Rui Mauro Marini compartilhava com Frank a ideia de o subdesenvolvimento ser uma consequência dessa integração dos países periféricos ao capitalismo global. Contudo, Marini elaborava uma crítica marxista ao desenvolvimento capitalista, incorporando elementos da exploração da força de trabalho.
Marini usou o conceito de superexploração, segundo o qual o capital nas economias dependentes mantinha os trabalhadores em condições de extrema precariedade, com salários abaixo dos níveis de reprodução social, como uma estratégia para compensar as limitações impostas pela dependência externa. Essa superexploração seria central para a dinâmica interna do subdesenvolvimento.
Diferente de Frank, Marini dava maior ênfase às elites locais e às suas alianças com o capital internacional. Para ele, essa classe dominante local desempenhava um papel ativo na manutenção da dependência e da superexploração, colaborando com o capital estrangeiro para sustentar a ordem capitalista dependente.
Se Frank focava mais na estrutura internacional, Marini enfatizava as contradições internas das economias periféricas, como a luta de classes e a relação entre capital e trabalho, elementos cruciais para entender a perpetuação do subdesenvolvimento. Mas, nós da esquerda anti-estalinista, percebíamos Leon Trotsky exercer uma influência significativa sobre ambos os autores, especialmente na forma como eles compreendiam o desenvolvimento desigual e combinado.
Trotsky desenvolveu o conceito de o desenvolvimento do capitalismo se dar de forma desigual em diferentes regiões do mundo e, ao mesmo tempo, essas regiões, ao serem integradas ao capitalismo mundial, combinarem estruturas sociais e produtivas atrasadas com formas avançadas de capitalismo. Essa teoria foi essencial para a análise de como economias periféricas poderiam se desenvolver de forma distorcida, dependendo da relação com o capitalismo internacional.
Leon Trotsky apresentou a Lei do Desenvolvimento Igual e Combinado em uma bela metáfora sobre a história econômica. Excluía a possibilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento em diversas nações.
“Na contingência de ser rebocado pelos países adiantados, um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação historicamente atrasada – e este privilégio existe – autoriza um povo ou, mais exatamente, o força a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série de etapas intermediárias.
Renunciam os selvagens ao arco e à flecha e tomam imediatamente o fuzil, sem necessitarem percorrer as distâncias a, no passado, separarem essas diferentes armas. Os europeus, quando colonizaram a América, não recomeçaram ali a História desde seu início. Se a Alemanha e os Estados Unidos ultrapassaram economicamente a Inglaterra, isso se deveu, exatamente, ao atraso na evolução capitalista daqueles dois países” (TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa. Rio de Janeiro, Saga, 1967. Vol. I, p. 24.)
Ambos os autores citados eram influenciados pela teoria de Trotsky, mas Marini a utilizava de maneira mais explícita para mostrar como o capitalismo nas economias periféricas adotava uma forma combinada e desigual, perpetuando o subdesenvolvimento por meio da superexploração e da cooperação das elites locais com o capital internacional. Essas influências eram fortes sobre nós, estudantes do início dos anos 70s, para entender o debate dentro da Teoria da Dependência e a forma como diferentes teóricos latino-americanos conceberam o subdesenvolvimento e a dependência da região ao capitalismo global.
Dessa forma, a Teoria da Dependência segue relevante para entender como as estruturas de poder econômico, tecnológico e financeiro global continuam a moldar as trajetórias dos países antes periféricos hoje integrados ao capitalismo global. São dependentes, apesar dos avanços econômicos ocorridos, no caso brasileiro, em agronegócio, indústria extrativista e serviços urbanos.
Lembro-me também de ter me interessado por pesquisar o sistema financeiro, inseparável do capitalismo, quando li, na minha graduação, o livro da Maria da Conceição Tavares. A Professora tornou-se minha mentora, inspiradora da minha especialização em Finanças, para compreender esse sistema complexo com propriedades emergentes. Mas essa é outra narrativa de minhas memórias…
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].