O guardião do óleo da lamparina

O guardião do óleo da lamparina

Na madrugada chuvosa de 5 de maio de 1971, José Carlos Zanetti é preso na BR-324, precisamente no entroncamento para o município de Santo Amaro. Perto dali, na praia do Cabuçu, caem Tibério Canuto de Queiroz Portela, Renato Godinho Navarro e Antônio Rabelo, os três da direção regional de Ação Popular (AP). São presas em Salvador, ainda, as mulheres de Rabelo, Anette, com três filhos menores do casal, e de Godinho, Maria Helena. Um golpe brutal contra AP.

Zanetti era do escalão intermediário da organização. Dirigente seccional, como se chamava então, responsável pela implantação de AP em Feira de Santana, cidade onde despontava a classe operária. Viera de Curitiba, onde fora dirigente da União Paranaense dos Estudantes (UPE. Lá, recrutado para AP, vai para a clandestinidade, anda por Maringá e Londrina, no Paraná, passa por Criciúma, em Santa Catarina, e segue depois para São Paulo cumprir a determinação de se integrar à produção.

AP acreditava necessário educar os militantes das camadas médias, levá-los a se integrar no meio dos trabalhadores das cidades ou do campo. Assumiriam dessa forma a chamada perspectiva proletária. Se não conseguissem, sinal de fraqueza, dispensáveis então. Zanetti seguiu para São Paulo, e lá se tornou ajudante de caminhão. Do ponto de vista de AP, um duplo objetivo: educá-lo e com o trabalho dele recrutar militantes na área de transportes. Muito rapidamente se concluiu: a colheita seria demorada.

Zanetti se integrou. E aguentou o tranco, fisicamente. Mas o recrutamento entre os colegas de trabalho não era tão simples. Uma tribo nova para ele: nordestinos, negros, mulatos, todos pobres, muito pobres, oriundos dos mais diversos recantos do Brasil, vindos a São Paulo para viver ou morrer. Dessa tribo, recebeu curioso e apropriado apelido: Branca de Neve. Os colegas, ao vê-lo tão impressionantemente branco, não resistiram. Ele não se incomodou. O fato: quisesse continuar o trabalho político, resultado, só a longo prazo. E AP tinha pressa: a Revolução não podia esperar.

Foi pra Bahia, início de 1970. Atrás da Revolução. E em maio de 1971, cai. Ele e os demais companheiros de direção são torturados de modo cruel. O Forte do Barbalho, no bairro do Barbalho, em Salvador, o cenário do terror para os quatro. Zanetti, tal a estupidez, a perversidade da tortura, resolve um dia saltar de um altura de aproximadamente seis metros, na tentativa de fugir.

Não se machucou, mas metralhadoras atentas o contiveram. Ganhou o respeito dos carrascos, e não foi mais torturado. Ao menos isso. Cumpriu uma boa parte da pena na Galeria F, da Penitenciária Lemos Brito em Salvador, outra parte em Curitiba, onde também respondia a processo.

Libertado em 1973, tenta o jornalismo. Não se acerta na profissão, com aquelas rotinas produtivas tão rigorosas. Encontra a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), organização voltada à execução de pequenos projetos comunitário em todo o Brasil, e então mergulha no Brasil profundo entre trabalhadores do campo e da cidade, entre quilombolas, indígenas, mulheres, população LGBTQI+, movimentos sociais os mais diversos, caminhada percorrida até o final da vida. A morte o alcançou nas últimas horas do dia 1º de março de 2022. Um câncer o levou.

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Dele, dessa vida voltada aos excluídos, restou uma definição preciosa, da pastora Sônia Mota, dirigente da CESE: Zanetti era um revolucionário amoroso. Na organização dirigida por ela, encontrara a possibilidade de combinar marxismo e cristianismo, o cristianismo ecumênico e voltado aos mais pobres. Quem sabe, pudesse ali exercitar a militância revolucionária, nunca abandonada por ele. 

Era, sim, um sujeito amoroso. Gentil. Delicado. Incapaz de enfrentar divergências elevando a voz.  E ao mesmo tempo, muito firme na defesa das posições por ele defendidas. E de uma coerência impressionante, revolucionário sempre. Até o fim da existência, mantinha-se na luta. Em meio à pandemia, o câncer avançando, e ele, de máscara querendo ir a todas as manifestações, e ia, mesmo desaconselhado. Os riscos, queria corrê-los, ainda mais doente como estava. Se pouco vida lhe restasse, e certamente tinha consciência disso, melhor colocasse a exígua existência a serviço da Revolução, amante desde os tempos da juventude, e da qual jamais se afastou.

É sobre esse revolucionário heterodoxo o livro de Emiliano José, autor de duas dezenas de livros, a maioria voltados ao período da ditadura. Escreveu sobre Lamarca, Marighella. Sobre o padre Renzo Rossi. Produziu alentada biografia de Waldir Pires. Uma série denominada “Galeria F: Lembranças do Mar Cinzento”, em cinco volumes, envolvendo personagens daquele período. O livro sobre o padre Renzo resultou num filme: “As asas invisíveis do padre Renzo”. Assim como “A última clandestina em Paris” também foi para o cinema. E produziu três livros sobre a imprensa brasileira. Afinal, fora professor por 25 anos da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde fez a graduação, o mestrado e o doutorado.

Leonardo Boff inspirou o título. De uma reflexão dele. Há aquelas pessoas dedicadas a ser guardiães do óleo da lamparina. Acesa, a lamparina guarda uma multidão de sonhos. Se o óleo se acaba, os sonhos morrem. Alguém deve sempre cuidar do óleo. Zanetti era um desses guardiães. Nunca deixou o óleo acabar. E a lamparina vigiada por ele jamais se apagou. As lamparinas dependem de muita gente para continuarem acesas. Para continuarem a guardar os sonhos. Como Zanetti sempre quis. Como Emiliano José retratou.

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JOSÉ, Emiliano. Zanetti: o guardião do óleo da lamparina / Emiliano José. – Curitiba : Kotter Editorial, 2023, 464 p.

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