Os desafios do IBGE e do Brasil
Confira os principais pontos da entrevista de Márcio Pochmann, presidente da instituição desde agosto de 2023, ao Centro de Mídia Alternativa Barao de Itararé, na última terça-feira (5).
POR TATIANA CARLOTTI
Após oito anos de desmonte, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está de volta sob o comando do intelectual e economista Márcio Pochmann. Professor da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), da Fundação Perseu Abramo (FPA) e do Instituto Lula, Pochmann concedeu uma entrevista ao Centro de Mídia Alternativa Barão de Itararé, na última terça-feira (5).
À bancada de jornalistas selecionados pelo Barão – Lourdes Nassif (GGN), Ricardo Nêgoo Tom (Brasil 247), Talita Galli (TVT), Professor Viaro (DCM), André Barrocal (Carta Capital), César Locatelli (Fórum21) e Henrique Rodrigues (Fórum) –, e sob mediação de Carlos Tibúrcio (Barão de Itararé, Fórum21), ele contou o que encontrou ao assumir o posto em agosto de 2023, destacou suas metas para a entidade e analisou os principais desafios do IBGE e do Brasil nos próximos anos.
Maior instituto de pesquisa do país e um patrimônio nacional, o IBGE completará 88 anos de existência em maio, sob franca recuperação, após uma brutal redução de pessoal e cortes no orçamento, perpetrados pelos desgovernos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Sob gestões desastrosas, o IBGE sofreu um desmonte de pessoal que atingiu “1 a cada 3 colegas que estão no regime permanente da instituição”, detalha.
O rebaixamento de salários chegou a 20%, levando a um desnível do piso na instituição se comparada a outras. Ele lembra que dos 11 mil servidores atuais da instituição, 7 mil são de profissionais que entram nas casas das pessoas e vão aos supermercados conferir os preços. “Os colegas que fazem esse trabalho fundamental estão ganhando R$ 1.516 por mês”.
Outra evidência do desmonte institucional é o tempo médio dos mandatos presidencias na instituição que leva meses para planejar, preparar, executar e disseminar suas pesquisas. Até 2016, a média de permanência de um presidente na instituição era de três anos e dois meses. A partir do golpe, as pessoas que passaram a comandar a instituição, sem “nenhuma experiência e sequer conhecimento de estatística”, permaneceram, em média, 1,3 ano.
Clique e confira a íntegra da entrevista.
Apesar dessa herança mais que maldita dos governos Temer e Bolsonaro, neste ano de 2024, o IBGE apresentará 314 estudos e pesquisas. “É difícil encontrar em outro país uma instituição com tanta capacidade de produção, com dados de qualidade, como o IBGE realiza”, destaca.
As expectativas também são positivas diante do Concurso Nacional Unificado do governo Lula, “o maior concurso da nossa história”, que destinará 13% de suas vagas à instituição, atraindo 1 milhão de candidatos ou 45% do total de inscritos. “Teremos uma competição acirrada que trará gente mais qualificada e preparada para que a política pública possa tomar decisões que se transformem em realidade”, comemora.
A contratação de servidores é fundamental neste momento em que vivemos uma intensa comercialização dos nossos dados pelas big techs, as gigantes de tecnologia que lucram com a disseminação em escala de fakenews (mentiras e boatos que fazem as pessoas desacreditarem dos dados da realidade). Um desafio e tanto para a principal instituição geradora de dados e informações estatísticas sobre o país.
Big techs e soberania e dados
Questionado pelos jornalistas da bancada do Barão, Pochmann elencou várias medidas que integram a instituição à revolução tecnológica em curso, tanto em termos de disseminação e integração com outros bancos de dados, quanto em termos de proteção da nossa soberania. Afinal, tratam-se dos nossos dados.
“Dados que não são públicos, não são oficiais, mas que são captados por essas grandes corporações transnacionais que fazem praticamente um censo diário, porque todos aceitaram transmitir suas informações para [elas]”. Isso se tornou “um modelo de negócios que permite às corporações que operam as big datas, as grandes empresas de dados, a terem lucros extraordinários nas bolsas de valores, inclusive, superando a riqueza das petroleiras”, aponta.
Em sua avaliação, “nós estamos vivendo um novo processo de subdesenvolvimento. Como outros países, estamos oferecendo dados e informações brutas que resultam de decisões pessoais”, por exemplo, os dados sobre os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos, as contas que pagamos, os produtos que compramos… Esses dados, explica Pochmann, “são armazenados e depois de trabalhados se transformam em preciosidades que resultam em lucros extraordinários para empresas que não pagam impostos”, e “não compartilham essa tecnologia”, alerta.
Essa é uma batalha central para o IBGE. “A exemplo de outros países, é fundamental que o Brasil conquiste a sua soberania de dados”, até porque outras instituições também produzem, processam e depositam esses dados em nuvens, ou seja, em locais administrados por essas mesmas corporações transnacionais. Nos Estados Unidos, por meio da Lei Patriota, essas grandes empresas são obrigadas a disponbilizar as suas informações, lembra.
Bússola para as políticas públicas
“Nós estamos trabalhando na perspectiva de mobilizar a sociedade brasileira, a comunidade científica, os usuários, os produtores, para que possamos levar [a questão da soberania de dados] ao Parlamento brasileiro”. Para isso, pondera o economista, “é preciso que o IBGE tenha clareza e consistência para que todos os servidores tenham capacidade de defender esse projeto”.
Neste sentido, será realizado em maio, mês de aniversário da instituição, um segundo encontro com os servidores da Casa. Em julho, a discussão vem para a sociedade civil com “uma grande conferência entre os produtores e usuários de dados do Brasil, mobilizando a comunidade acadêmica, o movimento social, a classe patronal”. A ideia é “oferecer, a partir de agosto, uma proposta de projeto de lei sobre a soberania de dados para os parlamentares se debruçarem, discutirem e tomarem suas decisões”.
Este é um exemplo de como o IBGE vem resgatando o seu papel de “bússola” para as políticas públicas e de Estado. Um papel, destaca Pochmann, atribuído por Getúlio Vargas ao criar a instituição em maio de 1936.
Fundação do Instituto Nacional de Estatística (INE), por Getúlio Vargas, em 29 de maio de 1936.
(Fonte: Memória IBGE)
Esse caráter de “centro sistematizador de informações” sofreu seu primeiro abalo em 1967, com uma reforma administrativa promovida pela ditadura, que resultou na atual fragmentação de informação em uma série de institutos país e até mesmo em cada ministério. A partir dali, o IBGE deixou de ser um “centro que sistematiza, permitindo que os próprios usuários e produtores de dados [encontrem e] usem essa informação em sua totalidade”.
O desafio agora é justamente “criar um sistema nacional de informação no Brasil, recuperando o que era o IBGE: um grande centro agregador de informações e disponibilizador dessas informações para a sociedade brasileira”.
IBGE ativo, altivo e contemporâneo
A diretriz recebida por Pochmann do presidente Lula ao assumir comando da instituição em 18 de agosto de 2023, foi a de fazer do IBGE “uma instituição ativa, altiva e contemporânea”.
Nós vivemos um “momento de inflexão das estatísticas nacionais”, explica Pochmann, ao atentar para o viés eurocêntrico da metodologia da instituição, que obedece a diretrizes elaboradas na Europa e nos Estados Unidos, portanto, uma metodologia criada com base em uma realidade muito diversa da realidade do Sul Global.
Outra necessidade é atualizar a agenda de pesquisas, incorporando metodologias que nos permitam “olhar a realidade de maneira diferente, incluindo, por exemplo, o tema ambiental e indicadores que nos permitam tratar a riqueza de outra maneira (…) Se uma empresa de mineração faz escavações, o PIB capitaliza aquilo como aumento da riqueza, desconsiderando a exploração, o impacto social, o ambiental que essa mineradora pode ter. A estatística mais atual precisa considerar os elementos destruidores de riqueza futura”, exemplifica.
As dificuldades também esbarram nos investimentos. “Nós dependemos do orçamento público que tem estado submetido a uma austeridade muito significativa que compromete a qualidade das informações que o IBGE pode realizar”. O Censo Demográfico 2022 é um exemplo disso.
Pela primeira vez, desde 1872, quando começam esses levantamentos, um censo precisou ser “realizado a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal”. Além disso, este último censo foi realizado com apenas 2/3 dos recursos investidos no levantamento de 2010. “Não fosse o esforço dos colegas do IBGE e do próprio sindicato que mobilizaram a sociedade, talvez nós não tivéssemos o censo que hoje temos, com avanços importantes”, apontou Pochmann.
Disseminação da informação
Além de resgatar a centralidade do IBGE e de garantir seus recursos, outro desafio da entidade é a disseminação das informações, ainda transmitidas no modelo anterior às redes sociais. “O IBGE abre as informações para os meios de comunicação e eles têm a responsabilidade de transmitir, mas, hoje, a maioria das pessoas não se informa por esses meios. O principal informante brasileiro é um mensageiro, uma troca de mensagens. É assim que essas informações chegam nas pessoas”, analisa.
Em busca de novas formas de segmentação de sua comunicação, o IBGE vem analisando a criação de um chat para o cidadão, que poderá usar o celular para fazer qualquer pergunta para a instuição sobre os dados do nosso país. Também está previsto um museu digital com o histórico dos censos demográficos no país, em parceria com o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
Outra frente é a atualização tecnológica e uma ampla integração com outras fontes de dados e de pesquisas, como o cadastro sobre nascimentos, mortes e casamentos, que traria informações diárias sobre a dinâmica populacional brasileira. Também existe a possibilidade de o IBGE operar com notas fiscais eletrônicas, integrando vários bancos de dados administrativos dos beneficiários de programas sociais, do INSS, por exemplo.
Próximas pesquisas
Em relação às próximas pesquisas, ele conta que está programada e deve ir à campo no final deste ano, uma pesquisa sobre o orçamento familiar do brasileiro que nos informará sobre o uso do tempo livre do brasileiro, indicando o que estamos consumindo e como e o quanto gastamos. Para 2026, corando os 90 anos da instituição, está prevista a realização de um novo censo agropecuário. Serão visitados 5 milhões de estabelecimentos nos mais diversos locais do país.
“O censo agropecuário será um mapa fundamental para olharmos o próprio modelo econômico do país, do ponto de vista de sua atuação no território nacional”, aponta Pochmann. Atualmente, destaca, o setor é o mais dinâmico do país e esto vem alterando a dinâmica geográfica do Brasil.
“Euclides da Cunha, grande autor de Os Sertões, olhava o Brasil no final do século XIX e dizia que o país era marcado por dois tipos de população: a que vivia no litoral, mais próxima do letramento e dos padrões de consumo europeu, a região moderna do Brasil; e ele olhava o interior como a região do Brasil profundo, do atraso”. Esta situação, aponta Pochmann, vem se invertendo.
“Pelos dados que IBGE vem levantando, a modernidade brasileira vem se deslocando para o centro do país”, onde vem ocorrendo a produção agropecuária e a mineração para exportação. Já as regiões litorâneas estão acumulando o atraso e a concentração da pobreza. “Há uma inversão que, a meu modo de ver, está relacionada ao modelo econômico que segue em curso no país”, aponta.
Pochmann e Lula durante a posse no IBGE, em 18 de agosto de 2023. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Pochmann destaca que a reindustrialização do país, um desafio assumido pelo presidente Lula neste seu terceiro mandato, “não se dará em oposição às atividades vinculadas às exportações primárias, pelo contrário. A produção primária que fazemos pressupõe um processamento da manufatura e a internalização dessa tecnologia”.
“A indústria é a coluna vertebral de qualquer país que pretende ser desenvolvido. A reindustrialização não se dá em oposição às atividades primárias exportadoras, mas na valorização da produção primária e do uso da tecnologia”, reitera.
Frentes de expansão
Nesta entrevista, Pochmann também analisa o bom desempenho da economia em 2023, apontando como crucial a PEC da Transição para que pudessemos alcançar índices muito além das projeções. Em sua avaliação, a negociação com o Congresso foi “absolutamente fundamental” para que tivéssemos um primeiro semestre bastante positivo do ponto de vista econômico.
“Sem a PEC, talvez tivéssemos um desempenho muito menor beirando a recessão. É bom lembrar que o PIB havia sido negativo no último trimestre de 2022. Isso alavancou e criou possibilidades para que o governo começasse com a recuperação das políticas públicas e a elevação do salário-mínimo”, avalia.
No âmbito externo, ele aponta não somente os preços das commodities permaneceram em melhor situação, como também houve uma demanda de produtos nacionais. “Nós não temos mais problemas históricos de balanço de pagamento e o Brasil inclusive tem aumentado as suas reservas, o que permite uma certa tranquilidade em relação à nossa moeda”.
Apontando que estamos sim em uma “situação relativamente adequada e satisfatória”, Pochmann destacou que o desafio agora está no investimento para a expansão de várias frentes, por exemplo, a criação de uma “grande empresa estatal capaz de operar a diversidade da química verde que a Floresta Amazônica dispõe”.
Ou outra frente relacionada à “Amazônia azul, que diz respeito aos mares brasileiros, um sistema Atlântico, uma costa enorme, praticamente pouco explorada e sem vigilância. Talvez uma grande empresa pública capaz de operar do ponto de vista de rastreamento e monitoramento do que é o fundo do mar brasileiro”.
Outro destaque é área de satélites. O espaço aéreo está permeado de satélites estrangeiros que circulam e que pertencem, ao fim e ao cabo, às mesmas corporações transnacionais onde depositamos os nossos dados.
Em relação a eles, o presidente do IBGE é categórico:
“Nós não estamos necessariamente asfixiados e condenados a continuar nesta posição quase que neocolonial. É possível reagir e o Brasil tem inteligência nacional para isso”.
Foto de capa: Marcelo Camargo/ Agência Brasil.
Repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).