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Pranto tardio por Pablo Neruda

Pranto tardio por Pablo Neruda

Caiu por terra a versão oficial sustentada por quase 50 anos, que apontava como causa da morte de Neruda um câncer de próstata já em fase de metástase

A poesia nunca foi um instrumento muito apreciado para derrubar governos, mas não há tirania que não a tema.

No último 21 de junho, o mundo foi informado das conclusões de um grupo de cientistas forenses, de distintos países, sobre a morte do poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de literatura, falecido em 23 de setembro de 1973, na Clínica Santa Maria, em Santiago do Chile. Segundo aqueles cientistas, Neruda foi envenenado com uma injeção de Clostridium botulinum no estômago,12 dias depois do sangrento golpe militar que derrubou o governo democrático de Salvador Allende, líder da Unidade Popular e seu amigo.

Assim, caiu por terra a versão oficial sustentada por quase 50 anos, que apontava como causa da morte um câncer de próstata já em fase de metástase. A denúncia foi divulgada por Rodolfo Reyes, sobrinho do poeta e advogado da família.

Não é demais recordar, a propósito, o assassinato brutal de Victor Jara, cantor e compositor, entre os mais populares do país, no Estádio Chile, também naqueles dias (16 de setembro de 1973) de matança e de terror. (Aliás, cumpre registrar aqui o lançamento, há poucos dias, da canção “Somos cinco mil”, a última que compôs antes de ser assassinado. Victor Jara emerge do silêncio, cinquenta anos depois, com os recursos da inteligência artificial…)

Tais crimes nos oferecem elementos suficientes para entendermos o ímpeto do ódio que os esbirros a serviço da ditadura do general Augusto Pinochet devotavam naquele momento da história do Chile e o fascismo, em geral, em qualquer tempo e lugar devota contra as mais elevadas expressões culturais dos povos que busca subjugar.

É conhecido o vigor com que a cultura popular chilena e sua aproximação naquele momento com a cultura convencional, acadêmica ou não, marcou seu perfil nas disputas sociais – no plano interno – sobre os rumos do país.

Esse registro vale para os anos que precederam o período da Unidade Popular, por meio da sociedade organizada nos sindicatos, movimentos comunitários, partidos, e com maior relevo durante sua vigência (1970/73). E, mais ainda, projetou de forma inequívoca a fisionomia que o país ofereceu ao mundo. O conceito que fazíamos sobre a nação chilena era aquele oferecido por sua cultura popular.

Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Violeta Parra, José Donoso, Skármeta, Quilapayún, Victor Jara, Inti-Ilimani… materializaram o que poderíamos definir como um momento de exercício de hegemonia de valores democráticos e progressistas na sociedade potencializados, no período 1970/73, pela conquista do aparelho do Estado.

De certo modo pode-se afirmar que o continente vivia um momento em que o ambiente político polarizado pela esquerda anti-imperialista convidava os criadores – os artistas – mas também os produtores e distribuidores a realizar uma reflexão sobre o papel da arte numa sociedade em acelerado processo de mudança. Sob o forte influxo do compromisso das linguagens simbólicas com as transformações sociais, como se de algum modo elas prefigurassem a sociedade socialista desejada.

No Chile, concretamente:

“Ao assumir Salvador Allende em 4 de setembro de 1970 a Presidência da República, fez-se nítida a atmosfera ideológica de esquerda que convidou os artistas a refletirem sobre o papel da arte e o comportamento deles numa sociedade em mudanças, de acordo com o itinerário político da Unidade Popular. […] a relação entre arte e revolução como fator dinamizador do processo político se opunha à relação condescendente que existia entre alguns artistas e a realidade social no interior de uma sociedade “contraditória, burguesa e capitalista, nas palavras de Mário Pedrosa, exilado no Chile naqueles anos. (Jofré, Marcela Arriagda, 2012).

Há um claro desafio proposto aos agentes culturais que se moviam no conflito de classes aberto no país. A conquista do governo nas eleições de 1970 pela

“(…) aliança social e política que se expressa na ‘Unidad Popular’, insere-se numa época de amplas transformações sociais e num contexto, por sua vez, de um clima de efervescência política – e cultural, acrescento – e de mobilização que vão pressionando crescentemente o sistema democrático-burguês, exigindo reformas de suas instituições, expandindo os espaços de participação popular, solicitando uma maior resposta a suas demandas econômicas, pressionando, em definitivo, por uma transformação das estruturas e por uma maior amplitude dos processos de mudança e de democratização global.” (Idem. Jofré, Marcela Arriagda, 2012).

Na América Latina, o impacto como é sabido, foi de grande alcance e profundidade. O continente, colhido pela vertigem da dinâmica internacional da Guerra Fria que permeava todos os territórios das ex-colônias ou neocolônias exigia dos homens e mulheres de cultura um posicionamento sem ambiguidades. O testemunho de Mário Pedrosa, perseguido pela ditadura brasileira, refugiado no Chile, como outros brasileiros, convidado por Salvador Allende para conduzir a concepção e construção do Museu da Solidariedade é eloquente:

“Não é cômodo um novo exílio na velhice. Mas aqui estou e recomeço uma vida que nunca parou de recomeçar. E assim é que recomeço, inclusive, a levantar um museu de arte moderna e experimental que a vida batizou de Museu da Solidariedade”. (Mário Pedrosa).

Todos se sentiam convocados ao que poderíamos definir como uma “batalha de valores”. Não se tratava de integrar o fazer artístico, cultural, simbólico ao mercado do entretenimento. Tratava-se de mobilizar seus arsenais de “palavras, intuições e símbolos”, para lembrar Drummond, e denunciar as iniquidades de uma sociedade sem remédio e contribuir para a construção da sociedade democrática e socialista capaz de superar as mazelas da opressão e exploração dos trabalhadores.

Abro aqui espaço para uma reminiscência que talvez nos ajude neste breve exercício sobre o lugar social que os criadores de símbolos ocupam na sociedade e na história. Dos trabalhadores da memória e da invenção.

De regresso de uma viagem a Isla Negra, há alguns anos, escrevi um texto, para explorar as convergências entre a poética de Neruda e a poética de Walt Whitman. Uma sorte de memória afetiva que me acompanha desde a juventude, quando mantive os primeiros contatos com a poesia dos dois. Partilho alguns trechos dele com vocês:

“Meus pés me trouxeram até aqui. A esta penha sobre o Pacífico onde dormem Matilde Urrutia e Pablo Neruda. Mirando o céu deste verão chileno que busca obstinado refletir nos olhos o azul do oceano que late a meus pés. Venho cumprir, mais do que um dever de poeta e militante, uma espécie de devoção aos meus mortos. E contemplar pelos olhos Juliana os espaços, os nichos, os objetos capturados, a réstia de luz que vaza pela janela sobre a constelação de conchas exiladas dos oceanos do mundo.

Aparentemente Neruda alcançou por um momento capturar a alma líquida dos mares que navegou para fixar naquela sala impossível e nos mergulhar na sua sedução. Ouço por elas o silêncio e o rumor das ondas contra Isla Negra: a catedral de espuma.

Que direito tenho eu, um homem de terra e relâmpagos – um sertanejo de ásperos chapadões tão distantes do mar – de me acercar do sono desses ossos que repousam sob a areia de Isla Negra?

Explico.

Conheci, ainda adolescente, a palavra de Pablo Neruda ao abrir uma antologia publicada em edição bilíngue, salvo engano, pela editora Sabiá, em meados dos anos 60. Com ela e o auxílio de um pequeno dicionário, aprendi com Neruda a ler em espanhol. Uma poesia vulcânica, telúrica que inventa e dá contorno a um continente que acaba de emergir dos abismos do mar. Uma poesia que se move como uma deusa a distribuir aos objetos, aos lugares, rios, cordilheiras, cidades, pessoas ainda pagãs, seus nomes e suas identidades.

(…) Um continente criado pela palavra. “No princípio era o verbo”. Dois narradores laicos, mas bíblicos: um reinventa o verso, para que nele caiba um cosmos antes indizível com os recursos da sintaxe herdada do velho continente. O outro estende o sopro pelas cordilheiras do Sul, alarga o verso para narrar o dia da criação. Em ambos a palavra cria, dá forma e som a uma realidade que escapava a qualquer medida antes imaginada. Whitman e Neruda: dois narradores da criação de um continente que emerge dos oceanos para o espanto dos olhos gastos dos navegadores”.

O que faz desses dois poetas uma perigosa ameaça aos olhos da ordem? Talvez porque todo ato de criação é, em si, um ato de liberdade. Essa intimidade entre uma e outra confere à poesia uma inata vocação para transgredir. Essa capacidade de gerar, pela palavra, a vertigem de novos mundos fora da moldura da ordem anacrônica do “homem lobo do homem”. Eles, Whitman e Neruda encarnam “A perigosa memória das lutas/ projetam a perigosa imagem dos sonhos”.

Por isso eles constituem uma ameaça ao establishment.

Isso vale para o fascismo e seus derivados, como naquela madrugada de agosto de 1936, quando uma patrulha de falangistas a serviço do franquismo deixou sobre as pedras de um tortuoso caminho de Granada, o corpo fuzilado de Federico Garcia Lorca. Essa é a obra do “Fascismo eterno”, para lembrar Eco, que nos assalta com ímpeto apocalíptico, na segunda década do século XXI.

Veja Também:  Nesta terça (21), em Brasília: lançamento do livro 'Eu só disse meu nome', de Camilo Vannuchi

Cabe recordar que naquele momento a France Navigation, empresa constituída sob os auspícios do Partido Comunista Francês, conseguira comprar uns barcos velhos, em Marselha, já no declínio da República, o Winnipeg era um deles. Com ele Pablo Neruda, então Consul chileno acreditado diante do governo republicano, numa ação a serviço da vida, organizou o resgate dos combatentes da guerra civil espanhola que sobreviveram à ofensiva final franquista, para o exílio no Chile. Neruda já doente, foi assassinado, como vimos, numa clínica médica antes de completar 70 anos. Sobre ele se dirá sempre: sobreviveu à ferocidade do fascismo, como Victor Jara, como Lorca, como antes de todos eles, antes mesmo do nascimento do fascismo, Walt Whitman que combateu de forma irredutível todas as formas de opressão.

Passado o pesadelo dos últimos seis anos – para sermos otimistas – que fez emergir o governo neofascista derrotado nas urnas de outubro último, no Brasil, não temos o direito de nos iludir e sequer por um instante arrefecer o combate à barbárie que o neofascismo disseminado na sociedade brasileira, significa.

É indispensável libertar a atividade artística e cultural das amarras do mercado que busca permanentemente reduzi-las à dimensão do entretenimento. É necessário convertê-la num fator de estímulo à ação política transformadora e engajar a juventude dos setores populares na convicção de que “nada causa mais horror à ordem/ do que homens e mulheres que sonham…”, para ferir de morte os arautos da necropolítica. Aqui reside a razão do temor de toda tirania aos poetas e o que eles representam.

Naciendo en los bosques (Tercera Residencia)

Cuando el arroz retira de la tierra

Los granos de su harina,

Cuando el trigo endurece sus pequeñas caderas y

La enramada donde la mujer y el hombre se enlazan acudo,

Para tocar el mar innumerable

De lo que continua.

Yo no soy hermano del utensílio llevado en la marea

Como en una cuna de nácar combatido:

No tiemblo en la comarca de los agonizantes despojos,

No despierto en el golpe de las tinieblas assustadas

Por el rronco pecíolo de la campana repentina,

No puedo ser, no soy el pasajero

Bajo cuyos sapatos los últimos reductos del viento palpitan

Y rígidas retornan las olas del tempo a morir.

Llevo en mi mano la paloma qu uerme reclinada en la

Semilla

Y en su fermento espeso de cal y sangre

Vive Agosto,

Vive el mes extraído de su copa profunda:

Con mi mano rodeo la nueva sombra del ala que crece:

La raíz y la pluma que mañana formarán la espesura.

Nunca declina, ni junto al balcón de manos de Hierro,

Ni en el invierno marítimo de los abandonados, ni em mi

Paso tardio

El crecimiento inmenso de la gota, ni el párpado que

Quiere ser abierto:

Porque para nacer he nacido, para encerrar el paso

De cuanto se aproxima, de cuanto a mi pecho golpea

Como un nuevo

Corazón tembloroso.

Vidas recostadas junto a mi traje como palomas

Paralelas,

O contenidas em mi propria existencia y en mi

Desordenado sonido

Para volver a ser, hasta cuándo el olor

De las más enterras flores, de las olas más trituradas

Sobre las altas piedras, guardan en mi su patria

Para volver a ser furia y perfume?

Hasta cuándo la mano del bosque en la lluvia

Me avecina con todas sus agujas

Para tejer los altos besos del follaje?

Otra vez

Escucho aproximarse como el fuego en el humo,

Nacer de la ceniza terrestre,

la luz llena de pétalos,

y apartando la tierra

en un río de espigas llega el sol a mi boca

como uma vieja lágrima enterrada que vuelve a ser

semilla.

(Tercra Residencia 1935-1945)

“Sube a nacer conmigo, Hermano.

Dame la mano desde la profunda

Zona de tu dolor diseminado.

No volverás del fondo de las rocas.

No volverás del tempo subterrâneo.

No volverá tu voz endurecida.

No volverán tus ojos taladrados.

Mírame desde el fondo de la tierra,

Labrador, tejedor, pastor callado:

Domador de guanacos tutelares:

Albañil del andamio desafiado:

Aguador de las lágrimas andinas:

joyero de los dedos machacados:

agricultor temblando en la semilla:

alfarero en tu greda derramado:

traed a la copa de esta nueva vida

vuestros viejos dolores enterrados.

Mostradme vuestra sangre y vuestro surco,

Decidme: aquí fuí castigado,

Porque la joya no brilló o la tierra

No entrego la piedra o el grano:

Señaladme la piedra en que caísteis

y la madera en que os crucificaron,

encendedme los viejos pedernales,

las viejas lámparas, los látigos pegados

a través de los siglos y de las llagas

y las hachas de brillo ensangrentado.

Yo vengo hablar por vuestra boca muerta.

A través de la tierra juntad todos

Los silenciosos labios derramados

Y desde el fondo de toda esta larga noche

Como si yo etuviera con vosotros anclado,

Contadme todo, cadena a cadena,

Eslabón a eslabón, y paso a paso,

Afilad los cuchillos que guardesteis,

Ponedlos en mi pecho y en mi mano,

Como un río de rayos amarillos,

Como un río de tigres enterrados,

Y dejadme llorar, horas, días, años,

Edades ciegas, siglos estelares.

Dadme el silencio, el água, la esperanza.

Dadme la lucha, el hierro, los volcanes.

Apegadme los cuerpos como imanes.

Acudid a mis venas y a mi boca.

Hablad por mis palavras y mi sangre.”

(Neruda, Canto General, 1950).

Brasília, 22 de setembro de 2023.

*Imagem em destaque: (Jeso Carneiro/Flickr)

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