Rubens, Waldir e Ainda estou aqui
Waldir Pires e Darcy Ribeiro.
Os dois, deitados na cabeceira da pista do aeroporto de Brasília, encobertos por uma moita.
Ao lado dos dois, Rubens Paiva.
Dia 4 de abril de 1964.
Quatro da manhã.
Movimento nenhum.
Tensos, os três.
Não se mexiam.
Darcy arrisca: acendeu um cigarro.
Cochicha no ouvido de Waldir, filosofa:
Como o poder é efêmero, uma gangorra
Cinco dias atrás, estavam no palácio.
Agora, deitados na grama.
À espera de um Cessna, um monomotor.
Em fuga, Waldir e Darcy.
Rubens, ficaria.
Destino: uma fazenda no Estado de Mato Grosso, próxima à fronteira com a Bolívia, de propriedade do ex-presidente João Goulart.
O acertado: o avião os pegaria logo na abertura do tráfego aéreo, a partir das seis da manhã.
Nunca depois disso.
Modo a escapar da cerrada vigilância imposta pelos primeiros instantes do golpe.
Mergulho no desconhecido
No horário marcado, ouvem o barulho do motor.
Os três levantam a cabeça e veem o Cessna amarelo taxiando em direção à cabeceira da pista.
Ao sentirem o avião em posição de decolagem, Waldir e Darcy se despedem calorosamente de Rubens Paiva, sobem rapidamente, apertam os cintos.
Prontos para um mergulho no desconhecido.
Tentavam escapar da violência do regime militar, recém-implantado por um golpe.
O avião já saía do chão, e os operadores da torre de controle ordenam o retorno da aeronave.
Desconfiaram de alguma coisa, e deram a ordem.
O piloto, ignorante de toda a operação e até do nome dos passageiros, relutou.
Ensaiou dar meia-volta para atender a ordem dos operadores de voo.
Darcy deu voz de comando, um grito:
Nada de voltar!
Finge que não ouviu!
O piloto obedeceu.
O Cessna ganhou altura, seguiu.
Waldir Pires me deu detalhes de tudo isso.
Está na abertura da biografia escrita por mim sobre ele.
Volto a isso, provocado pelo filmeAinda estou aqui.
Assisti agora, em 16 de novembro deste 2024.
Pensei: Waldir era um dos que podiam dizer, também, ainda estou aqui.
Sobreviveu.
Vocês saberão por que.
Fiquei comovido especialmente no momento da obtenção do atestado de óbito, e nem sei exatamente porque nesse exato instante.
O filme é lindo.
Violento, pela ditadura.
E delicado.
Waldir e Darcy descerão na fazenda.
Ficarão à espera de outro avião, como combinado.
Como isso não aconteceu, o piloto, já cúmplice da operação levantou voo, foi atrás de gasolina, e voltou no dia seguinte, 5 de abril.
Só conseguiu gasolina de caminhão, acondicionada em duas latas de querosene de vinte litros.
O plano original de Darcy e Waldir era seguirem para Porto Alegre, e lá participarem da resistência ao golpe, ao lado do presidente João Goulart e do general Ladário Teles, comandante do III Exército e fiel ao governo constitucional, contra os golpistas.
Na noite de 4 de abril, ouviram a notícia num pequeno rádio de pilha: naquele dia, à tarde, o presidente João Goulart, aterrissara no aeroporto de Montevidéu e pedira asilo político ao Uruguai.
O general Ladário Teles havia informado ao presidente não ter mais quaisquer condições de resistir.
Waldir e Darcy decidiram então seguir para o exílio.
Não havia saída.
Seguiram na direção do Uruguai.
Waldir e Darcy levavam no colo as latas com a gasolina de caminhão.
Teco-teco, abastecido a meio caminho.
Chegaram ao país vizinho, onde pediram asilo.
D’Artagnan sereno e corajoso
Rubens Paiva, um D’Artagnan na definição de Waldir, foi o articulador da fuga dos dois.
Na noite de 2 para 3 de abril, reunião no apartamento do deputado Bocaiúva Cunha em Brasília.
Sala lotada.
Analisada a conjuntura, decidiu-se a permanência em Brasília dos titulares de mandatos.
Waldir e Darcy voariam para o Rio Grande do Sul para ajudar e participar da organização da resistência e do governo da legalidade em Porto Alegre, resistência a se ver malograda, com Goulart sendo obrigado a se exilar no Uruguai.
Na reunião, Rubens Paiva assumiu a responsabilidade pela operação de tirar Waldir e Darcy de Brasília e fazê-los chegar ao Rio Grande do Sul.
Entre os tantos deputados presentes, Temperani Pereira, Salvador Losacco, Almino Afonso e Fernando Santana.
Na madrugada, Rubens Paiva passou na casa onde Waldir estava hospedado, os dois foram buscar Darcy, e seguiram para o aeroporto.
D’Artagnan no comando de toda a operação.
A mim, Waldir sempre falou com imenso carinho, com um profundo sentimento de amizade por Rubens Paiva.
Gratidão, orgulho de tê-conhecido e ter sido merecedor da amizade e solidariedade dele.
Testemunhou a imensa coragem do amigo.
A solidariedade naquele momento.
Ao resistir ao golpe, ao ser solidário com pessoas amigas, servia a uma causa a lhe parecer justa e correta.
Waldir me contou da reunião ocorrida no apartamento do deputado Bocaiúva Cunha, também um amigo muito querido, na noite de 2 para 3 de abril.
Noite.
Tudo recendendo terror e tensão.
Brasília ocupada militarmente.
Golpe consumado.
Uma presença firme, a recomendar serenidade: Rubens Paiva.
Não perdia a calma nos momentos difíceis.
Desesperar, jamais.
O filme revela essa personalidade.
Ele se adiantou e disse: estava pronto para adotar as providências necessárias para retirar de Brasília aqueles companheiros dispostos a cumprir as tarefas da resistência possível.
Dia seguinte, 3 de abril, Rubens Paiva se mexeu de todos os modos possíveis.
Tanto conseguir o avião com piloto quanto ir ao aeroporto escolher as moitas de vegetação entre as quais Waldir e Darcy deveriam se esconder à espera do avião.
Um irmão extraordinariamente valoroso e bom: outra definição carinhosa de Waldir quando se referia a Rubens Paiva.
Waldir voltou do exílio em 1970.
Antes mesmo da chegada ao Brasil, Gerbaldo Avena, irmão de dona Yolanda, fora ao Rio de Janeiro disposto a comprar um apartamento, onde Waldir e família morariam.
As orientações foram todas de Rubens Paiva, e Gerbaldo Avena comprou o apartamento de quatro quartos, à rua Tonelero, 4, 10º andar, 1001.
O primeiro a morar nesse apartamento antes de Waldir e família chegarem foi exatamente Darcy Ribeiro, endereço onde foi preso logo depois do AI-5.
Quando Waldir, estimulado pela família de Yolanda, resolve montar uma empresa de pedra britada, uma pedreira, procura Rubens Paiva e Max da Costa Santos.
Queria-os sócios do empreendimento.
Os três chegaram a visitar pedreiras em Bangu, Madureira e Nova Iguaçu, tradicionais produtoras de brita para o mercado carioca.
Não deu certo.
Max, envolvido em dificuldades na família.
Rubens Paiva, em virtude de compromissos assumidos ao comprar uma empresa de construção civil, não tinha condições também de assumir a sociedade.
Mas, D’Artagnan não deixa amigo na mão.
Indicou o amigo Bocaiúva Cunha no lugar dele.
Os três se reuniram e logo na sequência, ali pelo último trimestre de 1970, a empresa se constituiu.
Waldir tinha em Rubens Paiva um amigo sincero, solidário.
Convivia com ele e com a família.
Sequestro do suíço e a mão sangrenta do terror
Uma quarta-feira.
Dia 20 de janeiro de 1971.
Feriado municipal no Rio de Janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da Cidade Maravilhosa.
Rubens Paiva morava na avenida Delfim Moreira, na zona sul.
Manhã de sol no Leblon.
Rubens Paiva era o patriarca de uma casa acolhedora, e se compreenda o uso da palavra patriarca, aqui definindo um ser carinhoso e amplo, nada a ver com qualquer mandonismo.
Naquele dia, recebia os amigos Waldir Pires e Raul Riff, ex-secretário de imprensa de Goulart, contemporâneo de Waldir no exílio.
Jogavam conversa fora, pra abusar da expressão.
Maneira de dizer: conversavam sobre política. Entre taças de vinho e goles de Campari, bebida preferida de Rubens Paiva.
O uso do cachimbo faz a boca torta: os três, mesmo não envolvidos diretamente na vida política naquela conjuntura, estavam sempre atentos aos acontecimentos.
O Chile, colocado na roda.
Possibilidades e riscos do governo de Allende.
Rubens Paiva estivera no país havia pouco tempo.
Testemunhara a felicidade, a alegria do povo.
Waldir comenta sobre uma blitz em Copacabana, quando se dirigia ao Leblon.
Respirou aliviado por não ter sido parado.
Eram dias particularmente tensos no Rio de Janeiro.
Duas ou três palavras sobre a razão dessa tensão.
O embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher havia sido sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no dia 7 de dezembro de 1970.
Solto apenas quase quarenta dias depois, dia 16 de janeiro de 1971, ação comandada pelo Capitão Carlos Lamarca.
Não fosse a serenidade e a firmeza de Lamarca, e o embaixador teria sido morto.
A maioria dos revolucionários estava inconformada pelas sucessivas negativas da ditadura quanto a alguns dos nomes indicados pela VPR para seguirem para o exílio.
Lamarca usou da prerrogativa de comandante da ação, desobedeceu a maioria e manteve a vida de Bucher.
A ação resultou na libertação de setenta prisioneiros políticos.
E numa fúria repressiva sangrenta por parte da ditadura.
Os três continuavam conversando sobre a conjuntura, marcada pelo sequestro do suíço.
Tinham consciência e posição quanto à luta armada: consideravam-na um equívoco.
Mas sustentavam: toda a radicalização fora provocada pelo AI-5.
Waldir me contou sobre a análise de Rubens Paiva: enquanto a economia crescesse, a ditadura teria espaço para continuar, e no ano anterior o crescimento havia sido de 10%.
E foi época do chamado milagre econômico: entre 1969 e 1973, crescimentos anuais próximos dos 10%.
Waldir argumentou: apesar da falta de liberdade e do crescimento econômico, havia sinais de revolta.
Uma delas, a campanha do voto nulo nas eleições do ano anterior.
Apesar de ser contra o voto nulo, considerava ter sido uma demonstração de revolta popular.
Os três não acreditavam que viesse rapidamente alguma abertura democrática.
Rubens e Eunice insistiram muito com Waldir para ficar para o almoço.
Dava não.
Com filhos crianças e adolescentes, e num feriado, impossível não estar junto com eles e Yolanda.
Se não for, levo uma bronca sem tamanho.
Sabia como era dona Yolanda.
Rubens levou Waldir até o portão.
Combinaram almoço para o sábado, bem próximo daquela quarta-feira.
Seria servido um pato no tucupi.
Ali mesmo: casa de Rubens e Eunice.
Waldir, Yolanda, e as crianças.
Eunice e todo o resto da família.
Tudo combinado.
E Waldir foi ao encontro de Yolanda, das filhas, dos filhos.
Dali a pouco, a repressão chegou e levou Rubens Paiva.
Para a morte.
E o desaparecimento.
Tal destino seria provavelmente também o de Waldir, tivesse ficado para o almoço.
Começo da tarde, ele recebe um telefonema dando conta do internamento de Rubens Paiva.
Rapidamente, informação de Waldir, promoveu-se uma reunião com advogados e amigos na casa de Bocaiúva Cunha.
Waldir me disse:
E começara o duro infortúnio que se abateu sobre toda a família de Rubens, e a dor e a angústia que envolveram todos nós, seus amigos.
A ditadura tinha os mágicos. Os monstros encarregados pelos comandantes militares de sumirem com pessoas.
Se posso, e tomo a ousadia, aconselho a leitura de recente e essencial livro de Marcelo Godoy Cachorros. Capítulo Os mágicos: Rubens Paiva e a farsa do desaparecimento.
O chefe dos mágicos, principal responsável pela morte e desaparecimento de Rubens Paiva: o então coronel José Luiz Coelho Neto, mais tarde um dos generais da linha dura do regime. Não é só isso: o capítulo é muito mais amplo, esclarecedor.
Eunice esteve na Bahia, depois da anistia, no ato de filiação de Waldir ao PMDB, quando ele iniciava a caminhada vitoriosa em direção ao governo da Bahia.
Como se fora, e era, a representação simbólica de Rubens.
Amizade eterna.
*Imagem em destaque: Rubens Paiva com sua família (Reprodução/Memorial da Democracia)
Emiliano José da Silva Filho é jornalista, escritor, professor universitário, imortal da Academia de Letras da Bahia, formado pela Faculdade de Comunicação Universidade Federal da Bahia, onde fez Mestrado e Dourado, ex-vereador, deputado estadual e deputado federal pelo Partidos dos Trabalhadores.