Sobre a retomada do Cultura Viva e dos Pontos de Cultura pelo Ministério da Cultura

Sobre a retomada do Cultura Viva e dos Pontos de Cultura pelo Ministério da Cultura

Mais que uma mera transferência de recursos às organizações culturais de base comunitária, a Cultura Viva é viva por conta da seiva que circula entre seu tronco, que vai às folhas, frutos e flores para depois retornar à raiz. Cultivem-na.

POR CÉLIO TURINO

Tornar a Cultura Viva do tamanho do Brasil, sem dúvida, é missão da alta necessidade. Não somente como política pública stricto senso, mas para a cultura pública do país. Pelos conceitos de Cultura Viva e Ponto de Cultura, o Brasil se tornou referência na formulação de política pública de cultura para o mundo. Atualmente o programa está presente em 18 países, inspirando comunidades e governos. Em nosso país foi um programa em escala que, em apenas seis anos, de 2004 a 2010, alcançou 3.500 Pontos de Cultura no Brasil, nas mais remotas e esquecidas comunidades, em mil e cem municípios, beneficiando diretamente cerca de 9 milhões de pessoas, 900 mil das quais em atividades regulares, seja em oficinas de arte, pontos de memória, coletivos artísticos, bibliotecas comunitárias ou territórios de identidade, unindo a mais ampla diversidade brasileira.

Para além da escala e eficácia alcançadas na gestão pública, a concepção teórica da Cultura Viva e Pontos de Cultura introduziu um conjunto de conceitos profundos e sofisticados, que foram absorvidos de forma popular a bastante ampla em um conjunto de formulações sofisticadas, antes desconhecidas e hoje apropriadas e disseminadas por toda a América Latina. Reconhecer essa característica de Educação Popular contida na política pública é fundamental, assim como compreendê-la em sua profundidade, inteireza e prática são condições para se falar em retomada da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura. Por isso reapresento os conceitos de forma resumida[1]:

  1. Cultura + Natureza = Cultura Viva (incorporada aos processos de vida em biodiversidade; menos investimentos em obras e mais investimentos em gente, no fazer cultural e artístico);
  2. Cultura como fluxo em redes (mais processo que produto);
  3. Ponto de Cultura como identificação de pontos de potência nas comunidades, para uma perspectiva emancipadora (“Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio que moverei o mundo” – Arquimedes, foi a inspiração de onde tirei o nome); foco na potência contida nas comunidades, não na carência;
  4. Gestão Compartilhada e Transformadora, alicerçada no tripé autonomia-protagonismo-empoderamento sociocultural. Não somente gestão compartilhada Estado/Sociedade, há também que ter o sentido da transformação, não como retórica, mas como prática, incluindo a incorporação de novos conceitos e perspectivas advindas “de baixo para cima”. O Brasil “de baixo para cima” não pode ser discurso, tem que ser ação cotidiana, prática verdadeira, introjetada e constante, presente nos corações e nas mentes de gestores públicos e agentes de Pontos de Cultura em gestão compartilhada de fato;
  5. Aceleração de processos de aprendizagem comum através do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, de Vigostsky, em que as pessoas se percebem “iguais na diferença” indo além da identidade para realizarem exercícios de alteridade (identidade + alteridade = solidariedade);
  6. Software Livre e Cultura Digital enquanto base para uma filosofia do Comum, praticada em Encontros de Conhecimentos Livres (realizamos 82 Encontros de Conhecimentos Livres entre 2004/10, de aldeias indígenas e quilombos a favelas e grandes centros; àquela época o Brasil foi vanguarda e referência mundial em cultura digital);
  7. Economia Viva, os modos de ser e estar, a cultura, é que devem determinar a economia, jamais o contrário, se não for assim vira cultura morta, coisificada a partir de conceitos exógenos, como a chamada economia criativa ou indústrias culturais, claro que há mecanismos de indústria e de economia nas práticas culturais, mas a cultura e a criatividade têm que vir antes, não depois, economias vivas são aquelas vinculadas aos processos criativos e comunitários, são economias com alma;
  8. Tradição, memória e ruptura; tradição como ponto de diálogo com o senso comum, memória enquanto reflexão sobre as tradições, ruptura enquanto invenção para um pacto histórico pela emancipação;
  9. Arte; de todas as habilidades humanas, a arte é a que melhor nos aproxima da verdade, por ativar todas as inteligências, não somente a racional. Arte como transcendência e prática da alteridade. Cultura Viva como uma política pública de encantamento do mundo. Sem poesia não há Cultura Viva.

A esses conceitos, mui bem explicitados, explicados e difundidos quando da implementação do programa, foram se assomando outros, vindos do fluxo que deve existir em políticas públicas concebidas para serem de “baixo para cima”. Griôs, essa palavra mal era conhecida no Brasil e quando utilizada era em sua variante afrancesada Griot; Griô, o eco dos Gritadores da África, hoje um conceito apropriado por grande parte da sociedade. Interações Estéticas promovendo mais de 300 residências artísticas entre artistas profissionais e Pontos de Cultura, incluindo 15 com a Inglaterra. Cultura e Saúde. Pontinhos de Cultura para a cultura lúdica e da infância. Pontos de Memória. Pontos de Leitura. Pontos de Mídia Livre… E as Teias, mais de uma centena de Teias regionais e municipais, e quatro Teias nacionais, com milhares de pessoas de todos os Pontos e Cantos do país; sem Teia não existe Cultura Viva.

Infelizmente, por incompreensões e incompetências, houve um desmonte do programa a partir de 2011. Essa história contarei em outra oportunidade, mas o fato é que houve assédios, perseguições e abusos contra agentes dos Pontos de Cultura, levando muitos à criminalização indevida de suas prestações de contas, sem, contudo, haverem encontrado desvios ou não realização dos trabalhos na ponta. Ao contrário, na maioria das vezes o povo fez muito mais do que havia sido contratado em convênio. Com pouco o povo faz muito, com muito o Estado faz pouco. Que dessa vez a retomada seja verdadeira, leve e fraterna.

Com a anunciada retomada do programa considerei por bem recapitular esses fundamentos que tornaram a Cultura Viva algo tão potente. Hoje, quase vinte anos após haver concebido a teoria e os conceitos que fincaram raiz na árvore da Cultura Viva, percebo que são os fundamentos que tornaram o tronco dessa árvore tão fortes. Tão fortes que impediram que ela fosse abatida a machadadas. Mais que uma mera transferência de recursos às organizações culturais de base comunitária, a Cultura Viva é viva por conta da seiva que circula entre seu tronco, que vai às folhas, frutos e flores para depois retornar à raiz. Cultivem-na.

Para finalizar, algumas considerações sobre a anunciada retomada. Por favor, não entendam como crítica nem nada. Sou homem de paz e desapegado, mas ciente de minhas responsabilidades, por isso não posso me furtar nessa hora.

Anunciou-se a retomada do programa através do mecanismo de Prêmio, no valor unitário de R$ 30.000,00 para cada iniciativa, creio que em um total de 1.300. Esse valor é insuficiente para a sustentação de um Ponto de Cultura. Fui em que fiz o cálculo para definição de valores a serem aportados aos Pontos de Cultura. Em 2004, cheguei ao valor de R$ 5.000,00 por mês, R$ 60.000,00 ao ano. Esse valor se revelou adequado, permitindo uma base mínima para a manutenção de um Ponto de Cultura e suas atividades, com isso os agentes podiam se planejar e conquistar outros apoios. Mas já se passaram 20 anos (19 para ser preciso).

Veja Também:  E as despesas com juros?

Hoje, o mínimo para ser transferido a um Ponto de Cultura deveria ser de R$ 10.000,00 por mês, R$ 120.000,00 por ano, repassado em parcela única, é pouco e bem possível de ser apoiado pelo Estado e em escala. Se fosse aplicada a correção monetária no período o valor deveria ser até maior, de aproximadamente R$ 150.000,00, mas fiquemos em R$ 120.000,00 por enquanto, para que mais Pontos sejam contemplados. Claro que em tempos em que não há nada, qualquer recurso ajuda, mas há que dignificar os apoios governamentais, do contrário tudo fica muito precário e sacrificado na ponta. Há que levar em conta, inclusive, que o aporte em trabalho e afeto comunitário, se fosse mensurado em dinheiro, vale muito mais que o repassado pelo Estado. Se em 2004, com muito menos recursos orçamentários (à época, a secretaria para o qual fui convidado a dirigir dispunha de R$ 5 milhões de orçamento) e com apenas 5 servidores, conseguimos começar o programa com o dobro do valor atual do prêmio ora oferecido, se corrigido pela inflação, com o quádruplo. Agora, quando os recursos à disposição do MinC estão na ordem dos bilhões, faço um apelo, ampliem o valor do repasse inicial. E que seja contínuo. Cultura é fluxo, processo, isso está na raiz dos conceitos da Cultura Viva.

Hoje há melhores e mais facilitados mecanismos de repasse a organizações da sociedade civil, que prescindem da modalidade Convênio, podendo acontecer por Termo de Fomento, conforme definido pelo MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil). E muito importante, a Lei Cultura Viva, fruto de ampla e renhida mobilização de baixo para cima, fruto das experiências vivenciadas com o programa, que institui o Termo de Compromisso Cultural. Leis coirmãs, fruto de amplo processo de consenso progressivo, votadas com diferença de um dia, uma levando o número 13.018 e a outra 13.019/2014. E tudo isso será ainda mais facilitado quando for aprovado o Termo de Execução Cultural contido no Marco de Fomento Cultural, que está para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça na Câmara dos Deputados.

Também é necessário que aconteça para uma maior quantidade de organizações. São 4.600 Pontos de Cultura autoidentificados, registrados em plataforma do MinC. Retomar o programa com exclusão de 70% destes não é um bom caminho. Nem a seleção deve ser por disputa em edital. Isso só acirra a concorrência, quando o princípio do programa é a colaboração. No início, até para identificar a mapear as iniciativas, foi a forma de chamada pública, mas atualmente os meios são melhores. Por exemplo, analisar todos os Pontos de Cultura autoidentificados, avaliar aqueles que realmente cumprem os requisitos e que seguem mantendo atividade regular e de acesso público há no mínimo três anos, e atender a todos, sem concorrência ou disputa. Em uma nova chamada, aí sim poder-se-ia abrir um edital, ou não, pois há outras e melhores formas para estabelecer parceria com organizações da sociedade. Mantendo sempre um valor igual de repasse, para todos, evitando que aja distinção ou hierarquia entre os Pontos. Para organizações de menor porte o valor transferido pelo governo poderá ser o único aporte financeiro, para outras não, mas o importante é compreender o que uma unidade comum consegue provocar colocando os Pontos em movimento e em rede. A propósito, extraí esse método a partir dos estudos do antropólogo Bronislaw Malinowski, quando analisou os processos de trocas entre os “Argonautas do Pacífico Ocidental”, navegantes que circulavam de ilha em ilha para trocar conchas do mar. Mas, afinal, por qual razão habitantes insulares precisariam trocar conchas do mar se em todas as praias é possível encontrá-las? A explicação fica por conta dele, assim como dos Pontos de Cultura, que na III Teia, em Brasília, bradavam, todos juntos: “Somos iguais e somos diferentes!”.  

Além dessa observação sobre a retomada do Cultura Viva, tenho outra. Cultura Viva é o Brasil de baixo para cima. Por isso tem que começar pelo alicerce, pela base. Primeiro os Pontos, depois os Pontões. A rede se estabelece em processo de igualdade e colaboração, os Pontos se relacionam e daí vão formando os Pontões, como mesorredes nas mais diversas temáticas e territórios, como articuladores, capacitadores e difusores em rede. Começando de forma concomitante e com mais dispêndio de recursos para os Pontões que para os Pontos, apesar de os Pontos serem em maior quantidade, se inverte o processo. Seria o mesmo que começar a construção de uma casa pelo telhado. Antes que o telhado fique sem sustentação, faço o alerta.

Há também um outro problema, a distância nos valores ficou colossal. Para os Pontos de Cultura atuando na base, R$ 30.000,00. Para os Pontões, R$ 500.000,00. Isso dá uma diferença de 18,7 vezes. O Brasil já é o país da desigualdade em tudo, não vamos introduzi-la também na rede dos Pontos de Cultura. Mesmo sem que seja a intenção, isso vai gerar uma casta que se distancia da base. Claro que muitos que forem selecionados como Pontão realizarão excelentes trabalhos e seguirão a filosofia da Cultura Viva, mas não se trata de uma questão pessoal, de indivíduos ou grupos, e sim do processo de aplicação adequada e justa da filosofia, dos princípios. Quando eu introduzi o conceito de Pontão, entre 2005/06, zelei para que a diferença de valor recebido por um Pontão jamais ultrapassasse 5 vezes o valor recebido pelos Pontos. À época, na média de R$ 300 mil por Pontão, por vezes menos. Houve alguns casos específicos em que alguns ganharam um pouco mais que isso, como a rede de cineastas indígenas, mas pelas condições específicas e cujo trabalho abarcava toda a Amazônia, havendo gerado tantos cineastas indígenas que hoje ganham prêmios mundo afora, foi um lindo e necessário trabalho. Enfim, fica essa consideração para análise.

No mais: Viva a Cultura Viva a unir os povos!
E ainda vai brotar um Brasil como nunca se viu!
Não sei se viverei para ver, mas semeado está.    


[1] A quem tiver interesse em aprofundamento, desenvolvo teoria, conceitos e metodologia nos livros de minha autoria: “PONTO DE CULTURA – o Brasil de baixo para cima” (Anita Garibaldi, 2009 – disponibilizado gratuitamente em PDF); POR TODOS OS CAMINHOS – Pontos de Cultura na América Latina (Edições SESC, 2020) e em minha tese de doutorado VIAGEM À SEMENTE – uma anamnese da Cultura Viva – USP, 2023 (que pode ser acessada no repositório de dissertações e teses da USP). Também há, ao menos, duas dezenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, de diversos autores e todas de grande qualidade, que recomendo leitura.

Tagged:

Leave comment