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“Sem floresta, acaba a riqueza para todos”

“Sem floresta, acaba a riqueza para todos”

No mesmo período em que os indígenas do grupo Guarani Kaiowá foram atacados (e feridos) com extrema violência por jagunços e fazendeiros de grupos do agronegócio, invasores de suas terras no Mato Grosso do Sul, estreia no próximo dia 15 de julho, quinta-feira, o documentário “O Contato”, de Vicente Ferraz, que certamente entrará na seleção de um dos melhores filmes deste ano de 2024 como uma das mais consistentes, respeitosas e comoventes produções sobre os povos originários brasileiros.

A região do município de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Venezuela, conhecida como Cabeça do Cachorro, é o cenário do belo filme de Ferraz, com direção de fotografia emocionante de Luis Abramo, montagem brilhante de um dos protagonistas do cinema novo, Mair Tavares, trilha musical de Livio Tragtenberg e com a corajosa produção de Juliana de Carvalho.

O filme é dedicado à memória de Bruno Pereira, que colaborou na realização de “O Contato” poucos meses antes de ser assassinado em 2022.

O eixo da narrativa, falada em quatro línguas, acompanha o cotidiano de três membros de famílias entre os Yanomami, Arapaso, Tukano, Baniwa e Hupda, alguns dos grupos das 23 etnias que vivem na área da cidade indígena de São Gabriel. A região, com 95% da população de indígenas, é conhecida por possuir nada menos do que cinco e meio bilhões de toneladas de nióbio*. A maior reserva deste minério em todo o mundo; e não é preciso comentar a cobiça que pesa sobre esse território, e a mineração ilegal que se estende nesses confins, acrescida pelo tráfico de armas, o narcotráfico e a corrupção que reinam na área.

“Vivíamos bem antes da chegada dos brancos”, diz um dos personagens mais velhos. “Hoje, muitos dos nossos moços saem para a cidade de Cachoeira procurando trabalho e vários dos que não conseguem voltam para as aldeias e se suicidam”. Conscientizam a perda da língua, da tradição e da identidade.

As três histórias dos personagens centrais relatadas em “O Contato” estão conectadas pelo Rio Negro. Em uma delas, o motivo é levar o filho mais novo nessa viagem para conhecer a avó, que é de outro povo. Na outra, uma mulher vai até a cidade para se medicar e cuidar da sua depressão. Na terceira, é uma família que leva um filme antigo sobre seu povo para ser exibido na aldeia. Eles percorrem três mil quilômetros na empreitada.

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As lembranças se sucedem, ilustradas em alguns casos por filmes de arquivo de expedições antigas, como a Expedição do Roncador-Xingu, dos irmãos Villas Boas. “Temos tantas línguas”… diz um personagem. Outro comenta sobre as transformações que sofreram. Os mais velhos fumam o “cachimbo da transformação” e lembram o desmatamento, o sarampo e a tuberculose, e as doenças que chegaram com a abertura de estradas. “Os brancos entraram, não nos avisaram e destruíram terras sagradas dos Yanomami”.

Em uma extensa sequência, o espectador segue a ‘(re)educação’ e conversão de crianças indígenas nas escolas religiosas instaladas na região pelos padres missionários. Novas lembranças e mais memórias são registradas pelos ex-alunos. A construção de igrejas e dos seminários, os professores rigorosos, os “educadores” que castigavam – “não davam a merenda” –, os cânticos, as cerimônias dos batizados.

Outro take avassalador é o da fila de curumins, garotos indígenas, nas suas aldeias, operando seus celulares.

“Mas estudávamos muito”, diz a mulher que sofre de depressão. “Aprendi a palavra medo”, diz uma Yanomami. “Por isto sou tão medrosa”. Outro personagem conta como sentia falta da mãe e da família durante os anos vividos na missão. “À medida que aprendíamos com os missionários, íamos também perdendo a nossa cultura”.

“Conviver com os povos do Alto Rio Negro e manter uma amizade com eles nos últimos quatro anos transformou completamente minha maneira de ver o mundo. A ameaça que eles sofrem diariamente me fez entender que os miseráveis, existencialmente, somos nós, os ‘brancos’, mergulhados em uma cultura ‘turbo materialista’ que está arruinando o planeta”, diz o diretor.

E, se podemos resumir a beleza nostálgica e a importância do doc de Vicente Ferraz e da sua brava equipe, nesse filme que é um dos mais respeitosos e cheio de amor pelos nossos povos originários, convém ouvir a fala de um personagem idoso: “Nossas florestas são cheias de riquezas que os brancos querem tomar da gente. O que fazer para impedi-los?”

Com a experiência dos seus povos, o mesmo velho sábio conclui: “Quando não houver mais floresta, também não haverá mais riqueza”. Para ninguém. Simples assim.

Em tempo: o filme, que estreia em cinemas do Rio de Janeiro, Manaus, Belém, Brasília e São Paulo, teve o apoio das comunidades Iauaretê, Santa Maria, Taracuá, Urubuquara, Ipanoré e Juquira.

*O nióbio é um metal raro e de grande valor estratégico, aplicado em supercondutores, na indústria aeroespacial, eletrônica e na medicina, entre outras áreas.

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