Integridade e resistência contra a ditadura
Filme da cineasta maranhense Isa Albuquerque se inscreve na atual e numerosa produção de documentários que rememoram a resistência, armada ou passiva, ao período ditatorial
Nesta temporada de revirar os desvãos da memória e das experiências pessoais vividas durante o nefasto período da ditadura civil-militar de 1964, o filme da cineasta maranhense Isa Albuquerque, Codinome Clemente, de 2020, se inscreve na atual e numerosa produção de documentários que rememoram a resistência, armada ou passiva, ao período ditatorial. O filme ganhou excelente repercussão, uma crítica especializada e positiva no streaming* e participou do circuito de diversos festivais.
Com uma hora e 40 minutos, é um documentário importante, realizado em cinema direto, com entrevistas de ex-companheiros, de amigos e de alguns membros da família do protagonista, porém centralizado nas intervenções do próprio ex-comandante da Aliança Libertadora Nacional, uma das organizações mais aguerridas da luta urbana e armada nos anos 60/70.
A histórica ALN foi comandada por Carlos Marighella, e em seguida ao seu assassinato, pelo guerrilheiro Joaquim Câmara Ferreira, torturado e morto dentro do DOI-Codi de São Paulo. Carlos Eugênio da Paz, o Clemente (codinome em lembrança do jogador do time do Corinthians, na época) sucedeu aos dois. Até poucos anos era o único sobrevivente da liderança do grupo.
A produção desse documentário autobiográfico com o professor, escritor e músico alagoano – que foram as atividades profissionais da segunda vida de Carlos Eugênio depois da sua volta do exílio – durou sete anos. Isa filmou-o no Rio, em São Paulo, em Paris, e acrescentou diversos filmes de arquivo da época, de boa qualidade e com momentos decisivos da luta em face da ditadura. Além das entrevistas, a diretora utilizou desenhos produzidos livremente e com o objetivo de articular e explicar ações políticas de enfrentamento direto, de rua. Roubos de carros, assaltos a bancos etc., descritos minuciosamente por aquele que desde muito jovem, cerca de 17 anos, ingressou na guerrilha urbana, organizou estratégias e liderou essas operações. Quase sempre na linha de frente delas.
Paz foi autor de um tiro que chegou a atingir apenas a ponta do nariz do nefasto delegado Fleury, em ação de emboscada numa rua de São Paulo descrita por ele em uma de suas entrevistas a Isa. Um erro de pontaria que o guerrilheiro sempre lamentou – como se vê no filme.
Três anos depois o mesmo Fleury prendeu e torturou durante um mês Maria da Conceição Coelho Paz, mãe de Clemente, tentando forçá-la a delatar o filho que naquele momento já deixara o Brasil de ônibus atravessando a fronteira com a Argentina, asilando-se em seguida em Havana, na Tchecoslováquia e depois em Moscou, e terminando seus estudos de música, dança e arte dramática em Paris. Há uma sequência em Codinome Clemente com Carlos Eugênio reunido com amigos na capital francesa.
O protagonista conta também, com minúcias, como comandou a operação contra Henning Boilesen, o industrial dinamarquês radicado em São Paulo, durante a qual foi alvejado e morto com o tiro de misericórdia que ele próprio, Clemente, disparou contra a sórdida figura, à luz do dia, na Rua Barão de Capanema, bairro de Jardim Paulista, em 1971.
Como se sabe, Boilesen foi um dos maiores financiadores da Oban, a Operação Bandeirante. É tristemente célebre por ter sido convidado frequente pelas chefias de agentes policiais para sessões de tortura nas instalações do DOI-Codi paulista em companhia dos quais se comprazia em assisti-las.
Por vezes, o oportuno doc de Isa Albuquerque perde o ritmo cinematográfico e em outras não define com clareza o momento, as datas em particular, de certas passagens da vida pessoal do personagem central. Mas a seriedade, a integridade, e a consistência e serenidade das falas de Carlos Eugênio, fumando sempre seu indefectível cigarro e retratando os episódios dramáticos vividos por ele compensam eventuais desacertos técnicos.
O ex-comandante da ALN foi um dos últimos brasileiros anistiados, em maio de 1982, depois de uma batalha judicial de mais de um ano com o Supremo Tribunal Federal. Durante a sua “segunda vida”, que também foi mais do que trepidante, chegou a ser professor de música na Escola Parque, um dos primeiros colégios progressistas da Zona Sul do Rio de Janeiro. Foi também professor da UFRJ e assessor da presidência do PSB, o partido Socialista Brasileiro. E escreveu e publicou os livros Viagem à Luta Armada (Civilização Brasileira, 1996) e Nas Trilhas da ALN (Record, 1997).
A última entrevista para Codinome Clemente, das muitas concedidas a Isa Albuquerque e à sua equipe, durante os sete anos de produção do filme, ocorreu pouco antes de sua morte, em 2019, aos 69 anos. Ele vivia na cidade de Ribeirão Preto, casado com a historiadora Maria Claudia Badan Ribeiro, pesquisadora da atuação das mulheres na ALN.
*Disponível na Claro TV+, Oi Play, e Globoplay
Jornalista.