O dedo na ferida do Brasil e do mundo

O dedo na ferida do Brasil e do mundo

No filme de Silvio Tendler, Dedo na Ferida, os protagonistas são Costa Gavras, Yanis Varoufakis, Celso Amorim, João Pedro Stédile, Paulo Nogueira Batista, Raquel Rolnik, Laura Carvalho e mais onze companheiros mostrando como as grandes corporações se tornaram governos sombra ao sequestrar o estado de bem estar e a justiça social

“Tempos sombrios. O mundo se depara com a perda progressiva de direitos sociais e com o ressurgimento de movimentos de extrema-direita”, ressalta a produção do documentário Dedo naFerida, de Silvio Tendler, que estreia  amanhã no Rio de Janeiro e, logo em seguida, em Brasília, São Paulo,  Fortaleza e Porto Alegre. Eleito pelo público como Melhor Documentário no Festival do Rio de 2017, participante da mostra competitiva do Festival de Havana, ano passado e Menção Especial no conceituado festival argentino FICIP, o Festival Internacional de Cinema Político, o filme de Tendler, um campeão de bilheteria de documentário brasileiro, discute o retrocesso ideológico a posições neoconservadoras e o empobrecimento da classe média pela falência dos Estados e pelo desemprego.

Sua proposta é mostrar como “grandes corporações, às vezes, detêm orçamentos mais robustos do que o de alguns Estados e atuam como um governo sombra, com políticas públicas que favorecem a maximização dos lucros”.

Dedo na Ferida fala do fim do estado de bem-estar social em um cenário onde a lógica homicida do capital financeiro inviabiliza a justiça social.

“Neste momento, no Brasil”, afirma Tendler, “a situação se agrava. A crise de desabastecimento que estamos vivendo é resultado da chave de rim que deram no Estado imobilizado diante da ganância desse capitalismo selvagem. Durante o processo de impeachment eles falavam em doze milhões de desempregados; hoje reconhecem 24 milhões. Os bancos já não sabem o que fazer com tanto dinheiro e o desgoverno é total”.

Dois dos mais combativos atores da resistência política à ditadura do (des) governo atual do Brasil, o Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro e a Federação Interestadual de Engenheiros (Fisenge) são os produtores que permitiram ao diretor botar na rua mais esse, um dos 80 documentários de sua autoria.

O filme amplia a dimensão política. É um registro contundente do ambiente caótico internacional criado pelas políticas ultraneoliberais dos grupos arquimilionários transnacionais que cooptaram a política em praticamente todos os cantos do planeta.

Em particular, o filme é o retrato do Brasil 2017/2018 no qual a luta de classes, que nunca deixou de existir, explodiu com violência destilando o ódio trancado no armário desde sempre e onde as máscaras das políticas neoliberais expuseram a realidade do protofascismo, da intolerância, safadeza e da mediocridade.

O documentário de Tendler e dos bravos engenheiros brasileiros põe o dedo na ferida do drama político, social e econômico vivido aqui e lá fora. Para intitular o seu trabalho, o diretor se apropriou da antiga e popular expressão utilizada pelo economista Paulo Nogueira Batista, um dos dezoito entrevistados.

No Festival do Rio, em setembro passado, Dedo na ferida ganhou o Troféu Redentor. Foi escolhido pelo Júri Popular o melhor documentário de longa metragem e saudado pelos espectadores, nas sessões lotadas, com gritos de bravo’ No seu discurso de agradecimento, na ocasião, Silvio se referiu a Glauber Rocha. “Mais fortes são os poderes do povo”, dizia o cineasta baiano.  

Os poderes que valem.

Os entrevistados de Tendler são cientistas políticos, professores, economistas e escritores – do Brasil, da França, Espanha, Estados Unidos, Grécia e Itália. Eles participam do filme numa sequência ágil, mas mantida a consistência dos comentários e das suas observações por força da montagem segura e serena de Francisco Slade.

Às vezes, parecem estar conversando uns com os outros: Constantino Costa Gavras, David Harvey, Yanis Varoufakis, ex-ministro de Finanças da Grécia, Gianni Tognoni, do Tribunal Permanente dos Povos, na Itália; João Pedro Stédile, do MST, Keith Cattley, economista, empresário e co-roteirista, o ex-chanceler Celso Amorim, Guilherme Melo, da Unicamp e Paulo Nogueira Batista, ex-vice-presidente do Banco dos BRICS.

Também Lasdislau Dowbor, professor de economia da PUC/SP, a professora de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik, Guilherme Boulos, do MTST e Boaventura de Sousa Santos, sociólogo da Universidade de Coimbra. E o brilhante sindicalista boliviano Oscar Oliveira, a professora de Filosofia e Direito Maria José Dulce, da Universidade de Madri, Laura Carvalho, professora de economia da USP e o jornalista Luiz Nassif.

Fazendo de fio condutor do filme ele traz para o Brasil a vida cotidiana com sua falta de perspectivas, a difícil rotina do podólogo Anderson Marinho, que sai de casa, em Japerí, município mais atrasado do estado do Rio de Janeiro, (menor índice de desenvolvimento humano, o IDH), às cinco da manhã e cerca de duas horas depois de penar em trem e metrô, desembarca em Copacabana, diariamente, para trabalhar na zona sul da cidade. Ele reforça, como um exemplo, as observações dos entrevistados teóricos, e reitera, com a sua existência, o abandono histórico da classe dos pobres, no Brasil: trabalhadores (os que ainda têm empregos, cada vez mais precários) e os da ralé, no dizer do professor Jessé Souza.

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O diretor Constantino Costa Gavras, de Paris, abre a galeria de entrevistas. Vai direto ao ponto: a primeira religião é o dinheiro, ele diz. “Vivemos um período particular na história da humanidade que está negando o que foi feito antes, no plano social e no plano humano. Foi tudo anulado por grupos muito poderosos que dirigem a economia mundial em favor de seus acionistas e detêm a maior parte dos bens deste mundo”.

Ao que a professora Maria José Dulce, em Madri, replica: o discurso da ideologia da austeridade econômica e da teoria do ‘temos que cortar para recuperar’ é falso. “É uma mentira. Fala-se das políticas de austeridade econômica como se fosse algo técnico quando não é. É um projeto e plano ideológico que desemboca no aumento da desigualdade e na perda de direitos em retrocesso”.

Varoufakis completa: “Há uma tentativa de botar o custo (das crises) nos ombros dos mais fracos, das populações das periferias européias. O resultado é o reerguimento das fronteiras, da misantropia, das cercas e do racismo”.

A professora Laura Carvalho lembra: “A população é convencida que tem que se sacrificar e se comportar ‘bem’. Dizem a ela: ‘Não dáVocê não pode querer isto’.”

Costa Gavras anota: “A classe média está sendo destruída. E o poder político é transferido para o poder dos endinheirados e para os bancos em especial, o que significa o começo do fim da democracia”.

Início do reino dos governos sombra, como diz Tognoni. “Em Bruxelas, um exército permanente de lobistas garantem a continuidade de determinadas leis nas comissões de modo que os governos possam responder, direta ou indiretamente, às corporações”.

Stédile faz coro: “E mesmo havendo voto, os direitos fundamentais – trabalho, escola, moradia, terra – não foram democratizados. Vedados esses direitos não existe democracia”.

O sindicalista boliviano Oscar Oliveira também põe o seu dedo na ferida e sem anestesia: “O banco é um lugar de ladrões, um espaço no qual há pessoas pensando como podem ser cada vez mais ricas, como podem se apropriar dos nossos bens comuns, do nosso território, dos nossos recursos naturais. Eliminam a possibilidade de se construir vida. O banco é um lugar onde se fabrica dinheiro e introduz essa cadeia criminosa de consumismo no norte e de miséria no sul”.

Varoufakis, Amorim, Nogueira Batista, Costa Gavras e  companheiros estão de acordo: as populações não têm mais o direito de definir os caminhos do seu país; eles já estão definidos a priori. A democracia não está mais autorizada a mudar políticas econômicas. A participação das corporações influencia os processos econômicos de uma nação. O capitalismo de hoje, por ser especulativo, é um ‘capitalismo de cassino’ segundo a professora Dulce, na Espanha.

Sobre o direito à moradia, a professora Rolnik, em São Paulo, arremata: “Nossas cidades se tornaram máquinas de produzir sem-tetos”.

Quem põe o dedo na ferida original é Nogueira Batista, na entrevista que deu a Tendler pouco antes de deixar, forçado, o banco dos BRICS: “O dedo na ferida não foi colocado na crise de 2008, na financeirização que mostra a resiliência do poder financeiro: por isto ele passa por crises terríveis, mas sempre volta!”. 

Cobrindo a sua fala, as imagens de catadores de guimbas de cigarros nas ruas e o cartaz: “Somos gregos ou a Grécia é o Brasil?”.

O documentário de Silvio Tendler é uma janela de ar aberta sobre um mundo apodrecido. Deve ser mostrado e discutido em universidades, sindicatos, seminários, debates, diretórios de estudantes, reuniões de partidos políticos e de movimentos sociais. Em todos os locais onde haja pessoas interessadas em lancetar a ferida, lutar e resistir ao oceano de mentiras e de desfaçatez como ocorre no Brasil atual supostamente governado(?) por quem não tem o que perder – exceto os foros privilegiados da justiça.

“Para não desvalorizar as ações da Petrobrás em Nova Iorque, para os acionistas não perderem dinheiro, nós cidadãos desembolsaremos cinco bilhões para repassar para um bando de espertos. Se estivéssemos em um Estado democrático a Petrobrás agiria de acordo com os interesses do país e não de acordo com os dos que especulam na bolsa de valores”, acentua Tendler.

Ele termina o documentário com um comovente conjunto musical de Japerí tocando uma canção cujo refrão pede: “Vamos sonhar, gente”.

Ainda será legítimo contar com o ”vamos sonhar” do pessoal de Japerí.

Fazemos coro ao alerta do cineasta: “Mais que nunca é preciso sonhar. Baixar a guarda, jamais. Sem sonho não enfrentaremos a realidade”.

*Publicado originalmente no site Carta Maior

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