O horror do fanatismo em Meshed
Tema principal do iraniano ‘Holy Spider’ é a religiosidade obcecada, nesse caso a da fé muçulmana, o terraplanismo e a perversidade emergentes do fundo do ser adormecido de conservadores em geral hipócritas, criminosos latentes em hibernação
O mundo multipolar abrigou com vigor a indústria do cinema, hoje uma fábrica internacional de produção frenética de áudio visual que irradia filmes e séries realizados não mais apenas pelos centros tradicionais, mas com frequência cada vez maior vindas de diversos territórios do planeta.
Empresas que se multiplicam, as plataformas de exibição on-line forçam os cinemas a lutar pela sobrevivência diante das maratonas domésticas proporcionadas pelas séries. Filmes documentários ou de ficção, mas muitos com a raiz plantada no mundo real, trazem culturas até então pouco conhecidas do grande público. E centenas de produtos de áudio visual são criados por uma nova geração de cineastas, muitos deles imigrantes e refugiados políticos que, ironia das ironias, procura viver e trabalhar na Europa fugindo das rebeliões, revoluções e guerras híbridas instigadas nos bastidores de governos dos países ocidentais ‘desenvolvidos’.
É o caso do filme Holy Spider* (Aranha Sagrada em traduçãoliteral), de Ali Abbasi, 42 anos, diretor, roteirista e editor nascido em Teerã e de nacionalidade dinamarquesa, ex-estudante universitário na capital iraniana e na universidade de Estocolmo. Hoje Abbasi vive em Copenhagen e é também autor de Border, um filme perturbador e grande sucesso internacional, de 2018.
“Holy Spider não é um filme de serial killer, mas um filme sobre uma sociedade serial killer”, ressalta o iraniano nas entrevistas que concedeu quando da estreia desse seu novo filme documental. “É uma história com muitas camadas que mapeiam o que há de errado com a sociedade iraniana. Os assassinatos que constam da história não têm nada de especial. Há até certa banalidade neles. Mas o que está no entorno do assassino e o respeito que ele inspirou na população é fascinante”.
A base da narrativa do seu filme, rodado na Jordânia, é real e ocorreu entre 2000 e 2001, em Meshed, cidade sagrada do Irã, quando Saeed Hanaei, tido como respeitável pai de família e veterano de guerra passou meses percorrendo de madrugada as ruas dos bairros pobres atraindo prostitutas para a garupa de sua motocicleta para depois matá-las enforcando-as com seus próprios hijabs.
Na época, o caso ficou conhecido na imprensa iraniana como spider*; o homem matou cerca de 20 mulheres para “limpar” Meshed, a segunda maior cidade do país.
Essa é a primeira camada do filme, a do thriller policial em si mesmo. No segundo tempo, ou segundo ato da obra sinistra, Abbasi inseriu no roteiro o personagem fictício de uma jovem jornalista, Arezoo Rahimi, que enfrenta e luta contra o descaso das autoridades judiciais e a misoginia da sociedade em geral ao investigar os assassinatos para o seu jornal. Em seguida, o filme documental acompanha debates exaltados sobre o assunto e o seu desfecho.
O tema principal de Holy Spider, mais do que apenas um filme de suspense, por sinal bem construído, é a religiosidade obcecada, nesse caso a da fé muçulmana, o terraplanismo e a perversidade emergentes do fundo do ser adormecido de conservadores em geral hipócritas, criminosos latentes em hibernação.
O comportamento imoral, repugnante, das forças de segurança pública em Meshed é equivalente ao das ações policiais frequentes em várias das cidades do mundo, como acompanhamos com regularidade nos nossos centros urbanos, e sempre em territórios onde vive população mais vulnerável, porque pobre, proletária e desassistida pelo Estado.
O filme enfatiza essa condição das populações precarizadas ao redor do mundo – particularmente de mulheres, crianças, idosos(as), homossexuais, bi, transexuais, e vítimas do racismo e da misoginia – seguindo o caso do personagem de Soghra, uma das prostitutas assassinadas que sobe na moto do criminoso na sua viagem rumo à morte porque estava ‘apenas’ grávida, morta de fome e sem dinheiro na bolsa. Pede ao assassino para comer uma maçã pouco antes de ele enforcá-la.
Recomendamos com entusiasmo Holy Spider. Pode não ser obra com o alto nível artístico do cinema iraniano ao qual estamos acostumados; mas é um bom filme comercial, com ritmo, densidade, manejando bem com tensões e com os clichês, e com dois intérpretes excelentes em um elenco profissional.
Um ótimo filme documental, repetimos, que proporcionou a Zar Amir Ebrahimi o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 2022 fazendo a jovem jornalista, e elogios ao convincente ator Mehdi Bajestani no papel do assassino ex-combatente da guerra Irã-Iraque.
O tema, de como a religiosidade cega pode conspurcar a política e envenenar mentes e corações desembocando no terraplanismo e na ignorância de origem fascista, procura nos golpear em várias partes do mundo neste momento. O filme de Abassi vem auxiliar na reflexão e no combate em todos os seus aspectos a essa situação de guerra para que o fascismo e o nazismo sejam devolvidos ao esgoto do tempo histórico mais uma vez.
*Disponível na Claro.
** Aranha, gíria de prostituta
Jornalista.