O passado brasileiro que esbarra no presente

O passado brasileiro que esbarra no presente

Documentário Memória Sufocada traz imagens que vão do histórico dia primeiro de abril de 1964 a chocantes episódios do mandato do genocida

Por Léa Maria Aarão Reis 

O paulista Gabriel Di Giacomo, autor de Memória Sufocada*, assim como centenas de outros artistas que tiveram seus trabalhos interrompidos pela pandemia, em 2020/21, também precisaram parar e reconsiderar a realização do seu projeto, o documentário sobre a ditadura civil-militar no Brasil imposta em 1964, e adaptou a produção ao que era possível fazer naquele momento difícil. 

O filme, de uma hora e 16 minutos, lançado esta semana nos cinemas, é basicamente o resultado da compilação enxuta, segura e competente de arquivos de imagens pesquisados e vão do histórico dia primeiro de abril de 1964 perpassando alguns dos ainda hoje chocantes episódios do mandato do genocida que administrou o país durante os quatro últimos anos, quase destruindo-o, e culmina com o violento oito de janeiro deste ano.  

O doc se volta para um passado mal resolvido, se relaciona com o presente e com a eleição para presidente de 2018 e segue adiante. 

O eixo do filme de Giacomo – seu segundo longa-metragem (o primeiro é Marcha Cega), um vai e vem entre o ontem que emerge com força atualmente e o tempo de agora, de ameaças neofascistas -, é a  repugnante figura do conhecido ”coronel Ustra”, o gaúcho Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e único militar condenado durante a ditadura, porém condecorado com a medalha do Pacificador (!) das forças armadas, e um dos mais destacados símbolos das atrocidades cometidas no período em que chefiou o centro de tortura e assassinato de pessoas que se opunham à ditadura militar; o DOI-CODI do II Exército, em São Paulo. Morreu aos 83 anos, em 2015. 

O último ex-presidente o exalta como herói e o seu voto favorável ao impedimento da presidente Dilma Rousseff em plena sessão do Congresso é um dos momentos mais vergonhosos da política brasileira e relembrado in loco no filme.  

Assim, através de buscas pela internet, como registra a sua produção, ”o passado do Brasil vai sendo reconstruído e esbarra no presente”. Abre o documentário a sequência sombria com um longo travelling dentro do Doi-Codi de São Paulo filmado pela primeira equipe de cinema autorizada a fazê-lo. Hoje o centro de tortura de ontem é uma delegacia.  

Giacomo, da geração de jovens cineastas brasileiros, nos traz dois detalhes significativos. Conta que uma das coisas que mais o surpreendeu, na sua pesquisa, foram as propagandas do governo da época, ”mistura de inocência com perversidade e recheadas de mentiras”.  

“Uma delas, a tentativa de responsabilizar a população pelo aumento da inflação dizendo que a solução depende de todos, que bastava pechinchar para os preços caírem; parece um esquete. Na época, a inflação estava perto de 40% ao ano e o regime tentava terceirizar a culpa do fracasso econômico para o povo; uma covardia muito grande.”  

Outro detalhe que o surpreende é constatar, na sua pesquisa no ”incrível” acervo de imagens da Comissão Nacional da Verdade e do Arquivo Nacional o baixo número de visualizações dos vídeos pelo cidadão comum. Sobre a eleição de 2018, ele comenta: “Ainda acredito na velha máxima de que podemos aprender com os erros do passado. Não aceitar a relativização dos erros é uma forma para no futuro não elegermos novos bolsonaros” 

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Para o diretor – e para todos nós-, ”o processo de construção da memória da ditadura brasileira segue em disputa”. É o nosso passado que continua precisando ser devidamente exorcizado. 

Para relembrar e não esquecer jamais, abaixo vai um pequeno roteiro do trajeto de imagens, cenas e sequências históricas do nosso vai-e-vem de passado e presente em Memória Sufocada.

Mais do que nunca hoje, desde 1985, é essencial que as jovens gerações conheçam nosso tortuoso caminho até aqui.  

– Depoimentos de Ustra na Comissão Nacional da Verdade. Sempre arrogante, sempre agressivo. Todos os generais entrevistados em outros momentos, também mostram um misto de presunção e atrevimento. 

– Repetição de slogans da época usados em Brasília em 2016: “O exército nos salvou do comunismo”. 

– Carlos Lacerda em entrevista a um jornalista norte-americano, em 1967, definindo o Presidente João Goulart como ”suicida político”. 

– Ainda Lacerda, bastante constrangido, desviando o olhar do entrevistador: ”Nós tentávamos manter a lei e a ordem”… Nega também o hoje comprovado financiamento do IPÊS (grupamento de empresários e militares conspiradores) ao golpe. ”Não”! ele reage. 

– O então presidente Lyndon Johnson, em Washington, fazendo as contas e declarando alguns ”milhões de dólares” derramados no Brasil para financiar o golpe e a ditadura. Falava-se em 12 milhões de dólares. 

– O culto obsessivo que civis, homens, mulheres, crianças deveriam demonstrar aos símbolos nacionais (hinos, bandeiras); uma apropriação nacionalista fascista/neofascista.  

– A aliança política em determinado momento de Lacerda/Kubitschek/ João Goulart. 

– O general Mourão (hoje, senador da República) defendendo os militares que torturaram: “Eles defenderam a ditadura; eram pessoas que lutaram contra a guerrilha urbana”. 

– Entre os testemunhos de vítimas da ditadura no Doi-Codi durante sessões da Comissão Nacional da Verdade, os de Maria Amélia Teles, Gilberto Natalini, Darci Miyaki, Adriano Diogo. 

– Sobre o ignóbil voto do ex-presidente favorável ao impedimento de Dilma Rousseff: “Não se entende, lá fora, como a Casa da Democracia votou contra a Democracia e pela Ditadura e Tortura”. 

– ”Ninguém foi condenado pelos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante o período ditatorial”, lembra o letreiro final de Memória Sufocada. 

* O documentário estreou na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2021, recebeu Menção Especial do júri no Festival de Málaga, foi selecionado para o Festival Visions du Réel e para o Cine y Derechos Humanos de Madrid.  

Trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=ZMvoUTPE27k&authuser=0

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