Uma tragédia africana
A ver ‘Beasts of No Nation’ e refletir na recente estimativa da Unicef apontando para cerca de 300.000 crianças que participam, hoje, em conflitos em todo o mundo
Em 2005, o escritor de origem nigeriana Uzodinma Iweala, 42 anos, nascido nos Estados Unidos e licenciado pela Universidade de Harvard, recebeu o premio de Melhor Livro do Ano como autor do volume Beasts of No Nation. Iweala viaja com frequência e divide o seu tempo entre os Estados Unidos e a Nigéria, terra de seus ancestrais, fazendo trabalho humanitário. Ele é da equipe de uma escola da ONU/Unicef destinada à recuperação de meninos e meninas cooptados brutalmente pelas guerras civis, pelos conflitos armados e pelas milícias e gangues que operam no continente africano.
Eles e elas são uma parte da herança maldita que a descolonização europeia deixou no rastro da sua ocupação brutal dos países do continente. Em especial do Sudão, Ruanda, Mali, Congo, Burundi, e Angola.
Quando leu esse livro um outro filho de imigrante, esse japonês, que nasceu, vive e trabalha com sucesso em Los Angeles, Hollywood, o diretor Cary Fukunaga, de 43 anos, (autor do filme 007- Sem tempo para morrer) imaginou fazer da trágica história narrada por dentro dela mesma através da experiência pessoal de Iweala com a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, um filme sobre as crianças-soldados africanas.
Fukunaga trabalhou durante sete anos no roteiro batalhando pelo financiamento da produção e acabou iniciando as filmagens em 2014, em Gana.
Esta é a história fora da tela do filme que conservou o mesmo título do livro. O argumento de Beasts of No Nation, comprado pelo streaming*, estreou em 2021 (também foi exibido como série, na TV americana), e este ano, com mais um episódio sangrento do conflito armado entre generais sudaneses, militares e paramilitares locais, cúmplices em vastos negócios dos grandes oligopólios transnacionais europeus, americanos e asiáticos, o filme voltou a decolar no ranking das produções mais procuradas on-line.
O roteiro segue o protagonista, o menino Agu (Abraham Attah estreando como ator profissional) com sua família, vivendo a vida de uma criança alegre e inocente em uma aldeia de um país indefinido situada em zona de proteção fora do alcance de forças adversárias e da matança além de fronteiras demarcadas.
Certo dia, uma milícia invade o território da aldeia, chacina os habitantes, outros conseguem fugir – como a mãe de Agu – e o menino também foragido e perdido no meio da floresta acaba sequestrado por um grupo de milicianos que vão treiná-lo para ser uma criança-soldado.
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No segundo ato do filme de Fukunaga, se estendem os lances do treinamento perverso do garoto, ainda mais impressionante se pensar que na realidade, nessa tragédia de puro horror, 3.600 crianças foram ‘’desmobilizadas’’ com a ajuda de instituições da ONU e salvas das forças armadas e das milícias do Sudão do Sul – números de cerca de dois anos atrás.
A guerra em si mesma é mantida sempre em segundo plano do filme, nesse roteiro inteligente de autoria de Fukunaga que também é um excelente diretor de fotografia como se vê em Beasts of No Nation. Nele, a guerra não é o tema principal, mas é a causa da história de Agu, da sua transformação física e psicológica, do seu sofrimento, medo e da sua dor, e da dependência que desenvolve em relação ao carismático comandante (outro ótimo ator, Idris Elba, também não profissional) que o aplica em drogas e, pior, que vicia o garoto em matar.
No terceiro tempo de Beasts of No Nation, cujo título se manteve original, em inglês, na plataforma on-line, assistimos ao confronto da arrogância e hipocrisia da política confrontando a força bruta (militar e miliciana) das quais ela própria, política, eventualmente se serve para a consecução de objetivos inconfessáveis e interesses pessoais.
Em uma época de discursos de ódio pipocando nas redes sociais do mundo inteiro e da exacerbação da violência diária no cotidiano de todos, resta engolir em seco e assistir a Beasts of No Nation, inclusive porque é um filme vigoroso, bem realizado, cinema comercial, porém com o lustre profissional.
Embora o seu fecho ambíguo vá em direção ao elogio discreto da ação humanitária da Unicef e das Nações Unidas, essa cada vez mais omissa e indiferente diante de tantas violações particularmente nas nações africanas ‘independentes’, o relato de Agu é profundamente comovente.
O que falta nele é o outro aspecto tão grave dessa tragédia e apenas insinuado no seu final. Como é a vida dessas crianças-soldados depois de ‘recuperadas’? E o retorno delas às suas cidades e aldeias que foram massacradas até por eles mesmos?
Há registros que descrevem ressentimento, raiva, repúdio e desprezo por parte dos habitantes que (não) os recebem de volta. Muitas das ex-crianças-soldados são marginalizadas, ficam sem trabalho, sem dinheiro e sem a família e entram no tráfico variado ou trabalham para gangues contratadas por profissionais da política e assim ganham algum dinheiro para conseguir sobreviver.
A ver Beasts of No Nation e refletir na recente estimativa da Unicef apontando para cerca de 300.000 crianças que participam, hoje, em conflitos em todo o mundo. Uma das chagas abomináveis desse admirável mundo novo que teima em não se materializar.
*Beasts of No Nation está disponível na Netflix
Jornalista.