Luto celebrado, corpos sequestrados e assassinatos impunes Hoje, 8 de julho de 2023, Gildo Macedo Lacerda faria 74 anos.
Essa história, em sua concepção geral e em muitas micro histórias, precisa ser contada de verdade neste país. E para tanto, é preciso lutar por uma real Justiça de Transição (foto montagem de Gildo e do velório de Zé Celso, por Mariluce Moura).
Não fará, porque agentes da ditadura o assassinaram por meio de torturas, em dependências do quartel general do exército em Recife, quando tinha apenas 24 anos, em 28 de outubro de 1973. Esse crime hediondo motivado por divergência política e agravado por ocultação de cadáver completará 50 anos dentro de 3 meses e 22 dias. Impune!
Enquanto uma turma de torturadores do estado terrorista brasileiro exercitava seu sadismo torpe para quebrar e massacrar o corpo do jovem militante, ao longo de seis dias inimagináveis em seu verdadeiro horror, até que dele se esvaísse, desassistido e jogado ao chão, o último suspiro, outra turma do exército mantinha isolada em dependência do quartel do Forte de São Pedro, em Salvador, sua mulher, grávida, 22 para 23 anos, retirando-a na calada da noite para sessões de tortura no quartel do Barbalho. Aquela jovem mulher, sobrevivente e narradora dessa história, sou eu mesma, Mariluce Moura, 72 anos.
Gostaria muito de estar finalizando hoje, para lançamento em outubro, o documentário Operação Cacau, em que, através de entrevistas, narro essa história inconclusa de Gildo, pai de Tessa Moura Lacerda, avô de Nara, Alice e Fabiano Lacerda Ferreira, no contexto do assassinato de sete militantes da Ação Popular Marxista Leninista, seis deles ainda na faixa dos 20 anos e um na faixa dos 40 anos.
Entretanto, mal saímos da pesquisa e primeira versão do roteiro e, antes de iniciar as gravações que precisam acontecer em Salvador, Recife, Rio, São Paulo e Belo Horizonte, há a sempre dificílima batalha pelos recursos financeiros em editais e entre eventuais mecenas. Sendo realista, nas condições atuais o filme deverá estar pronto para exibição só em 2024. Não integrará as homenagens a Gildo nos 50 anos de seu brutal assassinato.
Outras formas, contudo, de não permitir o silêncio sobre esse crime, em meio aos milhares cometidos pela ditadura civil-militar de 1964-1985 e homenagear Gildo, estamos elaborando, com o apoio de muita gente. Em mais umas poucas semanas lançaremos um site, também estamos em fase de edição de um livro de Tessa e um outro meu, para lançamento em 28 de outubro, e vamos organizar dois debates. Se houver outros eventos, noticiaremos pelo próprio site e redes.
Nesta semana, na noite de quinta-feira, 6 de julho, nos intervalos de canto e dança no velório do grande José Celso Martinez Correia, enquanto ainda esperávamos – uma multidão – a chegada do corpo do genial homem de teatro ao seu, e nosso, Teatro Oficina, eu pensava no ato extremo e adicional de crueldade contido no “desaparecimento” dos corpos de militantes políticos pela ditadura brasileira – e pelas ditaduras sul-americanas em geral, das décadas de 1970 e 1980. O estado terrorista brasileiro não permitiu aos familiares e amigos dos militantes assassinados sequer viver juntos a celebração das pessoas que amavam e o luto normal por suas perdas. A todos obrigou a entranhar uma morte não vista, não assimilada, não compreendida – imaterial e dilacerante.
Junto com Tessa e queridos amigos que encontramos por acaso – como o ex-deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, que em outubro de 2013 abriu a Assembleia Legislativa para a solenidade dos 40 anos do assassinato de Gildo -, esperei, juntando minha voz ao coro, juntando meu corpo ao movimento coletivo, a chegada do corpo morto do potente criador dionisíaco, transgressor, revolucionário da alegria, tenaz combatente de todo cerceamento à liberdade, por isso mesmo, valente opositor da ditadura.
Fiz silêncio reverente com todas e todos, bati palmas, gritei vivas, e entrei disciplinada na fila para contemplar por um instante o rosto morto de Zé Celso e nele reconhecer a vastidão impressionante de vida e humanidade que abrigou ao longo de 86 anos. E seguir em paz, ainda que inconformada por algum tempo com sua morte. Pois foi até esse instante fugaz de reconhecimento definitivo da profunda humanidade do outro que tanto amamos que a ditadura, não satisfeita em assassinar jovens, ideais e sonhos de liberdade, negou a mim, a todos os familiares de Gildo e a todos os familiares de todos os desaparecidos políticos.
Essa história, em sua concepção geral e em muitas micro histórias, precisa ser contada de verdade neste país. E para tanto, é preciso lutar por uma real Justiça de Transição.
GILDO MACEDO LACERDA, PRESENTE!
Mariluce Moura é jornalista, pesquisadora, diretora do Instituto Ciência na Rua e professora aposentada da Universidade Federal da Bahia – UFBA, à qual foi reintegrada em 2015 por ato da Comissão da Anistia, 40 anos após a demissão por perseguições políticas da ditadura de 1964-1985. Segue em plena atividade profissional e de militância política.