Imagem 1

Meninas do Brasil sob ataque da extrema-direita

Meninas do Brasil sob ataque da extrema-direita

Confira o que está sob ameaça e as reações da sociedade civil e do governo ao PL criminoso que propõe pena de 20 anos para aborto tardio decorrente de estupro, em um país onde a cada 10 vítimas, seis são crianças. Fotos: Bia Borgest*.

POR TATIANA CARLOTTI

Está no artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Mesmo assim, 13,4 milhões de meninas brasileiras entre 5 e 14 anos foram colocadas na noite da última quarta-feira (12 de junho), sob a mira da metralhadora misógina empunhada pela extrema-direita no parlamento brasileiro.

São elas, meninas com menos de 13 anos, o grupo mais visado entre a população vulnerável pelos estupradores, representando 6 a cada 10 vítimas de violações no território nacional.

A rajada misógina vem de um pastor evangélico, que se diz “cristão”: Sóstenes Cavalcante, uma entre as várias aberrações políticas do Partido Liberal, reduto dos bolsonaristas. É ele quem assina o PL 1904/24, que corretamente vem sendo apresentado pela imprensa como o “PL do Estupro” ou “PL da Gravidez Infantil”.

Não é exagero. Se aprovada, a excrescência legislativa poderá lançar por 20 anos nas cadeias brasileiras as vítimas de estupro que interromperem a gravidez após as 22 semanas de gestação.

Aguardar 5 meses e meio para interromper a gravidez decorrente de estupro pode não ser o caso de mulheres adultas, que conseguem perceber a interrupção do ciclo menstrual e tomar as medidas cabíveis contra a fecundação através do ódio.

Mas o aborto tardio é sim o caso da aterrorizante situação de milhares de crianças violentadas país afora que, submetidas a toda sorte de violências, demoram muito mais para compreender que estão grávidas, porque seus corpos ainda estão em formação.

Apesar disso, em uma insana disputa de poder com o governo federal, Arthur Lira (Partido Progressista), presidente da Câmara dos Deputados, a quem cabe escolher o que será ou não votado pelo parlamento brasileiro, propôs a votação do caráter de urgência do projeto, apoiado por um séquito de “cristãos de ocasião”, que não se constrangem em tornar crime de homicídio os direitos constitucionais das vítimas do crime hediondo.

Bancada do estupro

Plenário na Câmara, em 12 de junho. Foto: Mário Agra/ Câmara dos Deputados.

Num golpe relâmpago contra as meninas e mulheres do Brasil, em apenas 23 segundos, Lira aprovou o “caráter de urgência” do projeto de lei, isentando-o, canalhamente, de passar pelas várias comissões do Congresso, o que permite a sua votação a qualquer momento no plenário da Câmara dos Deputados.

Para tal, ele contou com os oportunistas da “bancada do estupro”, majoritariamente composta por bolsonaristas do Partido Liberal, o PL. A alcunha não é à toa: a pena estabelecida de 20 anos cria o absurdo jurídico de uma punição contra as vítimas de violação sexual maior do que a pena dos estupradores, de 12 anos no país.

A bancada do estupro é composta por 32 deputados e deputadas:

16 são do PL: Abilio Brunini (MT), Bia Kicis (DF), Bibo Nunes (RS), Capitão Alden (BA), Carla Zambelli (SP), Delegado Paulo Bilynskyj (PL), Delegado Ramagem (RJ), Eduardo Bolsonaro (SP), Eli Borges (TO), Junio Amaral (MG), Julia Zanatta (PL), Mario Frias (SP), Nikolas Ferreira (MG), Pastor Eurico (PE) /SC, Gilvan da Federal (PL) e o autor da proposta Sóstenes Cavalcante (RJ).

Quatro são do MDB: Delegado Palumbo (SP), Pezenti (SC), Renilce Nicodemos (PA) e Simone Marquetto (SP). Três dos Republicanos: Ely Santos (SP), Franciane Bayer (RS) e Fred Linhares (DF); e da União Brasil: Cristiane Lopes (RO), Dayany Bittencourt (CE) e Filipe Martins (TO). Dois do Partido Progressista (PP) de Lira: Dr. Luiz Ovando (MS), Evair Vieira de Melo (ES).

E pelo menos um entre eles do Partido Renovação Democrática (PRD): Dr. Frederico (MG); do Avante: Greyce Elias (MG); e pasmem, do Partido Social Democrático (PSD): Cezinha de Madureira (SP) e até mesmo do PSDB: Lêda Borges (GO).

Na biografia desses 32 indivíduos, eleitos para representar a população brasileira, e sobretudo do presidente da Câmara, poder pesar uma das maiores violências contra a população mais vulnerável ao estupro no país, como evidencia o gráfico abaixo, extraído do Anuário Nacional de Segurança Pública de 2023, a partir dos dados coletados em 2022:


A brutal realidade das nossas meninas

Segundo o levantamento, em 2022, foi registrado o maior número de estupros da história brasileira: 74.930 vítimas. Desse imenso contingente, 88,7% são do sexo feminino e os índices tendem a ser superiores na medida em que o levantamento trabalha apenas com casos notificados às autoridades policiais.

A maior parte das vítimas de estupros, 6 a cada 10 casos, não são de mulheres adultas, mas de meninas com até 13 anos de idade. Um total de 40.659 crianças.

Elas pertencem ao chamado grupo dos “vulneráveis” – crianças com menos de 14 anos ou portadores de alguma enfermidade (temporário ou não) ou deficiência mental –. Em 2022, desta população, 56.820 foram vítimas de estupros: 10,4% de bebês e crianças entre 0 e 4 anos, 17,7% de crianças entre 5 e 9 anos e 33,2%, entre 10 e 13 anos. Ou seja, 61,4% das vítimas tinham no máximo 13 anos.

Imensa maioria (71,5%) foram estupradas por familiares, grande parte (44,4%) pelo pai ou padrasto, durante o dia (65,1%), em suas próprias casas (72,2%).

Como explica a advogada Luciana Temer (Direito – PUC-SP), que assina o capítulo sobre a violência sexual infantil no Anuário (pp. 204-213), “é comum que a criança não tenha sequer capacidade de reconhecer o abuso sofrido, seja pela falta de conhecimento sobre o tema ou pelo vínculo com o agressor”.

“O abusador tende a manipular a criança com ameaças ou subornos, o que garante o silêncio da vítima. Por fim, o sentimento de culpa ou mesmo vergonha costuma estar presente na criança, que acaba por não revelar nada a familiares”, complementa. Daí a recorrência ao aborto tardio.

A maior parte dos casos de estupro vitimaram crianças negras (56,2%).

Os estados que apresentaram os mais altos índices, a cada 100 mil habitantes, foram: Roraima (87,1%), Amapá (64,5%), Tocantins (56,2%), Acre (67,1%) – todos integrantes da Amazônia Legal – e o Mato Grosso do Sul (64%).

“Criança não é mãe. Estuprador não é pai”

Manifestantes na Paulista caracterizadas como as personagens de O Conto de Aia, mulheres fadadas ao estupro e à reprodução na crítica distópica da misoginia da escritora canadense Margareth Atwood. (Fotos: Tatiana Carlotti/F21).

Não existem dados específicos sobre quantas dessas meninas recorreram à interrupção da gravidez, mas temos os dados do Ministério da Saúde, através do sistema DATASUS, informando que 14.293 meninas menores de 14 anos deram à luz no Brasil, em 2022.

Considerando um intervalo de dez anos, entre 2013 e 2022, 219 mil meninas ficaram grávidas. Uma média de 21.905.5 nascimentos por ano.

Essa é a realidade das meninas vítimas de estupro no Brasil, escamoteada pelo discurso barulhento e violento da bancada do estupro, que no texto da proposta legislativa se arvora “defensora da vida” enquanto propõe o massacre de crianças, muito mais suscetíveis ao aborto tardio, com um cárcere de 20 anos.

Em defesa delas e contra a proposta absurda, desde quinta-feira (12), ocorrem manifestações nas principais cidades brasileiras sob a bandeira “Criança não é mãe. Estuprador não é pai” e, naturalmente, “Fora, Lira!”.

Na quinta-feira (13), dia seguinte à votação na Câmara, ocorreram protestos em Brasília (DF), Manaus (AM), Niterói (RJ), Pelotas (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Na sexta-feira (14), foi a vez de Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Campinas (SP), Porto Alegre (RS), Rio Branco (AC), Salvador (BA) e Teresina (PI).

Veja Também:  Extrema-direita brasileira freia a regulamentação das redes digitais

No sábado (15), em Aracaju (SE), Araraquara (SP), Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Lauro de Freitas (BA), Natal (RN), Porto Velho (RO), São Luís (MA), São Paulo (SP), Sete Lagoas (MG) e Teresina (PI). No domingo (16), em Goiânia (GO), Macapá (AP), Santos (SP) e Vitoria (ES). E nesta segunda-feira (17), aconteceram atos na Assembleia Legislativa de Teresina (PI) e na Praça do Derby em Recife (PE).

Nas redes, circularam diversos memes, das mais diferentes fontes. No site da Câmara dos Deputados, 1,07 milhão de pessoas votaram na enquete sobre a proposta, com uma imensa maioria (88%) declarando que “discorda totalmente” do projeto.

Legalização do aborto não está em pauta

Manifestação contra o PL do Estupro em Porto Alegre: Foto: Levante da Juventude do RS/@levantedajuventuders

No Brasil, na contramão dos 77 países onde o aborto é legalizado – entre eles Uruguai, Dinamarca, Irlanda, Portugal, França, Suíça, China, Coreia do Sul –, a mulher só pode interromper a gestão em três casos: estupro, risco de vida e anencefalia do feto (má formação do cérebro).

Estão impedidas todas as demais brasileiras que precisarem recorrer ao aborto, o que gera uma situação absolutamente desigual: na prática, só consegue abortar em segurança quem tem dinheiro e acesso a medicamentos. Quem não tem acaba em clínicas clandestinas ou recorre a procedimentos solitários de altíssimo risco.

Segundo dados oficiais do SIH-SUS (Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde), entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram nos hospitais da rede pública em decorrência de abortos maus sucedidos, em um universo de 1,7 milhão de internações decorrentes da prática.

Apesar disso, a questão está longe de entrar em pauta neste momento, muito menos de ser encampada pelo atual governo. Tanto o presidente Lula quanto seus ministros foram categóricos quanto a isso, desmontando a armadilha da extrema-direita que não só no Brasil, mas no mundo inteiro, usa a pauta do aborto contra a esquerda e os defensores dos direitos humanos.

O tiro, espera-se, tende a sair pela culatra, mas os efeitos podem ser graves, afinal, mesmo no caso dos abortos legais, as mulheres passam por uma série de dificuldades e humilhações para garantir esse direito.  Ao propor a penalização dos médicos que realizam os procedimentos dentro da lei, o projeto agrava ainda mais a situação.

A resposta do governo

Manifestação contra a PL do Estupro em São Paulo. Foto: Paulo Pinto – Agência Brasil.

Na manhã do dia seguinte à votação na Câmara, a ministra Cida Gonçalves (Ministério das Mulheres) em entrevista às jornalistas da CNN Brasil, que tentaram puxar o tema da legalização mais ampla, foi categórica:

Nós não estamos falando da ampliação da legislação, nós estamos discutindo o retrocesso. O presidente Lula já na campanha disse que não mexeria na legislação do aborto, nem de um lado, nem de outro.

(…) O PL é inconstitucional. Ele não pode alterar questões que já estão na lei, em relação às meninas e mulheres. Crianças de 9 a 14 anos são as maiores vítimas desse projeto de lei. Nesse momento, não pode nem entrar em votação. Não podemos mexer no código penal que já existe.

No mesmo dia 13, o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) se manifestou nas redes sociais:

O projeto é uma imoralidade, uma inversão dos valores civilizatórios mais básicos (…) É um PL vergonhosamente inconstitucional, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável, a tratamento discriminatório, o que não é permitido por nenhum parâmetro normativo nacional, ou internacional a que o Brasil tenha aderido. Que mulher vítima de violência sexual irá buscar apoio do Estado sabendo que pode ser mais penalizada do que quem a violentou?

(…) Este PL acelera a falência moral e jurídica do Estado. Trata-se da materialização jurídica do ódio que parte da sociedade sente em relação às mulheres; é uma lei que promove o ódio contra mulheres.

A ministra Anielle Franco (Igualdade Racial) também publicou seu repúdio ao PL do Estupro, no dia seguinte à votação:

A Câmara aprovou ontem o requerimento de urgência do PL 1904/24, que retrocede os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas no Brasil e concretamente agrava os casos de gravidez infantil, forçando crianças violentadas a serem mães. Com a aprovação desse requerimento, o PL não passará pelas comissões e vai direto ao plenário. As discussões sobre essa proposta desastrosa para a vida de meninas e mulheres no país tramitam com pouco espaço para discussão com a sociedade e especialistas.

(…) Esse projeto representa retrocesso e desprezo pela vida das mulheres. Esse não é o Brasil que queremos.

Na sexta-feira (14), foi a vez do médico e ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais):

Não contem com o governo para qualquer mudança na legislação atual de aborto no país. Ainda mais um projeto que estabelece uma pena para a mulher que foi estuprada. Para a menina que foi estuprada, muitas vezes sem nem saber o que foi aquilo, e que descobre tardiamente que ficou grávida, porque nem sabe o que é a gravidez, ou tem que esconder do estuprador que às vezes é um parente que está na própria casa.

Não contem com o governo para ser favorável a um projeto que estabelece uma pena para a mulher e a menina estupradas que pode ser até duas vezes maior do que a pena para o estuprador.

A resposta mais aguardada, porém, foi a do presidente Lula.

Da Itália, onde participava da cúpula do G-7, Lula gravou um vídeo condenando a proposta, que ainda está correndo nas redes sociais:

A primeira coisa que preciso dizer a vocês, em alto e bom som – e não é a primeira vez [que digo], eu já fui candidato em 89, 94, 98, 2002, 2006 e em 2022 –, é que eu, Luiz Inácio Lula da Silva, que fui casado, tive cinco filhos, oito netos e uma bisneta, sou contra o aborto. Entretanto, como o aborto é a realidade no Brasil, a gente precisa tratá-lo como uma questão de saúde pública. É uma insanidade alguém querer punir uma mulher com uma pena maior do que a do criminoso que fez o estupro.

É, no mínimo, uma insanidade isso. Eu, sinceramente, à distância – não acompanhei o debate muito intenso no Brasil e quando voltar, vou tomar ciência disso –, tenho certeza de que o que temos na lei já nos garante agir de forma civilizada, para tratar com rigor o estuprador e com respeito a vítima. É isso que precisa ser feito. Quando alguém apresenta uma proposta em que a vítima tem de ser punida com mais rigor do que o estuprador, não é sério. Sinceramente, não é sério.


* FOTO DE CAPA: Os retratos fazem parte do @projetosangrelatina, uma série autoral fotodocumental da fotógrafa @bia.borgest.

Sangre Latina se inicia em 2018 em Buenos Aires, Argentina, e vem desde então acompanhando marchas feministas, buscando registrar mulheres latino-americanas em luta. Tendo a fotografia como uma ferramenta de valorização da memória e política, a série apresenta além de registros, a resistência e fortalecimento de narrativas coletivas e individuais.

Tagged: , , , , , ,