Tiro de fuzil: Carlos Schirmer (30/3/1896 – 1/5/1964). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

Tiro de fuzil: Carlos Schirmer (30/3/1896 – 1/5/1964). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

Magda Maria da Silva, outra testemunha, declarou: “(…) a polícia fez o que quis, arrebentaram as gavetas, pegaram objetos de valor, encheram a casa de gás; eu não podia sair (…) “de repente, ouvimos mais tiros e gritos; ouvi um policial gritar “ele está no forro”; desceram com ele cheio de sangue com um tiro…

O processo referente a Carlos Schirmer foi apreciado pela Comissão Especial em sua antepenúltima reunião, a 24ª, em 9 de fevereiro de 1998. Durante cerca de dois anos o relator do caso, Nilmário Miranda, empreendeu esforços para tentar descobrir as reais circunstâncias de sua morte, dada como suicídio pela versão oficial. Por 5 x 2 votos, o caso não foi acolhido, sendo votos vencidos o do relator e o de Suzana Keniger Lisbôa.

Carlos Schirmer tinha 68 anos quando morreu, no dia 1º de maio de 1964. Filho de pai austríaco e mãe brasileira, morou no Rio de Janeiro e mudou-se para Divinópolis, Minas Gerais, em 1921, época em que já militava no PCB.

Como técnico eletricista participou da construção e montagem de várias usinas (Carmo do Cajuru, Itapecerica, Teófilo Otoni). Do primeiro casamento, teve um filho, Luiz Carlos, em homenagem a Prestes. Com a morte da esposa, casou-se
pela segunda vez e teve uma filha, Sílvia.

No dia 1º de maio de 1964, o coronel Melquíades Horta, encarregado da repressão à esquerda em Divinópolis, mandou o investigador Carlos Expedito de Freitas — segundo o Relatório Policial anexado ao processo — buscar Carlos Schirmer para ser interrogado:

O investigador Carlos Expedito de Freitas voltou com a informação de que o sr. Schirmer o recebera ameaçadoramente, armado de uma enxada. Mandei dois soldados acompanharem o investigador, com ordem de pegarem o recalcitrante à força. Ao
experimentar a porta fechada do pequeno barracão, o investigador Expedito foi atingido por um projétil de arma de fogo e caiu ao solo (…) e de lá Schirmer continuou a fazer disparos. Os militares recuaram e mandaram informar-me sobre o ocorrido.

Mandei então cercar a casa e o barracão, levando bombas de gás lacrimogêneo, e pedi ao tenente Freitas que levasse uma metralhadora portátil. O sr. Schirmer mudara de posição, entrincheirando-se no sótão da casa principal de onde continuou
a atirar em todos os que se aproximavam, tendo ferido outro policial, o sargento José Batista de Souza, quando este arremessara uma bomba de gás lacrimogêneo no covil da fera. Sentindo os efeitos do gás, o sr. Schirmer desceu do sótão e com a mesma arma que resistia, uma carabina de repetição, marca Remington, calibre 22, desferiu um tiro debaixo do próprio queixo, ficando seriamente ferido.

A carabina acima referida foi entregue ao delegado de Polícia de Divinópolis.

Esta é a versão oficial, da qual não consta o laudo de perícia local.

Segundo testemunhas, Sílvia Schirmer, sua filha, e as vizinhas Luzia Santos e Zulmira Mendes da Silva, o disparo que provocou a morte do militante ocorreu às 15h. Contudo, Carlos Schirmer somente veio a falecer seis horas depois, por
asfixia, no Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte. O laudo de necropsia informa que o exame foi feito no dia 2 de maio, às 8h40.

Perito criminal

O relator Nilmário Miranda requereu que o processo fosse examinado pelo perito criminal Celso Nenevê.

Celso Nenevê, em sua análise, relata que o laudo de necropsia descreve duas lesões: uma lesão de entrada de projétil de arma de fogo, na porção média da região mentoniana, que é descrita como ferida pérfuro-contusa circular, ou seja,
corresponde a disparo efetuado a curta distância ou a alguma distância e não
com a arma encostada. Não há, portanto, descrição de fenômenos como zona de tatuagem, zona de chama ou zona de esfumaçamento que permitam comprovar a versão oficial de disparo com arma encostada ou a curtíssima distância.

Não seria possível a Carlos Schirmer disparar uma carabina 22 contra o próprio queixo, sem que a arma estivesse encostada no queixo ou à curtíssima distância, pela razão óbvia de que o seu braço não alcançaria o gatilho.

A segunda lesão, de saída da bala, descrita no laudo do perito, provocou “intensa ferida pérfuro-contusa, medindo 5 cm, com bordas irregulares e laceradas, unindo a região mentoniana com a região labial inferior. Diz ainda que o projétil penetrou na região mentoniana, descrevendo um trajeto de baixo para cima, transfixando os planos musculares, maxilar inferior, cavidade bucal, saindo pela região labial inferior e ocasionando a morte por hematoma retrolingual e asfixia”.

Examinando a trajetória do projétil, o perito conclui que, quando recebeu o disparo, a cabeça da vítima estava inclinada para trás, senão a bala iria para dentro e não para fora da cabeça.

Celso Nenevê não encontrou provas materiais que comprovem o suicídio de Carlos Schirmer. O disparo pode ter sido feito por um policial contra o forro.

A trajetória do projétil foi tangencial ao corpo, já que não atravessou o queixo, indo se alojar na cabeça: o ferimento resultante do disparo provocou lesões no queixo e no lábio inferior. Por isso, Carlos Schirmer morreu por asfixia, provocada pelo hematoma retrolingual.

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O laudo não descreveu nenhuma intervenção cirúrgica ou medicamentosa.

Qualquer estagiário de medicina faria uma traqueostomia para que o paciente não morresse asfixiado.

O Atestado de Óbito, firmado por Celso Tafuri, registra que Carlos Schirmer faleceu às 21h.

A testemunha Zulmira Mendes da Silva disse:

(…) até que, por volta das 15h, vi o sr. Carlos sair ferido, levado pelos policiais, e ser jogado dentro da carroceria da camionete, como se fosse um animal.

Magda Maria da Silva, outra testemunha, declarou:

(…) a polícia fez o que quis, arrebentaram as gavetas, pegaram objetos de valor, encheram a casa de gás; eu não podia sair (…) “de repente, ouvimos mais tiros e gritos; ouvi um policial gritar “ele está no forro”; desceram com ele cheio de sangue com um tiro no pescoço; eu não estava acreditando no que via; jogaram o meu amigo na camionete, aberta atrás, como se fosse um animal; ele estava branco e chorando…

Luzia Santos da Silva, outra vizinha, informou:

No dia 1º de maio de 1964, policiais invadiram a casa do sr. Carlos Schirmer e por volta das 15h vi quando o jogaram na carroceria de uma camionete, como se estivesse lidando com um porco…

Uma única testemunha, Milton Pena, declarou que Carlos Schirmer “tentara o suicídio”, mas disse que não presenciara o fato, embora tenha tentado evitar que os policiais o transportassem como a um porco.

De acordo com Mariana, viúva de Carlos Schirmer, ele chegou a ser levado ao Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Divinópolis, onde foi atendido inicialmente, “guardado por policiais”. Em seguida, foi levado para Belo Horizonte.

Conclusões do relator

Carlos Schirmer recusou-se a atender à “intimação” verbal transmitida pelo investigador Carlos Expedito de Freitas, cumprindo ordens do inquisidor coronel Melquíades Horta na manhã do dia 1º de maio de 1964.

O detetive voltou com reforço policial e, ao tentar prendê-lo em um pequeno barracão no quintal, foi baleado na orelha. O detetive Expedito foi medicado e voltou ao local, participando dos eventos, certamente enfurecido.

Os policiais voltaram à casa de Carlos Schirmer pela terceira vez, em maior número e com mais armas, inclusive uma metralhadora e bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral. Ele escondeu-se no forro. O coronel Melquíades relata que “o soldado José Batista teve dois dedos atingidos por outro disparo, quando Carlos Schirmer escondia-se no forro da casa”.

De acordo com os depoimentos dos policiais e o relatório do coronel Melquíades, “Schirmer se tornara duplamente criminoso”, uma “verdadeira fera”.

Cinco testemunhas garantiram que, às 15h daquele dia, Carlos Schirmer desceu do forro ferido, trazido pelos policiais, que o atiraram com violência na carroceria da camionete. Fica claro o estado de espírito dos policiais.

Schirmer foi atendido inicialmente em um hospital de Divinópolis, cercado de policiais irados com a sua resistência à prisão. Apesar de trazer um hematoma retrolingual, não lhe foi feita uma traqueostomia. Em vez disso, foi levado a
Belo Horizonte, viajando 112 km em uma viatura, o que na época levava cerca de duas horas. Antes de ser operado, morreu no hospital às 21h.

O perito criminal Celso Nenevê não pôde reconstituir a dinâmica do evento pela ausência de procedimentos adequados, como a perícia de local e um laudo de necropsia rigoroso e científico. Não há provas no laudo de que Carlos Schirmer tenha atirado contra si mesmo nem de que um policial tenha atirado contra o forro, atingindo-o. No entanto, as conclusões do perito afastam a possibilidade de o tiro ter sido disparado com o cano da arma encostado no queixo, ou a curtíssima distância, condição necessária para a hipótese de suicídio.

Conspira contra a versão oficial o fato de a carabina Remington, de repetição, não aparecer entre as armas apreendidas.
Aparece, sim, um cartucho deflagrado de espingarda calibre 28. Sílvia Schirmer afirma que seu pai possuía uma de marca Flaubert.

Além disso, de acordo com o Laudo de Necropsia, o ferimento, por si só, não provocaria sua morte, que se deu por asfixia, sufocamento, em decorrência do hematoma retrolingual.

Conclusão: Carlos Schirmer encontrava-se sob a custódia de agentes policiais, ferido, com um hematoma retrolingual que impunha atendimento de urgência (traqueostomia, por exemplo), tendo sido tratado com violência e desmazelo pelos seus captores, vindo a falecer. Houve omissão de socorro, ou socorro intencionalmente inadequado, por parte dos agentes do Estado que o mantinham sob guarda.

Isso posto, voto pelo acolhimento do requerimento e pelo reconhecimento de que a morte de Carlos Schirmer preenche os requisitos da Lei 9.140/95.

Em 2002, a família reapresentou requerimento. Designada relatora, a procuradora federal Maria Elaine Menezes de Faria propôs o deferimento, acolhido por unanimidade em 16 de agosto de 2004:

“A introdução da Lei 10.875/04 enquadra perfeitamente o caso analisado, posto que a versão oficial das circunstâncias da morte, embora questionada, aponta a prática de suicídio.”

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