O mundo gira e a mudança roda
A riqueza mediana divide a distribuição da riqueza em dois grupos iguais, onde metade dos adultos tem riqueza acima dela e a outra metade abaixo. A riqueza média é obtida dividindo a riqueza agregada total pelo número de adultos.
Para compreender por qual razão a riqueza mediana ultrapassa a riqueza média, o Global Wealth Report 2023 do Credit Suisse/UBS sugere ser melhor pensar em termos de um grupo mediano global, por exemplo, decis de riqueza 5 e 6, em vez de um único adulto mediano. Se a seção intermediária da distribuição da riqueza global tende a ser povoada por residentes de países tipicamente com economias de mercado emergentes, onde a riqueza das famílias está crescendo mais rapidamente em comparação à média mundial, então, a riqueza mediana global crescerá mais rapidamente diante da riqueza média global.
Medida em termos de dólares americanos correntes, a riqueza por adulto caiu 3,6%, em 2022, mas a riqueza mediana aumentou 3%. Esta divergência não se deve apenas a questões regionais ou nacionais, mas resulta antes de fatores de composição da carteira.
Os detentores de riqueza nas proximidades da mediana detêm normalmente uma percentagem mais elevada de ativos não financeiros, especialmente riqueza habitacional, e uma percentagem mais baixa de ativos financeiros diante da registrada na carteira global de riqueza das famílias. Assim, a riqueza mediana tende a crescer mais rapidamente em comparação à riqueza média, quando os ativos não financeiros ultrapassam os ativos financeiros em valor, como em 2022.
Há ligação entre um aumento da relação entre riqueza mediana/média e uma diminuição da desigualdade (e vice-versa). Cada uma das regiões onde o crescimento da riqueza mediana ficou aquém do crescimento da riqueza média – América do Norte, China e Índia – registrou uma desigualdade crescente, medida tanto pelo coeficiente de Gini como pela percentagem dos 1% mais ricos.
Isto contrasta com a tendência em África, na Ásia-Pacífico e na Europa, onde um aumento da relação mediana/média da riqueza tem sido acompanhado por uma diminuição da desigualdade. A América Latina é a exceção, porque a tendência da desigualdade é ambígua: a percentagem da riqueza dos 1% mais ricos caiu neste século, mas o coeficiente de Gini aumentou. Os dados relativos à América Latina, bastante ponderados pelos brasileiros, sugerem a tendência de a relação riqueza mediana/média estar mais alinhada com a percentagem da riqueza dos 1% mais ricos em vez de estar com o índice de Gini.
Tanto em nível regional, como em nacional, a riqueza mediana difere muito da riqueza média e a diferença é maior em mercados com elevada desigualdade de riqueza. Se a desigualdade estiver aumentando – como indicado, por exemplo, por uma percentagem crescente de riqueza dos 1% mais ricos –, então, o crescimento da riqueza mediana provavelmente ficará aquém do da riqueza média. Vice-versa ocorre quando a desigualdade tiver tendência a diminuir.
Neste século XXI, a riqueza mediana cresceu mais rapidamente diante da riqueza média em dez dos 21 mercados listados (sem China) no citado Relatório. Em cada um destes mercados, exceto na Alemanha, a percentagem de riqueza do 1% mais rico, se agregada, tem registrado uma tendência decrescente desde 2000.
Em contraste, a riqueza média cresceu mais rapidamente diante da riqueza mediana neste século em 11 mercados. Estes são mercados onde a desigualdade aumentou com crescente percentagem de riqueza apropriada pelo top 1%.
A riqueza mediana no Brasil cresceu, gradualmente, de US$ 1.068 em 2000 para US$ 5.169 em 2022. No início da série temporal, estava abaixo de todos os 21 mercados, inclusive Índia (US$ 1.153), Rússia (US$ 1.170) e Indonésia (US$ 1.379). Em 2022, a do Brasil superou apenas a da Índia (US$ 4.107).
Sua proporção entre riqueza mediana e média passou de 17,7% para 19,4% do início ao fim da série temporal de quase ¼ de século. Curiosamente, esse indicador brasileiro só era próximo do norte-americano: 19,5% em 2022 ao cair de 21,6% em 2000. A da Rússia caiu de 23,7% para 21,8% e da Índia de 31,3% para 22,8%. Todos os quatro estavam bem abaixo dos demais, por exemplo, a proporção da Austrália era 49,8% e o top era a da Bélgica com 70,8%.
Em termos consolidados, o número de milionários em dólares americanos, em todo o mundo, diminuiu 3,5 milhões em 2022, para um total de 59,4 milhões, devido à queda da riqueza média e à perda em ativos financeiros (alta de juros e baixa de ações). Em mercados individuais, esse número depende de três fatores: a dimensão da população adulta, a riqueza média e a desigualdade de riqueza.
Os Estados Unidos têm, de longe, o maior número de milionários, com 22,7 milhões ou 38,2% do total mundial. Está muito à frente da China, no segundo lugar, com 10,5% de todos os milionários globais.
Os números milionários no Japão competiam com os dos Estados Unidos, na virada deste século, mas a posição do Japão tem caído constantemente desde então. Foi ultrapassado pela China, em 2014, e representava apenas 4,6% dos milionários em 2022, colocando-o pela primeira vez em quarto lugar, abaixo da França (4,8%) e desafiado pela Alemanha (4,4%) e pelo Reino Unido (4,3%).
O Brasil foi o país com mais novos milionários no ano 2022. O Global Wealth Report 2023, divulgado pelo UBS e Credit Suisse, mostra o país ter registrado mais 120 mil novos detentores de pelo menos US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões) em 2022. O número total passou de 293 mil para 413 mil naquele ano: 0,7% do total mundial.
A recuperação da economia, com aumento de 2,9% do PIB, e a valorização de 5,3% do real frente ao dólar, contribuíram para os resultados. Para avaliar os milionários do mercado, o UBS e o Credit Suisse consideram a soma das aplicações financeiras mais os ativos reais (principalmente imóveis) dos investidores e subtrai as dívidas.
Esse número de 412 mil milionários no Brasil, em 2022, superou os da Rússia (408 mil), México (393 mil), Noruega (352 mil), Nova Zelândia (255 mil), Irã (246 mil). Ficou pouco abaixo da Suécia (467 mil). As demais nações ricas, com populações menores diante da brasileira, têm de 1,335 milhão (Itália) a 2,757 milhões (Japão).
Há quatro vezes mais milionários em dólares americanos no mundo em relação ao número na virada do século. Vários fatores ajudam a explicar esse aumento.
As populações em fase ativa cresceram relativamente mais diante dos inativos, até o fim do bônus demográfico, na maioria dos países, e a riqueza real das famílias aumentou 150% desde 2000. Mas a inflação também acelerou o processo ao reduzir progressivamente o limiar real (deflacionado) para a incorporação com menor poder aquisitivo ao grupo dos milionários em dólares.
A grande maioria dos 59,4 milhões de milionários em 2022 tem uma riqueza entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões: o grupo HNW (High Net Worth) tinha 51,5 milhões ou 87%. Outros 5,1 milhões de adultos (8,6%) tinham uma fortuna entre US$ 5 milhões e US$ 10 milhões e 2,8 milhões (4,6%) uma riqueza superior a US$ 10 milhões. Destes últimos, cerca de 2,5 milhões tinham ativos na faixa de US$ 10 a 50 milhões, deixando 243.060 indivíduos de Patrimônio Líquido Ultra Alto (UHNW) com riqueza acima de US$ 50 milhões no fim de 2022.
Isso representou uma queda de 22.500 em relação aos 265.560 UHNW adultos registrados no fim de 2021 e este “empobrecimento” (sic) incomum foi atribuído à queda dos preços das ações. Os adultos com riqueza superior a 50 milhões de dólares são agora quatro vezes mais diante 2008 e, apesar da queda em 2022, o número de UHNW aumentou mais de 60.000 só nos últimos três anos.
Uma análise detalhada do grupo UHNW revela 79.490 adultos com riqueza superior a US$ 100 milhões, no fim de 2022, dos quais 7.020 possuíam mais de US$ 500 milhões. Os Estados Unidos lideravam por uma margem considerável, com 123.870 membros, o equivalente a 51% do total mundial. A China estava em segundo lugar, com 32.910 indivíduos UHNW, seguida pela Alemanha (9.100) e a Índia (5.480).
Serão estes os “Senhores do Mundo”? Estabelecem e mantêm o seu domínio sobre a economia globalizada com suas participações acionárias em empresas transnacionais?
Para entender o funcionamento deste sistema internacional complexo, emergente de interações entre múltiplos componentes, temos de pesquisar e/ou estudar mais, compartilhando ideias e testando hipóteses analíticas. É estéril só fazer, eternamente, “a denúncia da desigualdade do sistema capitalista” sem sequer esboçar uma estratégia socioeconômica de mudança sistêmica gradual, aliás, como fez a China e os Tigres Asiáticos nas últimas décadas.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].