Para reduzir os riscos da transição e viabilizar a retomada

Para reduzir os riscos da transição e viabilizar a retomada

No momento em que escrevo, Bolsonaro não tem chances de ganhar as eleições. Entretanto, considerando o desastre que seria sua vitória, o que se coloca perante a sociedade é um desafio de sobrevivência: se ele ganhar, é a confirmação do neoliberalismo, que nos trouxe ao caos absoluto.

Bolsonaro deu à sociedade brasileira várias oportunidades para ser derrubado institucionalmente. Entretanto, as instituições, intimidadas por sua retórica agressiva e por sua incrível capacidade de testar limites de tolerância, não se moveram de forma decisiva contra ele. Deixaram o tempo passar e chegamos a uma situação de risco: as eleições ocorrem sob um presidente que atropelou e manipulou instituições, comprou aliados com dinheiro público e armou milhares de milicianos, numa situação de crise  social aguda que ele aproveitou para fazer demagogia com verbas sociais.


A ameaça é a uma convulsão social e política sob o próximo Presidente, mesmo que seja Lula, estimulada pelo bolsonarismo expulso do Planalto. De fato, o que virá depois das eleições é desconhecido, porque, mesmo fora da Presidência, Bolsonaro, como os líderes expulsos do poder nos Estados Unidos e na Europa, continuará em atividade como chefe da extrema direita e pode ter a seu favor parte significativa do povo manipulado por ele, e do Congresso eleito com maioria aparentemente conservadora.


É claro que seria ainda pior se ele continuasse no governo, pois, nessa situação, o legado do neoliberalismo radical que ele próprio criou, cristalizado na política econômica de Paulo Guedes, continuaria esmagando direitos sociais e provocando, eventualmente, também no seu caso, convulsões sociais. Aí estaríamos literalmente à beira do caos absoluto. Diante desses riscos, a esperança é Lula controlar preventivamente as crises social e econômica, por sua reconhecida habilidade em costurar acordos tanto no campo político como na Sociedade Civil, uma vez consolidada sua vitória no segundo turno.


Embora a maioria dos economistas ainda não fale em aberto descontrole do custo de vida – a parte da inflação que mais afeta os pobres –, é certo que ele se aproxima porque o atual governo nada fez para impedi-lo, a não ser por expedientes temporários, como o “pacote de bondades” de Bolsonaro aprovado pelo Congresso. Na verdade, sendo a base da estabilidade social, e a estabilidade social a base da estabilidade do governo – como lembrou Ulysses Guimarães ainda no lançamento da Constituição de 1988 –, o custo de vida tem sido empurrado sistematicamente para cima pelo próprio governo, pois está inscrito na fórmula de correção dos preços dos combustíveis, que está apenas suspensa. Além disso, outros preços que o governo de convicção neoliberal não quer controlar continuarão pressionando a inflação e o custo de vida. O controle da inflação através da manipulação da taxa básica de juros, como feito pelo Banco Central, é uma estratégia manifestamente fracassada, como explicarei mais adiante.  

Num processo de aumento acelerado do custo de vida, a economia e a sociedade entram numa situação caótica. Sem uma referência para preços, não há referência para mais nada, inclusive para a moral. Parte das massas esmagadas pelo descontrole dos preços – são 33 milhões de brasileiros em situação de fome –  volta a um estágio primitivo em busca de sobrevivência. Roubos, assaltos ao comércio e a bancos, sequestros, insegurança coletiva, tudo entra num processo de entropia. Nunca tivemos tantas fraudes, dentro e fora do governo, tantos crimes pessoais e patrimoniais na sociedade, tanto uso da internet para roubar. A desordem impera. E os políticos que antes da inflação acelerada não haviam se preparado para ela, terão dificuldades de apresentar um plano de emergência para controlá-la.


Eis portanto o perigo: as eleições apontam para duas possibilidades. Se ganhasse, Bolsonaro não teria competência, nem história, nem vontade política para fazer um plano de emergência caso a situação econômica e social e os níveis de inflação e custo de vida atingissem, por exemplo, os patamares alarmantes que sacudiram a Argentina no início dos anos 2000, no fim da experiência neoliberal fracassada do presidente Carlos Menem – atualmente repetida na própria Argentina e no Brasil.


Já a mudança positiva da política econômica que poderá existir, entre nós, no caso provável de que Lula ganhe a eleição, não seria necessariamente bem-sucedida. A eventual ruptura com as políticas fiscais-monetárias restritivas impostas originalmente pelo FMI durante a crise da dívida externa, e depois seguidas por nossa própria conta de acordo com os preceitos do Consenso de Washington e do Fórum de Davos (globalização), teriam grandes dificuldades em produzir resultados positivos imediatos, pois o legado do neoliberalismo radical seria difícil de superar.  


Mesmo se Bolsonaro perder, portanto, o país continuará vulnerável às consequências da crise que ele legou à sociedade brasileira. As forças progressistas que vierem a sucedê-lo terão imensas dificuldades de realizar a transição do sistema neoliberal radicalizado para uma economia desenvolvimentista. O sucessor enfrentará uma situação próxima do caos, com possível aceleração do custo de vida, alto desemprego, expansão da miséria, queda dos salários e da renda real e aumento do subemprego, sem falar na covid-19, que ainda persistirá, e nas consequências econômicas da guerra na Ucrânia, assim como nas crises estruturais que sacodem o país e o mundo como as derivadas das mudanças climáticas.


É importante assinalar que as forças políticas que se envolvem em lutas sucessórias sempre estão mais empenhadas no jogo eleitoral para ganhar o pleito do que em preparar-se para governar. Isso é natural.  No nosso caso, porém, é uma situação potencialmente explosiva: de um lado, ocorre uma forte pressão popular por melhoria dos níveis de vida com grandes expectativas de que as eleições dissolverão, por mágica, as dificuldades sociais e econômicas imediatas; de outro, vai se apresentar a realidade nua e crua do legado neoliberal, que continuará travando a economia por algum tempo, em função das armadilhas do neoliberalismo mencionadas abaixo, enquanto não entrarem em jogo os efeitos de uma reforma profunda da política econômica.


Acabo de lançar o livro “A Economia Brasileira Como Ela É” (1).  Deve ser entendido como um brado de alerta para que a Sociedade Civil brasileira, contornando as divisões do sistema político-partidário, ajude o governo progressista de Lula a tomar a iniciativa de buscar alternativas para enfrentar as crises atuais dentro e fora do campo econômico, sobretudo a escalada do custo de vida, o aumento acelerado da inflação, o crescimento do desemprego, a queda dos salários e a situação e expansão da miséria e do subemprego. É fundamental, portanto, que se formule um programa de ação emergencial no campo econômico e social com amplo apoio público para que se possa sustentar o governo nas políticas indispensáveis para superação dessas crises.


Se isso não acontecer, o que se vê no horizonte brasileiro, numa perspectiva de curto prazo, é o que se viu no passado da Argentina, no fracassado governo Fernando De La Rúa: também aquele presidente e o presidente argentino atual, como Lula, era o próprio “Cavaleiro da Esperança” nas eleições, diante do que havia sido o governo neoliberal anterior. Com o fracasso de De La Rúa, a sequência de crises e convulsões sociais acabaram levando o povo às ruas, vinte anos atrás (e novamente agora com uma experiência semelhante). Terminarem, no caso de De La Rúa, na renúncia do próprio presidente na metade de seu mandato. No caso do atual presidente argentino, a crise do fim do neoliberalismo parece não ter fim!


No momento em que escrevo, Bolsonaro não tem chances de ganhar as eleições. Entretanto, considerando o desastre que seria sua vitória, o que se coloca perante a sociedade é um desafio de sobrevivência: se ele ganhar, é a confirmação do neoliberalismo, que nos trouxe ao caos absoluto. Além disso, seu legado é tão nefasto que, ganhando ou perdendo, conforme mencionei antes, surgirá um descompasso entre grandes expectativas eleitorais da sociedade e a realidade objetiva do governo anterior que, se não vier a ser enfrentada por um plano de emergência consistente e bem-sucedido, ao alcance apenas de Lula, nos levará a uma eventual convulsão social e política, que chamo de síndrome de De La Rúa. Em qualquer hipótese, porém, os riscos da transição serão extremamente reduzidos se Lula ganhar no segundo turno.


Adendo Técnico


O Congresso e as armadilhas do neoliberalismo

Com o domínio absoluto, por cooptação ou compra, do Congresso atual, Bolsonaro impôs duas travas principais para que a política econômica neoliberal se estenda além do seu mandato: a política fiscal e a política monetária. Já mencionei isso ao longo do texto, mas, tendo em vista o caráter heterogêneo e não necessariamente especializado em economia da maioria da população, inclusive parte da intelectualidade progressista brasileira e especialmente dos eleitores, convém uma abordagem específica e didática desses temas.

Tanto a política fiscal – que diz respeito a impostos, receita e gastos do governo – e a política monetária – que diz respeito a taxas de juros e emissão de moeda e títulos públicos – dependem direta ou indiretamente do Congresso Nacional. Bolsonaro travou essas políticas em leis ou emendas orçamentárias, a primeira via aprovação anual do orçamento pelo parlamento, e a segunda com a emenda constitucional que deu autonomia de gestão à diretoria do Banco Central. Além disso, o Art. 166 da Constituição de 1988 estabeleceu estreitos limites para a execução orçamentária.

Um presidente que não tenha maioria parlamentar por eleição ou capacidade de construí-la depois dela terá grande dificuldade de alterar o orçamento e a Constituição, segundo as prioridades que definiu em campanha. Mesmo que, nesse caso, baste maioria simples no Congresso, não é nada fácil, dadas experiências pregressas com governos progressistas. Já no caso da política monetária, se for necessária uma intervenção mais abrangente, só uma maioria de três quintos poderia revogar a emenda que deu autonomia à diretoria do Banco Central – a não ser que se crie uma atmosfera desconfortável para que a diretoria renuncie voluntariamente.

Essas políticas “travadas” é que dão uma característica específica ao neoliberalismo radicalizado de Bolsonaro – e mesmo de um neoliberalismo “brando” de governos anteriores -, conduzido por Paulo Guedes. Essas “travas” só poderão ser retiradas se Lula conseguir, como presidente, viabilizar uma maioria parlamentar, mesmo que não seja permanente. Para dar um exemplo concreto de como isso funciona, vejamos, no caso das políticas fiscais e monetárias, quais são os primeiros desafios que o futuro presidente vai enfrentar.

A LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que fixa as bases do orçamento de um ano para o do ano seguinte, está enquadrada em diretrizes como “equilíbrio orçamentário”, “superávit primário” e “teto de gastos”. É, inequivocamente, o tipo de orçamento mais restritivo e mais regressivo do mundo. “Equilíbrio orçamentário” significa que o governo não pode gastar mais do que arrecada. “Superávit primário” significa que o governo tem que cortar gastos correntes constitucionais (saúde, educação, saneamento, segurança etc) a fim de pagar dívida pública, sem poder emitir dinheiro e novos títulos, e, portanto,  limitado também em seu poder de realização de novos investimentos de infraestrutura. “Teto de gastos” significa que o governo tem que congelar o orçamento, em termos reais, por 20 anos!

Tudo isso não faz nenhum sentido. O governo deve gastar mais do que arrecada porque não há outra forma de ele colocar dinheiro novo na economia, e, sem dinheiro novo, a economia não cresce. Fazer “superávit primário” é ainda pior. O governo estará retirando da economia real mais do que está injetando nela, isto é, funcionará de forma contracionista, portanto contra o crescimento econômico.  E a lei do teto de gastos não pode ter outra qualificação senão a de estupidez absoluta porque supõe que a sociedade, ao longo de 20 anos, não vai precisar de investimentos públicos reais acima dos níveis atuais, sobretudo para atender demandas das classes mais desfavorecidas, cuja população em geral cresce mais do que as das classes superiores. Ou seja, a própria infraestrutura econômica e social pública direcionada para os pobres deve ficar congelada, sob o suposto de que a iniciativa privada, cujo objetivo é ganhar dinheiro e não fazer políticas públicas, cobrirá o espaço deixado vago pelo Estado!

Além disso, de acordo com um vacilo na Constituição de 88, o artigo 166 estabelece que as emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre serviço da dívida pública. Portanto, o pagamento da dívida pública empenhado é sagrado. E, por cima disso, quando quantias empenhadas no orçamento ficam eventualmente abaixo das receitas, na execução orçamentária, os recursos resultantes devem ser transferidos ao Tesouro Nacional para eventual pagamento da dívida pública, conforme indica outro dispositivo legal.  

Assim, em 2021, o governo Bolsonaro empenhou com as 27 funções primárias do orçamento cerca de R$ 1,591 trilhão. Mas só executou cerca de R$ 1,444 trilhão. Portanto, deixou de executar cerca de R$ 147 bilhões, gerando um superávit no Tesouro Nacional, possivelmente destinado ao pagamento da dívida pública federal, em lugar de ser distribuído a outras funções governamentais primárias, mesmo quando submetidas a contingenciamentos. Portanto, havia sobras de recursos no Tesouro e contingenciamento para diversas funções orçamentárias, como educação e ciência e tecnologia, e assim mesmo as verbas não puderam ser reconstituídas.

É como prisioneiro dessa estrutura fiscal legal que Lula terá de governar, caso, via as próprias eleições e os acordos, não conseguir sustentar uma maioria parlamentar que o autorize a alterar o orçamento em favor de suas prioridades. No caso da política monetária, o neoliberalismo radical estabeleceu um modelo de gerenciamento que, assim como o da “política fiscal”, também “trava” o desenvolvimento. É que uma sequência de ações monetaristas que começa com a justificativa de controlar a inflação acaba eventualmente em mais inflação. Incrivelmente, essa “trava” na política monetária se tornou lei por iniciativa de um parlamentar do próprio PT, no governo Bolsonaro, dando autonomia de gestão ao Banco Central.

De fato, para supostamente controlar a inflação dentro do modelo monetarista, o BC autônomo, por sua própria conta, aumenta a taxa de juros e favorece a especulação financeira, contribuindo para reduzir os investimentos produtivos e a taxa de câmbio. O efeito aparentemente saudável da queda do câmbio é enganador: ele prejudica a indústria que produz para exportações e o próprio mercado interno, devido à concorrência externa, e reduz o emprego industrial de qualidade, em nada favorecendo o controle do custo de vida, pois o aumento da oferta interna induzido pelo câmbio mais barato se limita a bens e serviços industriais, não os da base alimentar.

Sob o risco de ser estrangulado pelo legado neoliberal, a verdadeira esperança do Brasil, apontada na campanha de Lula, é sua comprovada capacidade de articulação com os partidos políticos, Congresso e Sociedade Civil. Sem isso, não haverá possibilidade real de remover ou reduzir as travas fiscais e monetárias legadas pelo bolsonarismo e pôr em marcha um governo efetivamente a favor do povo.

Uma esperança adicional é que pelo menos parte das elites e das classes dominantes do país, assustadas com o que tem sido o governo Bolsonaro, ajudem o futuro Presidente a governar, acima de ideologias. Favorecer um movimento nacional nesse sentido, a meu ver, é um dever de nossa intelectualidade e um estímulo para que se busque a vitória de Lula no primeiro turno.


Sustentabilidade social e econômica

Entretanto, para que se garanta sustentabilidade social e política a curto e médio prazos no país, o governo Lula, uma vez eleito, terá de tomar iniciativas imediatas para atacar os problemas que mais angustiam a população no momento. São eles, conforme mencionado acima, a situação e a expansão da miséria de grande parte do povo (33 milhões de famintos), alto desemprego, aumento acelerado do custo de vida e da inflação. Eles colocam em risco a estabilidade do país, segundo o que advertiu, ainda na elaboração da Constituição de 88, seu presidente Ulysses Guimarães.

Em relação ao desemprego, os indicadores enganam porque, depois da violenta queda do emprego formal durante a pandemia, eles voltam a níveis maiores agora, celebrados por Bolsonaro como uma grande vitória de sua política econômica. Entretanto, se compararmos
a situação atual do mundo do trabalho como o de anos anteriores, veremos que estamos numa situação muito pior do que no último ano de Dilma, antes do golpe contra ela. Hoje está em torno de 11%, enquanto no governo Dilma havia baixado para 4,8%.

Além disso, a informalidade aumentou drasticamente, de 28% para 40%, enquanto o salário-mínimo, que durante os anos dos governos Lula e Dilma aumentou 76% acima da inflação, e no governo Bolsonaro aumentou 0% em termos reais. Paralelamente, o processo de desindustrialização do país provocaria uma queda seguida de empregos que, eventualmente mantido, são justamente os de pior qualidade em termos de remuneração.

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Diante disso, eis o que me parecem ser as iniciativas mais necessárias e imediatas para atacar os desafios de um futuro governo progressista rumo a uma retomada econômica e social:

  1. Mobilização da produção agrícola e dos estoques da base da cadeia alimentar que estejam em armazéns públicos e privados, assim como de importações – quando disponíveis no exterior -, para que seja atendida pelo lado da oferta a demanda criada pelos benefícios sociais em dinheiro garantidos pelo governo (600 reais mensais), de forma a reverter emergencialmente o aumento do custo de vida. Claro, esse sistema tem que ser subsidiado pelo governo. Bolsonaro fez o oposto. Aumentou benefícios em dinheiro, mas não atuou do lado da oferta, com o que contribuiu para a aceleração do custo de vida.
  2. Manutenção da campanha de vacinação contra a Covid 19 de forma a evitar os riscos de uma recidiva da epidemia.
  3. Apoio financeiro e material a Estados e Municípios no sentido de recuperar as perdas de dois anos no sistema educacional.
  4. A curto/médio prazos (seis primeiros meses), investimentos e financiamentos pesados, públicos e privados, na expansão da agricultura familiar, nos programas do MST e na indústria da base alimentar, para atacar de forma permanente as pressões de aumento do custo de vida a fim de revertê-las.
  5. Recuperação dos programas de construção de casas populares.

Convém mencionar que já estão em andamento iniciativas de médio prazo muito interessantes da iniciativa privada que vão nessa direção. Uma delas é da Coppe/UFRJ, cujo Labfuzzy, fundado e dirigido pelo professor Carlos Cosenza, desenvolveu modelos de planejamento e localização industrial-agrícola que podem ser aplicados ao agronegócio, favorecendo ao produtor de todos os portes, com grandes resultados a curto, médio e longo prazos. Um dos efeitos paralelos altamente positivos da eventual aplicação desse modelo, com apoio federal, é a grande geração de empregos urbanos e rurais.

Outra iniciativa do setor privado excelente, que pode ser aproveitada logo no início do governo por Lula, é o projeto pioneiro da Agroviva, privado, que tem base em alta tecnologia e características similares ao do Labfuzzy. Um de seus dois parceiros, o empresário Rodrigo Rocha, me informou que já estão sendo integrados através de uma plataforma digital específica produtores rurais e outros empresários, desde a base agrícola até transporte e comercialização interna e externa, para realização desse projeto cuja garantia real é a própria terra.

Eis a síntese dos propósitos da Agroviva:

A Plataforma Agroviva Alimentos destina-se a promover parcerias estratégicas que viabilizem o desenvolvimento de projetos agropecuários e pesqueiros sustentáveis, empreendidos por Arranjos Produtivos Locais – APL organizados especialmente no interior do Brasil, incentivados por esse canal eletrônico integrador. Ela oferece soluções para o escoamento comercial da produção de pequenos e médios empreendedores rurais, atraindo recursos financeiros para negócios direta e indiretamente vinculados à esta cadeia integrada de produção de gêneros, fortalecendo o desenvolvimento destes Arranjos Produtivos com toda a infraestrutura necessária.

Em ambos os casos, se houver financiamento barato e subsídios, garantidos e amplos – não só do Banco do Brasil (Plano Safra), como de outros bancos públicos, inclusive de desenvolvimento como o BNDES, que Lula pretende que venha a financiar também pequenos e médios empresários, rompendo a exclusividade dele com os grandes -, essas duas iniciativas, pioneiras no campo tecnológico, poderão ajudar a que se dê ao Brasil, efetivamente, soberania na área alimentar e desenvolvimento sustentável na área social, combatendo de forma efetiva a miséria de 33 milhões!

Quanto às medidas de médio e longo prazos para a retomada da economia, tanto no campo social quanto da infraestrutura econômica, serão necessários investimentos e incentivos, em parceria ou não com a iniciativa privada, no saneamento básico, na reestruturação do SUS e da rede de ensino superior, na reindustrialização e na substituição de importações, no desenvolvimento científico e tecnológico, nos empreendimentos empresariais para assegurar a autossuficiência da economia em setores vitais como energia limpa e produção de medicamentos, na mudança da matriz de transportes para ferrovias eletrificadas. Por mais prioritárias que sejam, essas medidas terão de esperar pelo equacionamento da questão fiscal e a revisão do orçamento. O meio para isso, nos seis primeiros meses de governo, é recorrer a uma ampla negociação no Congresso com base na Teoria Monetária Moderna ou nas Finanças Funcionais, conforme se verá adiante.


BRICS, suporte econômico para a retomada

Para medidas de médio e longo prazos de maturação, a grande oportunidade para a retomada econômica do país seria um acordo estratégico com a China, no âmbito do BRICS, para equacionamento de financiamentos externos, em que tem insistido o presidente Lula. Essa é nossa maior janela de oportunidades socioeconômicas neste século. A China consolidou sua economia, em poucas décadas, como a segunda mais importante do planeta, enquanto o Brasil, caso realize mudanças institucionais que possibilitem corrigir erros e insuficiências do passado, pode aprender com ela os caminhos da prosperidade. A chave para o êxito chinês foi construir uma “economia da produção”. O fracasso relativo do Brasil foi se curvar à “financeirização” e à “especulação” financeira. O resgate deste pode ser fortemente estimulado pela consolidação, no bloco do BRICS, de uma agência de desenvolvimento. 

Esta nota técnica visa a apontar meios pelos quais, com apoio da China e usando financiamentos do fundo BRICS e outras fontes de financiamento externo e interno, desde que baratas, o Brasil pode voltar a ser um país de desenvolvimento socioeconômico rápido, como foi no passado. O principal passo para isso é libertar-se da ideologia neoliberal, que penetrou no país, trazida pelo FMI, com a crise da dívida externa no início dos anos 1980. O neoliberalismo foi um legado negativo do FMI para enfrentarmos a crise da dívida, pois, mesmo depois de não mais dependermos dele para pagá-la, continuamos com políticas monetárias e fiscais restritivas, nele inspiradas, conforme mencionei acima.

Não fosse o marco institucional do FMI, teria sido possível ao Brasil escapar da crise da dívida externa à moda chinesa, isto é, recorrendo à “economia de produção”. Entretanto, fomos empurrados para uma “economia de especulação”. Uma “economia de produção” aumenta a criação de bens e serviços quando está em desequilíbrio financeiro externo (dívida ou déficit no balanço de pagamentos) e interno, ou quando recorre a empréstimos no país ou no exterior para pagar, com aumento da oferta em relação à demanda, déficits em transações correntes, dívida acumulada no passado ou pressão interna excessiva da demanda. Esta era a situação brasileira no início dos anos 1980. Nesse ponto, porém,  entraram os aconselhamentos mandatários do FMI.

Em lugar de pagar a dívida passada e as pressões da demanda interna com aumento da produção e da oferta, o FMI impôs ao país justamente cortar na produção, para diminuir a demanda interna e disponibilizar recursos reais daí derivados para reduzirmos o endividamento e a demanda interna. Isso implicou eliminar investimentos públicos e elevar a taxa de juros, com queda do emprego e da renda, e estagnação do PIB. A estagnação foi recorrente, tanto mais profunda quanto mais os “conselhos” neoliberais, originários das primeiras missões do Fundo, foram assimilados pela administração pública interna, exacerbados nos anos recentes do ultraneoliberalismo. 

O Brasil teria sido salvo dessa tragédia se o FMI funcionasse como uma agência internacional para facilitar o equilíbrio econômico global das economias em crises nas suas relações econômicas externas, e não apenas como um instrumento para o equilíbrio financeiro entre elas. Nesse caso, o foco da ajuda ao Brasil teria sido facilitar a retomada de seu processo produtivo, para, do lado externo, aumentar o superávit em conta corrente (bens e serviços) e usar a margem de dólares resultantes, líquidas de importações de insumos externos, para pagar a dívida; do lado interno, o objetivo teria sido, como observado, aumentar a produção para expandir a oferta em relação à demanda eventualmente superaquecida. Contudo, pela lógica do FMI, o caminho apontado foi aumentar ainda mais a dívida futura, com novos empréstimos, para pagar a dívida passada, enquanto era estrangulada a capacidade de o país tomar empréstimos alternativos a juros baixos no sistema internacional privado.

Esse foi o ponto inicial da “financeirização” da economia brasileira, pois, para acrescentar aos recursos do Fundo outras fontes de financiamento externo, o país precisava de aumentar a taxa de juros interna a fim de atrair capital internacional privado que lhe ajudasse a fechar suas contas. Disso não resultava necessariamente financiamento de investimentos produtivos internos. Em geral, o que acontecia, e ainda acontece, é o oposto. A entrada de recursos externos se transforma em dívida pública e privada interna, as quais, alimentadas pelos juros estratosféricos arbitrados pelo Banco Central, tornam-se inadministráveis e disfuncional para novos investimentos reais e o desenvolvimento da economia. A dívida externa e interna, pública e privada, sobe exponencialmente, na medida em que os bancos puxam suas taxas internas de juros para cima em alinhamento com as do exterior.

Para que o Brasil saia da condição de “economia da especulação” para a “economia da produção” é essencial que uma agência reguladora internacional cumpra, para a estabilidade econômica do mundo, o papel que o FMI não cumpre e nunca cumpriu, por causa de seu viés financeiro, vinculado à hegemonia do dólar e dos banqueiros privados, interessados principalmente na especulação. Este poderá ser o papel de uma agência reguladora de relações econômicas internacionais, sob orientação do BRICS, apoiada em produção: em lugar de Fundo Monetário Internacional, com foco financeiro, um Fundo para Estabilização Econômica Mundial (FEEM), com foco na produção. Vejamos como poderia funcionar.

Como observado, para manter o equilíbrio externo com crescimento sustentável – portanto, sem déficit no balanço de pagamentos e sem inflação –, a economia deve apoiar-se na produção, e não na “ciranda financeira”, conforme a “financeirização” era conhecida no início dos anos 1980. Entretanto, a “economia da produção” tem que ser financiada sem ônus excessivos em termos de compromissos futuros com a escalada de juros sobre juros. É nesse ponto que entra o FEEM, possível Fundo especializado dos países do BRICS: ele disponibilizaria financiamentos a juros fixos moderados, a longo prazo, para os países do bloco que estabelecessem programas de investimento produtivo para o desenvolvimento ou estivessem em desequilíbrio no balanço de pagamentos. Seria a produção oriunda desses investimentos que garantiria os próprios empréstimos.

O prazo para os pagamentos seria compatibilizado com o fluxo de produção e de geração de superávits reais para abater o valor programado dos financiamentos, de forma a manter ou restabelecer, ao fim desse prazo, o equilíbrio externo ou o programa de desenvolvimento do país. E a moeda usada seriam os próprios produtos – bens e serviços, de um lado, e matérias primas, de outro –, disponibilizados virtualmente pelos países membros produtores numa espécie de “cesta de moedas”, quando estivessem numa situação superavitária externa, porém, sujeita a saques quando estivessem em déficit ou precisassem de financiamentos para produção. Isso possibilitaria taxas de juros extremamente baixas e um esquema seguro de relações econômicas internacionais garantidas.

No caso concreto das relações entre Brasil e China, no âmbito do BRICS, não haveria praticamente nenhuma restrição a financiamentos de novos projetos de desenvolvimento sustentável do lado brasileiro. A condição externa seria o FEEM, e a condição interna seria a ruptura com as políticas fiscais e monetárias restritivas que têm sido impostas ao país nas últimas décadas. Nesse caso, seria uma ruptura com o neoliberalismo, exigindo uma verdadeira “revolução cultural” na tecnocracia pública, dominada por ele.

A China pode dar ao Brasil uma ajuda imprescindível sob esse aspecto. Em termos teóricos, economistas progressistas, filiados à Teoria Monetária Moderna ou teoria de Finanças Funcionais, têm sustentado, com base em argumentos sólidos, que um país que emite a própria moeda e dispõe de suficientes recursos naturais, principalmente energia (ou que pode comprá-los), não tem limites fiscais ou bancários para novos investimentos se tiver suporte internacional para financiar o equilíbrio externo. A garantia interna e externa dos investimentos é a produção bem planejada. Com a garantia do BRICS, o Brasil estaria nessa condição. Internamente, o país emite sua própria moeda, cujo valor é garantido por tributos que impõe à sociedade, e por isso não pode quebrar.

Independentemente de teoria, a China pratica uma economia funcional. Ela efetivamente não tem restrições financeiras e fiscais para investimentos produtivos (3,2 trilhões de dólares em reservas internacionais), e foi com eles e a mobilização de mão de obra abundante que se tornou uma máquina de geração e comercialização de bens e serviços inicialmente baratos, em escala mundial, num tempo sem precedentes. Está ao alcance do Brasil percorrer esse mesmo caminho, mesmo que num ritmo menor. Pode acelerá-lo, porém, no caso de estabelecer uma estratégia operacional com a China, reproduzindo o modelo empresarial estabelecido no governo Geisel, isto é, o “modelo tripartite”.

O “modelo tripartite” partia da necessidade de alcançarmos os países desenvolvidos em prazo o mais rápido possível. Se fôssemos reproduzi-lo agora, em lugar de tentarmos desenvolver tecnologia nova, essencial para que se dê um passo avante na reindustrialização brasileira e na industrialização por substituição de importações, depois do atraso neoliberal, teríamos, novamente, de usar o poder do Estado e nos aliar aos setores privados interno e internacional para realizarmos investimentos empresariais de porte, sobretudo em infraestrutura. O modelo deu certo, em parte, no passado, mas foi interrompido com a crise da dívida externa nos anos 1980. Podemos repetir essa experiência com a China e outros países avançados: as crises em que mergulhamos nos últimos anos nos deixou longe de uma possibilidade real de desenvolver tecnologia autônoma com nossos próprios recursos. Precisamos de parceiros. A própria China está duas a três gerações através dos EUA em alta tecnologia.

O melhor parceiro, insista-se, é a China. Tem suficientes recursos tecnológicos e financeiros, tem um sistema estatal confiável, tem estabilidade econômica e está integrado no BRICS, como o Brasil, sendo um dos seus líderes. É um dos principais parceiros comerciais do país em setores econômicos complementares. A parceria com a China tem resultado em importantes retornos econômicos para a iniciativa privada brasileira, e apoiá-la decisivamente, promovendo desenvolvimento tecnológico em lugar de apenas relações comerciais restritas ao agronegócio e ao minério de ferro, pode levar o país de volta à trilha da industrialização, ou reverter a desindustrialização.

Em relação ao BRICS, sua ampliação é inevitável. A Argentina anunciou a intenção de aderir a ele, e outros países, como Irã, Egito e Arábia Saudita sinalizaram com o mesmo propósito. Com isso, surge claramente no mundo a perspectiva de uma alternativa à “economia da especulação”, sob liderança chinesa, a que podemos aderir. Sua capacidade indiscutível de dar suporte ao bloco atual e expandido está tanto na sua base produtiva e tecnológica, quanto no seu nível de reservas internacionais, que garantiriam o combate a quaisquer desequilíbrios econômicos entre os membros.                                                                            

Apenas como indicação para o modelo tripartite Brasil-China, poderiam ser criadas sociedades em várias setores da indústria em que estamos atrasados e, especificamente, nas áreas ferroviárias, agroindustriais da cadeia alimentar,  de microeletrônica (por exemplo, microprocessadores,  de importância vital para insumos industriais) e farmacêutica, nas quais a China tem evidente vantagem. O Brasil entraria com disponibilidade de terras e tecnologias limpas na área energética, do agronegócio e da agricultura voltada para o pequeno e médio agricultor, sob orientação da Embrapa, onde o país tem larga experiência e vantagens tecnológicas. Á iniciativa privada, junto com o Estado, caberia definir o conjunto completo das áreas de parceria no campo econômico, das quais essas são apenas amostras preliminares.

A parceria Brasil e China deve ser articulada com os 17 objetivos da ONU para o desenvolvimento sustentável do mundo até 2025, 2030 e 2050.  Tendo em vista as mudanças climáticas que já se sentem em eventos extremos, atraindo a atenção de todo o planeta, ao Brasil interessa o suporte da China também em políticas ambientais, que exigem o concurso de recursos consideráveis dos dois países, mas que, diante do poder econômico da China, poderá ser melhor suportado por ela, em favor sobretudo das camadas mais pobres da população.

A aproximação “estratégica” com a China, como propõe o presidente Lula, não significa ruptura total com os Estados Unidos e o bloco ocidental. Justamente porque as condições geopolíticas do mundo estão se alterando aceleradamente com a guerra na Ucrânia, a melhor posição brasileira é uma relativa neutralidade, para aproveitar oportunidades que se abrem dos dois lados. Não estamos diante de um jogo de futebol. Estamos num jogo de destino.

(1) Este texto é um resumo atualizado de meu livro “A Economia Brasileira Como Ela É”, publicado pela Amazon na forma virtual, e cujo link de acesso na Estante Virtual é:

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