Ondas de calor, eventos mortais e ainda negligenciados no Brasil

Ondas de calor, eventos mortais e ainda negligenciados no Brasil

Em 18 anos (2000 e 2018), alta das temperaturas já causaram a morte de 48.075 pessoas nas 14 maiores regiões metropolitanas do Brasil, alerta artigo publicado na revista científica americana Plos One.

POR MARIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – Ana Clara Benevides, estudante de psicologia, morreu aos 23 anos, durante o show da cantora norte-americana Taylor Swift, em 17 de novembro de 2023, num estádio de futebol da Zona Norte da cidade brasileira do Rio de Janeiro.

Parecia uma morte solitária devido ao calor excessivo que, desde setembro, castigava grande parte do Brasil, especialmente o Centro-Sul, em um verão que durou 6,5 meses: começou em setembro, quando o inverno ainda não havia terminado, estendendo-se ao longo de toda a primavera, além do próprio verão austral, entre 22 de dezembro e 20 de março.

As ondas de calor, que se tornaram frequentes nesse período, são mais mortais do que parecem. Elas causaram a morte de 48.075 pessoas nas 14 maiores regiões metropolitanas do Brasil, entre 2000 e 2018, estima um artigo publicado em janeiro na revista científica americana Plos One.

Esse número, baseado no excesso de mortes durante ondas de calor em comparação com as médias normais, equivale a 20 vezes o número de vítimas de deslizamentos de terra no mesmo período, segundo o estudo.

“O calor extremo continua sendo um desastre negligenciado no Brasil”, concluem seus autores, 12 pesquisadores de duas universidades brasileiras, uma portuguesa e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal organização brasileira de saúde pública, vinculada ao Ministério da Saúde.

“As condições sociais e econômicas ditam a capacidade de adaptação às ondas de calor. O clima é o mesmo, mas afeta menos quem tem mais recursos, mais escolaridade, mais mobilidade e acesso ao saneamento básico. Num bairro rico chove igual, mas seus moradores não morrem como nos bairros pobres”: Renata Gracie.

Os termômetros se aproximavam dos 40 graus nos bairros mais quentes do Rio de Janeiro, mas a sensação térmica atingiu 59,3 graus quando quase 60 mil pessoas se reuniram para ouvir e ver Taylor Swift na noite de 17 de novembro.

Isso causou exaustão pelo calor e posterior hemorragia pulmonar e três paradas cardíacas em Benevides, a jovem que viajou 1.400 quilômetros de avião de Rondonópolis, cidade de 245 mil habitantes no Centro-Oeste do Brasil, para ver o show em um estádio sem água ou ventilação suficientes para tantas pessoas.

Renata Gracie, geógrafa com mestrado e doutorado em saúde pública, é coautora do estudo que estimou 48.075 mortes associadas ao calor extremo de 2000 a 2018 e revela o aumento das ondas de calor “em frequência, intensidade e duração” desde 1970 Imagem: Cortesia de Renata Gracie.

Ondas de calor intensas e prolongadas

As ondas de calor ultrapassaram os 60 graus de sensação térmica neste mês de março. O recorde foi alcançado no dia 17, com 62,3 graus de sensação térmica na barra de Guaratiba, bairro do extremo oeste do Rio de Janeiro.

Foi quando a cidade do Rio de Janeiro registrou a temperatura mais alta em uma década, o que, aliado aos 80% de umidade característicos da cidade atlântica do sudeste brasileiro, aumenta ainda mais a sensação térmica, que bateu seis vezes o recorde de temperatura nas últimas semanas, no sul do país, antes do início da temporada astronômica de outono em 20 de março.

Os climatologistas atribuem o calor intenso e prolongado ao fenômeno El Niño combinado com as alterações climáticas. Contribuições locais, como extensas áreas de concreto e asfalto, desmatamento e eliminação de corpos d’água, agravam o aquecimento urbano onde se formam as chamadas ilhas de calor.

As grandes cidades do centro-sul do Brasil registraram, em geral, temperaturas até cinco graus acima da média histórica no verão recém-encerrado.

Faltam no Brasil protocolos que orientem medidas de prevenção e atenção aos danos causados ​​pelas ondas de calor como existem, apesar de insuficientes, para outros eventos climáticos extremos, como enchentes e deslizamentos de terra, observou uma das autoras do estudo, Renata Gracie, tecnóloga no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz.

Quando chuvas torrenciais causam inundações e deslizamentos de terra fatais, ou ocorrem incêndios florestais e secas devastadoras, os governos locais declaram emergência para facilitar soluções em colaboração com outras esferas governamentais e até internacionais. Não é o caso das ondas de calor, lamentou Gracie.

Esta é uma preocupação global. A Europa, os Estados Unidos e o Japão já adotaram protocolos em resposta ao agravamento da crise climática. Em 2003, a Europa registou mais de 70.000 mortes devido ao calor excessivo em um verão desastroso.

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As praias do Rio de Janeiro estão lotadas de gente em busca de alívio das temperaturas recordes de março, mês com vários recordes de temperatura e a sensação térmica sem precedentes de 62,3 graus atingida no dia 17. Imagem: Município do Rio de Janeiro.

Mortalidade difusa e desigual

Uma dificuldade inicial é reconhecer a gravidade das ondas de calor, porque a sua mortalidade e outros danos não são visíveis como em outros eventos extremos. Em geral, as mortes decorrentes de altas temperaturas estão associadas a doenças crônicas, principalmente doenças circulatórias e respiratórias, diabetes e hipertensão.

É por isso que as vítimas mais numerosas são os idosos, geralmente portadores de algumas doenças ou vulnerabilidades que no final são apontadas como causa da morte.

O estudo foi feito para revelar o problema e promover medidas, disse Gracie à IPS em entrevista no Rio de Janeiro.

“São necessários cuidados básicos de saúde, com diagnóstico preciso destas doenças crônicas, para definir um tratamento adequado que evite os efeitos nocivos do calor”, recomendou o geógrafo com mestrado e doutoramento em saúde pública e coletiva.

Reduzir as desigualdades é outro remédio, disse ele.

Além dos idosos, as mulheres, especialmente as grávidas, os pobres, os afrodescendentes e as pessoas com menor escolaridade constituem os grupos mais afetados pelas ondas de calor.

“As condições sociais e econômicas ditam a capacidade de adaptação às ondas de calor. O clima é o mesmo, mas afeta menos quem tem mais recursos, mais escolaridade, mais mobilidade e acesso ao saneamento básico. Num bairro rico chove igual, mas seus moradores não morrem como nos bairros pobres”, destacou Gracie.

“As ilhas de calor que se geram nos grandes centros urbanos não chegam a todos. Por exemplo, quem tem ar condicionado e uma alimentação adequada, com saladas e frutas, por exemplo, foge, mas não quem não tem condições de comprar o aparelho de ar condicionado e precisa trabalhar ao sol, sem proteção”, afirmou.

Ambiente urbano adverso

Em termos de saúde pública, o ambiente urbano não se limita à natureza, “às árvores e aos rios”, mas inclui a parte construída, as residências ventiladas e as superlotadas nas favelas (bairros muito pobres no Brasil), a densidade populacional, infraestrutura e serviços como coleta de lixo, e tudo isso está distribuído de forma muito desigual, explicou a pesquisadora.

Ela não considera correto comparar a mortalidade por calor excessivo, estimada por estatísticas e de forma ampla, incluindo aquelas associadas a comorbidades, com a de inundações e deslizamentos de terra, limitada ao momento dos eventos.

Estas catástrofes também deixam consequências duradouras, tanto físicas como psicológicas, que podem levar à morte ou incapacitar as suas vítimas. “As inundações causam mortes subsequentes, os hospitais inundados param de cuidar dos doentes graves, muitos ficam sem os medicamentos de que dependem, os deslizamentos de terra impõem traumas e perda de casa e familiares, tudo contribui para doenças mentais”, disse Gracie.

No entanto, as mortes da atual epidemia de dengue também podem ser atribuídas indiretamente às ondas de calor, segundo Viviane Bordignon de Souza, enfermeira responsável pela vigilância epidemiológica do Hospital Paulínia, cidade de 110 mil habitantes a 120 quilômetros de São Paulo, no sudeste do país.

“O surto de dengue teve sua sazonalidade antecipada este ano devido ao fenômeno El Niño. Começamos a sofrer mais cedo e ficou mais difícil controlar e não sabemos se o número de casos está se estabilizando ou diminuindo”, disse à IPS por telefone de Paulínia.

A epidemia, já reconhecida em quase todo o país, já matou 758 pessoas e infectou 2.265.935 desde o início do ano até 25 de março, segundo o Ministério da Saúde. Há outros 1.252 óbitos ainda em análise por suspeita de dengue.

As ondas de calor vêm aumentando “em frequência, intensidade e duração” há cinco décadas e tudo indica que manterão essa tendência, observou o estudo do qual Gracie participou, intitulado “Desigualdades demográficas e sociais nas mortes associadas ao calor em áreas brasileiras, cidades urbanas no século XXI”, em tradução livre do inglês.

Artigo publicado na Inter Press Service.

Zezinho, uma favela de São Paulo, a maior cidade do Brasil. A superlotação e as pilhas de cimento, com pouca ventilação, contribuem para a criação de ilhas de calor urbanas que deterioram as condições sanitárias, principalmente da população idosa. Imagem: Mário Osava/IPS

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