Aprovada a “Carta de Salvador” com recomendações para o 9º Congresso Pan-Africano

Aprovada a “Carta de Salvador” com recomendações para o 9º Congresso Pan-Africano

Conferência da Diáspora Africana nas América faz história e aprova, após três dias de debates, a sua Carta de recomendações em torno dos seguintes temas: pan-africanismo, memória, reparação, restituição e reconstrução. (Foto: Juliana Uepa/MinC).

POR TATIANA CARLOTTI

Após três intensos dias de debate em Salvador (Bahia), a Conferência da Diáspora Africana nas Américas, ocorrida entre quinta-feira (29) e sábado (31), aprovou sua “Carta de Salvador” que, a partir de agora, será levada ao 9º Congresso Pan-Africano.

O 9º Congresso é parte dos eventos da “Década das Raízes e da Diáspora Africanas”, determinada entre 2021 e 2031 pela União Africana (UA), organização internacional voltada à integração do continente africano. Ele irá acontecer entre 29 de outubro e 2 de novembro de 2024, em Lomé, na capital do Togo, sob o tema “Renovação do Pan-Africanismo e o papel da África na reforma das instituições multilaterais: mobilizar recursos e reinventar-se para agir”.

Para este evento, a UA realizou seis conferências preparatórias: cinco em cada uma das regiões da África – em Brazzaville, Pretória, Bamako, Rabat e Dar-esSalam (confira as resoluções de cada conferência) – e a última, a conferência da Diáspora, foi realizada agora, em Salvador.

Como destacam os organizadores da Conferência, “a Diáspora Africana é a reunião de pessoas de origem africana que vivem fora do continente, independentemente de sua cidadania e nacionalidade”. Desde 2016, a UA considera a Diáspora como sua 6ª. região e, pela primeira vez, uma de suas conferências aconteceu fora da África.

A escolha do Brasil se justifica: nós somos o país com a maior população afrodescendente (56%) fora do continente africano. A Conferência de Salvador foi organizado pela União Africana e pelo Togo, em parceria com o governo federal e o estado da Bahia, com apoio da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Brasil-África.

Vale destacar que, desde 2007, o governo brasileiro mantém com a UA um acordo de cooperação técnica para a implementação de diversos projetos bilaterais. Neste ano, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação assinou um memorando com a UA para ações de cooperação mútua nesta área. A União Africana também é membro do agrupamento do G20, que conta nesta edição, com a presidência brasileira.

O evento no Brasil

Elaborada na sexta-feira (30), a Carta da Diáspora Africana nas Américas foi aprovada neste sábado (31) durante a plenária que contou com a colaboração de mais de 50 autoridades representativas dos países da diáspora, além dos ministérios da Cultura, das Relações Exteriores, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Cidadania.

Na abertura do evento, a ministra Margareth Menezes (Cultura) destacou o compromisso do presidente Lula que, neste ano, participou da abertura da 37ª Cúpula da União Africana, em Adis Abeba, na Etiópia, sede da UA. “Desde o início do seu mandato, o presidente Lula tem nos orientado na promoção do fortalecimento de um compromisso global de multilateralismo, na busca por soluções pan-africanistas para os desafios contemporâneos, que podem nos aproximar do continente africano e dos países da diáspora”, destacou a ministra.

Ela também afirmou que “o pan-africanismo nos lembra e nos ensina que a liberdade é uma luta constante e coletiva” e, em suas redes sociais, ressaltou que “essa carta não é apenas um documento. É um grito de resistência, uma afirmação do nosso compromisso coletivo em construir um mundo mais justo e igualitário. E um chamado para que cada um de nós se levante contra o racismo, a desigualdade e todas as formas de opressão que ainda persistem”.

“Como mulher negra e ministra da Cultura, sinto profundamente a importância desse momento. A história do Brasil está entrelaçada com a África de maneira indissolúvel, e hoje reafirmamos essa conexão com um compromisso renovado de cooperação e solidariedade. A luta pela reparação e pela dignidade humana é a luta da nossa gente, dos nossos ancestrais e das futuras gerações”, complementou.

Plenária durante a Conferência Diáspora Africana nas Américas. Foto: Fundação Palmares.

Sobre o pan-africanismo, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, lembrou que o movimento é “o alimento e a nutrição do orgulho da identificação negra africana por meio da estética, da cultura e da religião” e que “a escolha do Brasil para receber a Conferência da Diáspora revela, no século XXI, a preocupação da inclusão dos descendentes da diáspora e da aproximação da União Africana com um país de maioria minorizada, como é o caso do Brasil”.

“O Brasil foi o país nas Américas que mais recebeu pessoas africanas escravizadas no período colonial, por isso é fundamental que estejamos no centro da discussão sobre a diáspora africana. A conexão entre continente africano e Américas fortalece a filosofia Ubuntu. A busca por restauração da memória e desenvolvimento integrado da África e seus descendentes em diáspora é um compromisso que tem nessa Conferência um simbolismo muito grande”, complementou Franco.

Em sua avaliação, “a Conferência da Diáspora Africana, realizada no Brasil, é um marco histórico que ecoará por décadas, assim como a Conferência de Durban há 23 anos”. E este é “apenas o começo de uma nova era do fortalecimento das relações entre Brasil, Américas e África”, comemorou.

A Carta

A Carta de Salvador é uma carta de recomendações que “apresenta propostas relacionadas à promoção de políticas de reparação e de justiça social, incluindo a restituição de bens culturais e a preservação da memória, o fortalecimento do Pan-Africanismo, a ampliação do intercâmbio entre as nações da diáspora e o apoio mútuo na reconstrução de sociedades afetadas por séculos de colonialismo e escravidão”.

Ela foi elaborada em torno de quatro eixos principais, como explica o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) também presente na Conferência: “Nos últimos dias, representantes da sociedade civil, dos movimentos negros, das comunidades quilombolas, professores e intelectuais dos continentes africano e americano tiveram oportunidades de trocar reflexões e vivências acerca de temas relacionados ao pan-africanismo: a memória, a reparação, a restituição e a reconstrução.”

Em sua avaliação, “o documento final deste encontro, na forma de recomendações ao 9º Congresso Pan-Africano, deve ser entendido também como um chamado para que o Brasil e os demais países das Américas renovem seu olhar em relação a cada um desses conceitos e ajam em consonância com tais reivindicações”.

Também presente no evento, o ministro Mauro Vieira (Relações Exteriores) avaliou que a “Conferência da Diáspora Africana nas Américas cumpriu sua função de contribuir para a exitosa realização de reflexão sobre os legados do pan-africanismo e seu futuro” e que “a aproximação criada entre participantes africanos e da diáspora demostra que há oportunidades de reforçar nossos laços históricos mas que tem implicações no presente e para o futuro”.

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Já o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, destacou que “a expectativa é muito forte de que esses laços de parentesco no aspecto cultural continuem fortalecidos”. Ele também agradeceu todas as delegações que estiveram nestes dias em Salvador, “produzindo, gerenciando e monitorando as políticas já existentes”.  O encontro, avaliou, foi “um momento de união”.

“O presidente Lula nomeou seus quatro anos de governo com a missão de criar uma unidade no Brasil”, destacou. Que esta união também “possa servir para nós reconstruirmos os nossos conceitos e políticas públicas. A Bahia se sente lisonjeada em estar sediando esse evento”, ressaltou em entrevista ao portal Bahia Notícias.

As propostas

Plenária durante a Conferência Diáspora Africana nas Américas. Foto: Filipe Araújo/MinC.

Cerca de 200 pessoas participaram da elaboração da “Carta de Salvador”. Metade do grupo composta por brasileiros – especialistas, pesquisadores, personalidades da cultura, referências de movimentos sociais, especialistas dos setores público e privado – e a outra metade, por representantes da Diáspora Africana nas Américas, com representantes da América do Norte, América Central, Caribe e América do Sul, além dos cidadãos africanos.

Como destacou Ângela Guimarães, Secretária de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia, “esse documento reflete o compromisso coletivo de seguir lutando pela igualdade racial, pela reparação histórica e pelo avanço das políticas públicas voltadas às comunidades negras ao redor do mundo”. Ela também avaliou o evento como “um marco na construção de uma agenda política global em defesa dos direitos dos povos afrodescendentes e na reafirmação do nosso legado de resistência”.

Grande parte da Conferência ocorreu sem a presença de imprensa, que contou com uma coletiva e a transmissão online do dia 29 de agosto. No entanto, é possível acompanhar as discussões dos Grupos de Trabalho através da reportagem publicada no site da Fundação Palmares (leia a íntegra aqui).

Enquanto a Carta não chega, com base nesta reportagem, confira abaixo algumas das propostas debatidas pelos grupos de trabalho:

O Grupo de Trabalho (GT) sobre Pan-africanismo, moderado por Layla Brown (Northeastern University) e Zulu Araújo (Ministério da Cultura), com texto-base de Richard Santos (UFSB), propôs, entre outras propostas:

“- Fortalecer o movimento do século XXI, pautado pela filosofia ubuntu e caracterizado pelo compromisso com o humanismo e pelo reconhecimento da unidade e circularidade cultural, espiritual e linguística entre os povos africanos e a diáspora – esta, composta por comunidades emigradas e pelas populações de origem africana radicadas em países de outros continentes;

– Transversalizar os ideais do pan-africanismo e da filosofia ubuntu nos esforços de reparação e de reforma de instituições internacionais, bem como na gestão de políticas públicas dos Estados, por meio do aumento da representatividade de países africanos em organizações e foros internacionais.”

Do Grupo de Discussão sobre Memória, moderado por Gina Paige (African Ancestry) e Vilma Reis (ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia), com texto-base de Sheila Walker (Afrodiaspora Global), Helena Theodoro (UFRJ) e Thula Pires (PUC-RJ) foram debatidas, entre outras, as seguintes propostas:

“- Fortalecer e organizar circuitos acadêmicos, educacionais, culturais e políticos de diálogo e celebração da história compartilhada entre as populações africanas e a diáspora;

– Oferecer mais investimentos internacionais públicos e privados para pesquisas e atividades de preservação e divulgação do conhecimento sobre a história e a memória pan-africana, em particular sobre as conexões históricas entre a diáspora e o continente africano, com ênfase na influência de grupos étnicos e linguísticos específicos.”

Plenária durante a Conferência Diáspora Africana nas Américas. Foto: Filipe Araújo/MinC.

O Grupo de Trabalho sobre Reconstrução, moderado por Brenda Foreman (Broward Clerk of Courts) e Matilde Ribeiro (ex-ministra da SEPPIR), com texto-base de Yolian Ogbu (New York University) e Miriam Reis (UNILA), recomenda:

” – Criar políticas de desenvolvimento sustentável que prevejam estratégias de reconstrução para as nações afetadas pelo capitalismo predatório, incluindo: a reestruturação das matrizes energéticas, com desenvolvimento de fontes renováveis e seguras; produção eficiente de alimentos e programas de combate à fome e à insegurança alimentar; estratégias ampliadas de saúde que considerem especificidades epidemiológicas da diversidade dos países e permitam ações de prevenção e erradicação de doenças;

– Fortalecer a cooperação internacional em projetos de cooperação educacional e acadêmica dedicados aos vínculos entre o continente africano e a diáspora, bem como em projetos e iniciativas de promoção da igualdade de gênero e de acesso digno à saúde e à habitação.”

Já o Grupo de Trabalho sobre Restituição e Reparação, mediado por Akil Khalfani (Essex County College) e Vanderlei Pinheiro, com texto base de Barryl Biekman e Jardelina Bispo do Nascimento, ambos da UNEB, ao considerar que:

“A reparação é um processo compensatório, pelas injustiças históricas oriundas do período de escravidão, de colonização, e que a discriminação sistêmica continua a afetar as populações afrodescendentes e africanas”, recomenda:

“- Criar fundos de reparação financiados por governos e instituições que historicamente se beneficiaram da exploração de povos africanos para a restituição de bens culturais, recursos naturais e outros patrimônios que foram destruídos ou injustamente tirados dos(as) africanos(as) e de seus descendentes, com a criação de um observatório do patrimônio material e imaterial em rede;

– Por meio de fundos internacionais e nacionais, promover o desenvolvimento econômico, a educação e a saúde de africanos e afrodescendentes, combatendo o racismo institucional e a afrofobia, e promovendo a equidade racial dos povos em situação de vulnerabilidade, tanto nos países africanos quanto na diáspora;

– Constituir redes de cooperação, de pesquisa e parcerias entre instituições e comunidades em diferentes países dos continentes africano e da diáspora, para compartilhar e produzir pesquisas, conhecimentos, recursos e estratégias de desenvolvimento pautadas pela filosofia ubuntu.”

Os documentos produzidos na Conferência – a Carta de Recomendações da Conferência da Diáspora Africana nas Américas; as Notas Conceituais dos temas de Pan-Africanismo, Memória, Reconstrução, Restituição e Reparação; e o Relatório da Conferência da Diáspora Africana nas Américas – serão publicados em breve.

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