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Lei da transparência cubana concede novos direitos aos cidadãos

Lei da transparência cubana concede novos direitos aos cidadãos

Além de estipular garantias sobre o direito dos indivíduos de solicitar e receber informações “verdadeiras, objetivas e oportunas” do Estado, a nova legislação obrigará as entidades a prestar contas de suas funções públicas, sem necessidade de solicitação.

POR DARIEL PRADAS

HAVANA – A nova Lei de Transparência e Acesso à Informação Pública, a primeira do gênero em Cuba, dará aos cidadãos o direito de exigir informações de instituições governamentais, após décadas de impotência jurídica devido ao sigilo e às lacunas de comunicação.

Aprovada em julho, durante a última sessão da Assembleia Nacional do Poder Popular, o parlamento local unicameral, a lei regula a transparência e o direito à informação pública, segundo princípios de qualidade, rapidez, gratuitidade, inclusão e não discriminação, publicidade e responsabilidade.

A nova Lei da Transparência, que entrará em vigor em janeiro de 2025, “contribuirá para a redução da corrupção administrativa e do suborno, para a criação de instituições eficazes e transparentes, bem como para a proteção das liberdades fundamentais”, afirmou o ministro da Ciência, Tecnologia e Ambiente, Eduardo Martínez, perante o plenário do órgão legislativo.

“Há muito que era necessário. Qualquer informação deve ser transparente. É o ideal”, disse à IPS Claudia Hernández, 55 anos, cientista da computação.

Além de estipular garantias sobre o direito dos indivíduos de solicitar e receber informações “verdadeiras, objetivas e oportunas” do Estado, a nova legislação também obrigará as entidades a prestar contas de suas funções públicas, sem necessidade de solicitação.

“Por melhor que seja a lei, ela não se concretizará sem que se alterem os modelos de gestão da imprensa em Cuba, que devem necessariamente caminhar para um maior nível de autonomia, de modo a que a imprensa preste um serviço público e tenha um dever para com a população”, Carlos Fernández.

Considera ainda exceções ao acesso público a informação classificada ou limitada e os fatos que, se divulgados “constituam um dano, perigo, afetação ou violação” para a soberania, a defesa e segurança nacionais, os dados pessoais, o processo judicial ou administrativo em curso, os direitos de propriedade intelectual, a confidencialidade dos dados comerciais e o ambiente.

Os especialistas concordam que, através da implementação de políticas e quadros regulamentares e de utilização de tecnologias de informação e comunicação, é possível avançar para uma maior transparência governamental e maior participação dos cidadãos na tomada de decisões.

Jornalistas participam de conferência de imprensa em Havana por ocasião do 16.º dia cubano contra a homofobia e a transfobia, organizado pelo Centro Nacional de Educação Sexual. Existem muitos obstáculos para os jornalistas terem acessso a informações que deveriam ser do domínio público. Imagem: Jorge Luis Baños/IPS.

Praça cercada

“A minha experiência tem sido complicada, especialmente quando se toca em questões sensíveis para o Estado. Há muitos obstáculos para ter acesso a informações que deveriam ser de domínio público”, disse à IPS o jornalista cubano Israel Leyva, de 28 anos.

Ele acrescentou que, em muitas ocasiões, fontes oficiais lhe negaram informações porque simplesmente não as tinham. “Às vezes, eles não sabem lidar com isso e não estão preparados”, avaliou.

O país é governado por um modelo socialista, de partido único, o Partido Comunista de Cuba (PCC), com uma economia em que os meios de produção fundamentais pertencem ao Estado, tendo-se registado nos últimos anos um aumento dos atores privados e do investimento estrangeiro na economia.

No caso dos meios de comunicação social, os meios de comunicação de maior difusão (pertencentes a organizações políticas e sociais) estão subordinados ao PCC e coexistem com outros meios de comunicação estatais. Também se assiste à proliferação de meios de comunicação autodenominados independentes, que não têm respaldo legal no país, e de agências credenciadas e outras publicações internacionais.

A Lei da Transparência chegou ao país insular das Caraíbas no momento em que o debate sobre o papel e o dever dos meios de comunicação social atingia seu auge, um ano após a aprovação da Lei da Comunicação Social, sem precedentes.

O ex-presidente Raúl Castro (2006-2018) descreveu parte da origem do problema quando afirmou, em 2010, que era necessário “colocar sobre a mesa todas as informações e argumentos que sustentam cada decisão e, aliás, acabar com o excessivo secretismo a que nos habituamos durante mais de 50 anos de cerco inimigo”.

Um homem coloca um cartaz informativo sobre o direito de voto durante o dia das eleições para deputados da Assembleia Nacional do Poder Popular em Havana. Em Cuba, por meio da implementação de políticas e marcos regulatórios, é possível avançar rumo a uma maior transparência governamental e a uma maior participação dos cidadãos na tomada de decisões. Imagem: Jorge Luis Baños / IPS.

Segundo Carlos Fernández, teórico da comunicação e professor da Universidade de Havana há 10 anos, um dos problemas que tem impossibilitado a transparência da informação pública é o conceito de “praça sitiada”, em que toda a informação pode ser usada pelo inimigo, neste caso, os Estados Unidos, com a sua política hostil à ilha.

“Cuba concebeu o seu aparelho institucional de comunicação pública sob este conceito, que é prejudicial à participação dos cidadãos. O mais coerente para o projeto socialista é uma cidadania ativa, com critérios e envolvida nos processos políticos. A participação cidadã precisa de informação”, argumentou em entrevista à IPS.

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O cientista da computação destacou que a abertura da informação começou a ser notada em 2018, com o governo de Miguel Díaz-Canel. “Anos atrás, a transparência era quase inexistente. E ainda hoje não é tão transparente quanto gostaríamos”, afirmou.

A Constituição em vigor desde 2019 mudou um pouco essa tendência com o seu artigo 53: “Todas as pessoas têm o direito de solicitar e receber informações verdadeiras, objetivas e oportunas do Estado”.

A lei fundamental previa no calendário legislativo a apresentação de uma lei de transparência ao parlamento em julho de 2021, mas foi adiada em várias ocasiões, embora desde 2018 uma comissão a esteja elaborando com o aconselhamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

De acordo com fontes oficiais, foi realizado um estudo comparativo de 123 leis relacionadas em todo o mundo para a formulação da norma. Na América Latina e nas Caraíbas, 28 países dispõem desse tipo de legislação, incluindo o Chile, com a Lei da Transparência sobre o Acesso à Informação Pública, publicada em 2008, e o México, com a Lei Geral da Transparência, em vigor desde 2016.

Placas fornecem informações sobre a distribuição e a venda de produtos racionados à população num mercado estatal em Havana. A nova legislação de Cuba garante o direito dos cidadãos de solicitar e receber informações de instituições públicas. Imagem: Jorge Luis Baños / IPS.

Desafios da lei

O artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhece o direito dos cidadãos de solicitar informações públicas e obter uma resposta num prazo razoável, desde que as informações não sejam confidenciais ou estejam sujeitas a uma exceção estabelecida por lei.

A Comissão Econômica para a América Latina e as Caraíbas (CEPAL) destaca vários padrões de transparência para essas leis, por exemplo, de que a informação deve ser gratuita e livre para reutilização.

No caso da lei de transparência cubana, a questão causou alguma polêmica, uma vez que seu artigo 15º estipula que:

“O acesso à informação pública é livre desde que não seja necessária a sua reprodução, digitalização, pesquisa ou serviço especializado; neste caso, os custos são suportados pelo requerente e estão sujeitos às taxas aprovadas pelos sujeitos obrigados e às disponibilidades existentes no momento do pedido”.

De certa forma, se as instituições obrigadas a prestar contas das suas atividades não conseguirem satisfazer a procura de informação das pessoas com suas próprias investigações e publicações, os cidadãos terão de pagar por esse conhecimento “extra”.

Outra norma da CEPAL é a existência de um órgão independente que deve analisar o cumprimento da lei de transparência, decidir sobre as queixas dos cidadãos e ter o poder de ordenar medidas adequadas e impor sanções a outras entidades. No México, por exemplo, existe o Instituto Nacional para a Transparência e, no Chile, o Conselho para a Transparência.

Em Cuba, o garantidor da Lei da Transparência será o Ministério da Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, que também desempenha outras funções ministeriais e, em teoria, também deverá prestar contas por elas.

Alguns analistas jurídicos consideram que, segundo esta lógica, a entidade não seria adequada para arbitrar sobre essas questões e que a nova legislação não define quais os poderes específicos que poderá assumir.

Em vez de criar uma nova instituição que continue a dispender os fundos empobrecidos do Estado, Fernández disse que as estruturas já existentes deveriam ser usadas.

No entanto, acrescentou que o Instituto de Informação e Comunicação Social, criado em maio de 2023, seria mais adequado como garantidor.

“Ele ainda não está cumprindo as suas funções. Está mais preocupado em administrar a imprensa do que em estabelecer políticas públicas de informação e comunicação”, avaliou.

De qualquer forma, o grande desafio para a efetivação da nova norma jurídica exige um redimensionamento do aparelho de comunicação cubano, hoje apoiado principalmente pelos meios de comunicação públicos e com a orientação ideológica do PCC, o único partido legal no país.

“Por melhor que seja a lei, ela não se concretizará sem que se alterem os modelos de gestão da imprensa em Cuba, que devem necessariamente caminhar para um maior nível de autonomia, para que a imprensa possa prestar um serviço público e responsável para a população”, complementou Fernández.

Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.


FOTO DE CAPA: Mulher assiste a uma transmissão televisiva de uma sessão da Assembleia Nacional do Poder Popular, o parlamento unicameral de Cuba, em julho de 2023. Para a criação da Lei da Transparência e do Acesso à Informação Pública, foi realizado um estudo comparativo de 123 leis relacionadas em todo o mundo. Imagem: Jorge Luis Baños / IPS

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