Bukele demoniza a população LGBTQIA+ para justificar demissões em El Salvador 

Bukele demoniza a população LGBTQIA+ para justificar demissões em El Salvador 

Por Edgardo Ayala 

SAN SALVADOR – Historicamente marginalizada, a população LGBTQIA+ em El Salvador enfrenta agora um risco maior de ter seus direitos ainda mais violados a partir de declarações e ações do presidente do país, Nayib Bukele, interpretadas como parte de um discurso de ódio contra essa comunidade. 

Um discurso de ódio que, no fundo, também buscaria justificar demissões de funcionários estatais ao vinculá-los a uma agenda “incompatível com a visão do governo”, a qual, embora não especificada, foi indiretamente ligada ao movimento LGBTQIA+, disseram ativistas desses coletivos. 

“Embora o ódio sempre tenha sido tangível no país, hoje em dia, com os discursos de ódio fomentados pelo governo, a situação se torna mais aguda”, afirmou à IPS o jovem gay Rigoberto Pérez, de Zaragoza, no departamento de La Libertad, no sul de El Salvador. 

Pérez referiu-se às afirmações do presidente salvadorenho nas quais pareceu atacar aquela população, embora tenha tido o cuidado de não dizer isso explicitamente. 

Em 28 de junho, Bukele informou em sua conta na rede X (antigo Twitter) a demissão de 300 trabalhadores do Ministério da Cultura que promoveram, afirmou, ações incompatíveis com a visão do governo, e vinculou, pelo contexto em que disse, a uma peça de teatro drag chamada “Imoral”. 

Os 300 funcionários representam 27% do quadro do ministério, que se somam a outros 200 demitidos em março, disseram porta-vozes do movimento sindical. Eles receberão uma compensação econômica baseada nos anos trabalhados, mas que não ultrapassará 20 mil dólares. 

A peça “Imoral” foi apresentada em 15 de junho no Teatro Nacional, em San Salvador, vinculado ao Ministério da Cultura. Estava prevista uma segunda apresentação no dia seguinte, mas foi cancelada pelas autoridades do ministério, alegando que apresentava conteúdo “inapropriado para as famílias salvadorenhas”. 

A peça teatral era uma produção do coletivo queer Projeto Inari, e contava a violência e a rejeição familiar e institucional sofrida por pessoas da comunidade gay. Em espetáculos desse tipo, os artistas drag masculinos costumam se vestir e se maquiar como mulheres. Mas a obra causou reações ásperas nas redes sociais de grupos conservadores e de seguidores de Bukele, que exigiram sua cancelamento. 

“É importante nos expressarmos agora na Marcha do Orgulho, porque embora o presidente não mencione explicitamente, é um discurso de ódio que as pessoas captam e isso nos afeta negativamente como população LGBTQIA+”, afirmou Pérez, de 25 anos, protegendo-se da chuva com um guarda-chuva com as cores do arco-íris e do movimento. 

O ativista participou na Marcha do Orgulho, realizada em San Salvador no sábado, 29 de junho, aproveitando a vantagem do fim de semana para atrair mais pessoas. O Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ é celebrado em 28 de junho. 

Em sua mensagem, Bukele disse ainda: “As pessoas escolheram um caminho e é esse caminho que vamos tomar. Medicina amarga”. 

Cindy Moreno, do coletivo Alejandría, em uma improvisada conferência de imprensa no início da Marcha do Orgulho, em San Salvador, na qual, entre outras coisas, denunciou que, ao censurar uma peça de teatro com conteúdo LGBTQIA+, o presidente Nayib Bukele busca disfarçar de moralismo conservador a implementação de drásticas medidas econômicas, como demissões de funcionários estatais. Imagem: Edgardo Ayala / IPS 

Demissões com aroma moralista 

A alusão à “medicina amarga” veio do discurso dado pelo presidente, de corte populista e autoritário, durante a inauguração de seu segundo mandato à frente do Executivo, de cinco anos, que começou em 1º de junho, em meio a uma forte controvérsia porque se candidatou a esse segundo mandato de forma contínua, apesar de alguns artigos constitucionais o proibirem. 

Bukele ganhou de forma esmagadora nas eleições de fevereiro, com 85% dos votos válidos. Seu primeiro mandato durou de junho de 2019 a maio de 2024.

Em seu discurso de 1º de junho, Bukele, de 42 anos, destacou o principal feito de seu governo: a desarticulação das temidas gangues ou maras, que semearam terror e morte desde o início dos anos 90 em El Salvador, país centro-americano de 6,7 milhões de habitantes. 

A estratégia anti-gangues lhe gerou um inegável e massivo apoio popular, mas também fortes críticas pelos inúmeros relatos de violações dos direitos humanos. E agora, em seu segundo mandato, o presidente espera melhorar a economia do país e das famílias, e para isso advertiu que vai aplicar uma “medicina amarga”, que não especificou, mas que, à luz do ocorrido no Ministério da Cultura, poderia tratar-se de demissões em massa, entre outras medidas econômicas que afetarão a população. 

“Acho que agora vêm os golpes econômicos, e ele quer disfarçar a realidade (lançando mão do tema LGBTQIA+). Nós jamais tivemos, como movimento, aliados no ministério da Cultura a ponto de demitir tanta gente”, afirmou à IPS William Hernández, diretor da Associação Entre Amigos, um dos coletivos gays mais antigos do país. E acrescentou: “Se queria se vingar de alguém, em todo caso, deveria ter feito isso com o responsável por autorizar as obras no teatro, mas não com 300 pessoas”.  Obviamente, entre os 300 demitidos, provavelmente há pessoas da comunidade LGBTQIA+, mas isso não é motivo para demissão, portanto, se houvesse demissões desse tipo, implicaria uma atitude de perseguição direta, comentou. 

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Hernández sustentou que o governo enfrenta fortes pressões financeiras, e parece que as demissões de funcionários estatais são, de fato, uma medida que parece que será impulsionada. O presidente e seu governo “precisam de dinheiro, mas não têm de onde tirar”, sublinhou Hernández, e para justificar as demissões precisava que as pessoas aprovassem, “porque essa é sua prioridade, a imagem midiática, manter sua popularidade”. E assim foi, como ele preferiu fazer, conectando isso com a peça drag. 

No início da Marcha do Orgulho, em San Salvador, os coletivos LGBTQIA+ divulgaram um comunicado conjunto em que apontaram que as demissões no ministério da Cultura buscam “disfarçar de conservadorismo drásticas medidas econômicas” que o Executivo vai implementar.

O governo de Bukele enfrenta um grave problema para cumprir integralmente com seus compromissos, com um déficit financeiro que supera 1,7 bilhão de dólares, equivalente a 5% do produto interno bruto (PIB). A crise ocorre em um contexto em que o governo tem poucas opções de recorrer aos mercados internacionais, disse o analista Mauricio Choussy, em um programa local de entrevistas. 

Entre os obstáculos estão seu alto nível de endividamento externo e o consequente alto risco de inadimplência do país, além da falta de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse cenário enfraquece seu acesso ao crédito nos mercados financeiros e até mesmo no Banco Mundial e no Banco Interamericano de Desenvolvimento. 

O governo não conseguiu fechar um acordo com o FMI, que lhe forneceria um empréstimo de 1,3 bilhão de dólares, entregue em três parcelas, a primeira de 600 milhões, este ano, e com a qual aliviaria parcialmente esse enorme déficit fiscal. Mas o FMI exige, entre outras condições, que o país revogue a lei que deu curso legal ao bitcoin, aprovada pela Assembleia Legislativa em setembro de 2021, e que o organismo multilateral insiste desde 2022 que causa graves riscos financeiros. 

Lançar essa criptomoeda como moeda legal foi talvez o maior erro de Bukele, pois não alcançou os objetivos propostos, entre eles, o de se tornar o mecanismo preferido pelos salvadorenhos no exterior para enviar suas remessas, algo que não aconteceu. Mas Bukele não quer ceder e se recusa a abandonar sua aposta no bitcoin, de muito pouco uso entre a população.

O FMI também exige que o país faça um ajuste fiscal de 3%, reduzindo gastos e aumentando a arrecadação. Este último é o único que foi cumprido. 

Uma jovem participa na Marcha do Orgulho em San Salvador, em 29 de junho. Uma pesquisa aponta que a discriminação na educação e no emprego por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero, na Guatemala, Honduras e El Salvador, agravam a marginalização econômica e, com o tempo, deixam muitas pessoas desse segmento sem meios de vida estáveis. Imagem: Edgardo Ayala / IPS 

Em retrocesso 

Ao tentar cobrir as demissões sob um manto de moralidade quase religiosa, vinculando-as a uma peça de teatro drag e, com isso, a pessoas da comunidade LGBTQIA+, Bukele as coloca em uma situação de maior vulnerabilidade e precariedade, em uma sociedade extremamente homofóbica e de dupla moral, disseram os entrevistados. 

“Muitas das populações LGBTQIA+ sofrem discriminação, muitas pessoas têm capacidade e aptidões, mas por sua identidade de gênero são afastadas, por exemplo, de oportunidades de trabalho”, explicou à IPS a responsável pelas comunicações do coletivo Alejandría, Cindy Moreno, também presente na Marcha do Orgulho. 

Moreno apontou que esse segmento populacional sofreu retrocessos nos últimos anos, por exemplo, na área da saúde. Antes, comentou, havia campos para registrar pessoas trans, gays, lésbicas, bissexuais, etc., na hora de se registrar para um teste de HIV. E agora, embora alguém diga que é gay ou trans, é colocado na categoria de homem ou mulher, sem uma segmentação apropriada. De modo que já não se pode monitorar adequadamente o desenvolvimento do HIV nesse grupo populacional. “É um esforço para invisibilizar a comunidade LGBTQIA+”, sublinhou Moreno. 

Uma investigação realizada na Guatemala, Honduras e El Salvador pela organização internacional Human Rights Watch mostrou que a discriminação na educação e no emprego por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero agrava a marginalização econômica e, com o tempo, deixa muitas pessoas LGBTQIA+ sem meios de vida estáveis.

Outro relatório sobre o acesso à seguridade social da comunidade LGBTQIA+ em San Salvador revelou que metade sofre de exclusão laboral, sendo as mulheres trans as mais afetadas: duas em cada três estão excluídas do mercado de trabalho. O relatório, elaborado pelo Observatório Econômico e Laboral das Mulheres, acrescenta que 60% dessa comunidade não está coberta pelo Instituto Salvadoreño do Seguro Social, que oferece assistência médica estatal. Em comparação, a cifra para o resto da população é de 40%, uma diferença de quase 20 pontos percentuais, destacou o relatório.

*Imagem em destaque: Bandeira da Marcha do Orgulho, em 29 de junho, em San Salvador, na qual diversos coletivos LGBTQIA+ denunciaram as afirmações do presidente Nayib Bukele que justificaram demissões de 300 trabalhadores públicos da área cultural, ao vinculá-los a uma peça teatral com conteúdo sobre a diversidade sexual. Imagem: Edgardo Ayala/IPS

**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução e Revisão: Marcos Diniz

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