Nova Frente Popular: a esquerda contra o neofascismo
Eleitores dizem experimentar o «novo» ao votar no partido de Marine Le Pen
Em 1936, quando Hitler já estava no poder há três anos como chanceler da Alemanha, a França viveu momentos de grande tensão e enfrentamentos entre a extrema-direita e a esquerda. Para afastar o que considerava o « perigo fascista », a « gauche » se uniu na Frente Popular (Front Populaire) que agregava comunistas e socialistas e governou o país por dois anos. O programa tinha como slogan « Pain, paix, liberté » e enfatizava a defesa de República e o antifascismo.
Dia 9 de junho, a França ficou em estado de choque quando Emmanuel Macron decidiu dissolver a Assemblée Nationale (Câmara dos deputados) e convocar novas eleições, ao constatar que nas eleições europeias o Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen arrebatara um eleitorado duas vezes superior a seu partido, que só tinha uma maioria relativa na Câmara desde sua reeleição em 2022, gerando graves impasses.
A esquerda (comunistas, socialistas, La France Insoumise (França Insubmissa) de Jean-Luc Mélenchon e os ecologistas) resolveu deixar de lado as divergências e se unir no que foi batizado de Nouveau Front Populaire, uma referência ao grande momento de união da esquerda de 1936 contra o fascismo.
Imediatamente, a guerra foi declarada. A direita tradicional (Les Républicains), o centro formado pelo partido de Macron (Renaissance) e o Front Nacional (aliado à extrema-extrema-direita de Reconquête, partido de Eric Zemmour) elegeram o Nouveau Front Populaire como alvo de todas as críticas e acusações, muitas vezes falsas. Até Macron e seu primeiro-ministro, Gabriel Attal, entraram no jogo, esquecendo que o grande perigo é a eleição de uma maioria de populistas e neofascistas que dará ao Rassemblement National a chave de Matignon, o palácio de onde governa o primeiro-ministro francês.
Como não lembrar da manchete de 1936 de um jornal de extrema-direita que dizia « Plutôt Hitler que le Front Populaire » (Antes Hitler que a Frente Popular)? Para a extrema-direita, a direita republicana, o centro e alguns remanescentes do partido socialista o ódio que têm da esquerda melanchonista (La France Insoumise) supera a preocupação de evitar a maioria neofascista na Câmara dos Deputados, com tudo o que isso significa: privatização do forte audiovisual público, mudanças na política externa, repressão a migrantes e diminuição de programas sociais que incluem famílias estrangeiras pobres, ataques à liberdade de expressão etc., etc.
Esquerda acusada de antissemitismo
Por ter relativizado o crescimento do antissemitismo e ter condenado o ataque do Hamas de 7 de outubro sem, contudo, chamá-lo de « grupo terrorista », o partido de Jean-Luc Mélenchon, La France Insoumise, sofreu todo tipo de crítica, tornando-se o alvo de quase todas as forças políticas, do centro à extrema-direita. É preciso frisar que a mídia ajudou a construir o mito de um Jean-Luc Mélenchon « antissemita », o que ele nunca foi. O estigma foi criado por suas posições críticas à carnificina em Gaza e sua defesa de cessar-fogo imediato, como a maioria dos deputados da France Insoumise.
Entramos numa era neofascista na qual o Ocidente dá apoio incondicional ao governo de extrema-direita de Israel formado de supremacistas judeus e, na França, grande parte da mídia e dos políticos prepara um futuro governo Marine Le Pen ao diabolizar La France Insoumise, prenunciando uma futura coabitação de Macron com o Rassemblement National. Marine Le Pen teve a esperteza de transformar, pelo menos de fachada, o antissemitismo de seu pai em um filossemitismo, na realidade é o outro lado de sua islamofobia.
Perguntei recentemente em entrevista com o ex-editor-chefe do « Le Monde Diplomatique », Alain Grech: « O que está por trás da ideia de « guerra de civilização » como os neofascistas apresentam o atual conflito do Oriente Médio acusando o antissionismo de ser um antissemitismo dissimulado ».
Gresh foi claro : « O antissionismo é uma história judaica. Quem eram os antissionistas? Havia apenas judeus, o sionismo é uma história de judeus. A maior parte dos judeus era antissionista, eles não queriam um Estado. É uma ideologia, pode-se ser contra ou a favor. Pode-se discutir o significado do sionismo. O antissemitismo é um racismo, é ilegal. É um crime. »
Divisão da comunidade judaica
Na eleição legislativa de 30 de junho e 7 de julho – influenciada pela intervenção de políticos e da mídia que rotulam a France Insoumise de antissemita porque a campanha para a eleição do Parlamento europeu teve intervenções de candidatos pedindo o cessar-fogo imediato em Gaza e denunciando a « carnificina » e até mesmo o « genocídio » de palestinos – muitos judeus declararam voto no Rassemblement National, que tem um passado turvo de declarações antissemitas de seu fundador, Jean-Marie Le Pen. Na fundação do Front National (atual Rassemblement National) havia fascistas antissemitas, inclusive um ex-Waffen SS.
O mais ilustre dos judeus que se manifestaram, Serge Klarsfeld, respeitado advogado caçador de nazistas, declarou que no segundo turno, entre candidatos do partido de Marine Le Pen e do Front Populaire ele votaria pelo candidato lepenista porque o partido « defende Israel » e « é amigo dos judeus ».
Uma judia francesa entrevistada pelo jornal « Libération » declarou seu voto pelo RN dizendo que « eles, como nós, não gostam dos árabes ». Mais franca, impossível. Segundo o psicanalista Gérard Miller, em artigo publicado no « Le Monde » há alguns meses, os judeus franceses que votavam majoritariamente na esquerda hoje votam na extrema-direita de Marine Le Pen.
Alguns judeus de esquerda escreveram artigos e deram entrevistas dizendo-se chocados com o voto de Klarsfeld, considerado equivocado.
A verdade que sairá das urnas dia 7 de julho, segundo turno das eleições legislativas, pode levar o país a uma coabitação histórica e perigosa, com a extrema-direita majoritária na Câmara dos Deputados.
« Nesse caso, a Constituição dará todas as chaves do poder governamental ao Rassemblement National. Na França, os poderes do governo são grandes demais para serem confiados a quem poderia não respeitas os princípios da democracia liberal (o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura) além do Estado de direito », disse em entrevista ao « Le Monde » o professor de Direito Público, Denis Baranger.
Na imagem, Manuel Bompard, do La France Insoumise (França Insubmissa), discursa em coletiva de imprensa da Nouveau Front Populaire (Nova Frente Popular) na Maison de la Chimie em Paris em 14 de junho / Amaury Cornu / Hans Lucas / AFP via Getty Images
Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar » (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.