Ataque de Israel a Gaza evidencia caducidade da ONU, diz diretor que renunciou

Ataque de Israel a Gaza evidencia caducidade da ONU, diz diretor que renunciou

Em carta que justifica seu pedido de demissão, Craig Mokhiber, diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, revela seu profundo desgosto pela falência das Nações Unidas na proteção de pessoas vulneráveis e na responsabilização dos autores de atrocidades em massa.

Mokhiber viveu e participou inúmeras missões da Palestina e não hesita em afirmar: “este é um caso de genocídio de livro-texto”.

Na sequência, estão algumas frases extraídas de sua carta de demissão e a íntegra.

– “Os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e de grande parte da Europa são completamente cúmplices deste ataque horrível.”

– Os meios de comunicação ocidentais violam o pacto sobre direitos civis “desumanizando continuamente os palestinos para facilitar o genocídio, difundindo propaganda a favor da guerra e em defesa do ódio nacional, racial ou religioso, o que constitui incitamento à discriminação, à hostilidade e à violência”.

– “O poder de fazer valer medidas de proteção, outorgado ao Conselho de Segurança, foi mais uma vez bloqueado pela intransigência dos EUA.”

– “É uma ironia histórica impressionante que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha sido adotada no mesmo ano em que a Nakba foi perpetrada contra o povo palestino.”

– “Vale a pena repetir, apesar das calúnias do lobby israelita, que as críticas às violações dos direitos humanos cometidas por Israel não são antissemitas, assim como as críticas às violações sauditas não são islamofóbicas, as críticas às violações de Mianmar não são anti-Budistas, ou críticas às violações indianas não são anti-Hinduístas.”

– “Devemos reafirmar e enfatizar o direito ao retorno e à indenização total de todos os palestinos e suas famílias que vivem atualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o mundo.”

– “Devemos defender a remoção e destruição dos enormes arsenais de armas nucleares, químicas e biológicas de Israel, para que o conflito não conduza à destruição total da região.”

Segue a carta do diretor:

A Volker Turk, Alto Comissário para os Direitos Humanos

Palais Wilson, Genebra, 28 de outubro de 2023

Senhor Alto Comissário,

Esta será minha última comunicação oficial ao senhor na posição de diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH).

Escrevo-lhe num momento de grande angústia para o mundo e, também, para muitos dos nossos colegas. Mais uma vez, testemunhamos um genocídio que se desenrola diante dos nossos olhos e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo. Como alguém que investiga os direitos humanos na Palestina desde a década de 1980, tendo vivido em Gaza como conselheiro de direitos humanos da ONU na década de 1990, e tendo realizado várias missões de direitos humanos no país antes e depois, esta situação tem profundo impacto pessoal para mim.

Também trabalhei nestes salões durante os genocídios contra os Tutsis, os Muçulmanos Bósnios, os Yazidis e os Rohingyas. Em cada caso, quando a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, tornou-se dolorosamente claro que havíamos falhado no nosso dever de responder aos imperativos de prevenção de atrocidades em massa, da proteção de pessoas vulneráveis e da obrigação de responsabilizar os autores desses atos. O mesmo tem acontecido com sucessivas ondas de assassinatos e perseguições contra os palestinos ao longo de toda a existência das Nações Unidas.

Senhor Alto Comissário, novamente estamos falhando.

Como advogado de direitos humanos com mais de três décadas de experiência neste domínio, estou bem ciente de que o conceito de genocídio tem sido frequentemente objeto de abusos políticos. Mas o atual massacre do povo palestiniano, enraizado em uma ideologia de ocupação colonial etno-nacionalista, em continuidade a  décadas de perseguição e expurgação sistemáticas, baseado inteiramente no sua condição de árabes, e conjugado com declarações de intenção explícitas por parte dos dirigentes do governo e militares israelitas, não deixa espaço para dúvidas ou debate. Em Gaza, lares de civis, escolas, igrejas, mesquitas e instituições de saúde são arbitrariamente atacados e milhares de civis são massacrados. Na Cisjordânia, incluindo Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e reatribuídas com base na raça, e violentos pogroms de colonos são acompanhados por unidades militares israelitas. Em toda a região, reina o apartheid.

Este é um caso de genocídio de livro-texto. O projeto de ocupação colonial europeu etno-nacionalista na Palestina entrou na sua fase final, rumo à destruição acelerada dos últimos vestígios da vida autóctone palestina na Palestina. E mais, os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e de grande parte da Europa são completamente cúmplices deste ataque horrível. Estes governos não só se recusam a exercer as suas obrigações decorrentes do tratado de “garantir o cumprimento” das Convenções de Genebra, como também estão de fato armando ativamente o ataque, fornecendo apoio econômico e de inteligência, e acobertando política e diplomaticamente as atrocidades cometidas por Israel.

Em consonância com isso, os meios de comunicação corporativos ocidentais, cada vez mais cativos e adjacentes ao Estado, violam abertamente o Artigo 20 do PIDCP [Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos], desumanizando continuamente os palestinos para facilitar o genocídio, difundindo propaganda a favor da guerra e em defesa do ódio nacional, racial ou religioso, o que constitui incitamento à discriminação, à hostilidade e à violência.

As empresas de comunicação social sediadas nos EUA suprimem as vozes dos defensores dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que amplificam a propaganda pró-Israel. Os trolls online [pessoas que sistematicamente desestabilizam as discussões e provocam os envolvidos] e as GONGOS [ONGs com aparência genuína, mas organizadas pelos governos] do lobby de Israel perseguem e difamam os defensores dos direitos humanos, as universidades e patrões ocidentais colaboram com eles para punir aqueles que ousam denunciar as atrocidades. Na sequência deste genocídio, estes atores também devem ser responsabilizados, como foi o caso da rádio des Milles Collines no Ruanda.

Em tais circunstâncias, a nossa organização é mais do que nunca chamada a agir de forma eficaz e baseada em princípios. Mas não temos dado conta do desafio. O poder de fazer valer medidas de proteção, outorgado ao Conselho de Segurança, foi mais uma vez bloqueado pela intransigência dos EUA, o Secretário Geral está sob ataque pelos mais leves protestos e os nossos mecanismos de defesa dos direitos humanos estão sob ataque calunioso e sustentado por parte de uma organizada rede de impunidade online.

Décadas de distração pelas promessas ilusórias, e em grande parte decepcionantes, de Oslo desviaram a Organização do seu dever essencial de defender o direito internacional, os direitos humanos internacionais e a própria Carta. O mantra da “solução de dois Estados” tornou-se uma piada aberta nos corredores das Nações Unidas, tanto pela sua absoluta impossibilidade de fato como pela sua total incapacidade de levar em conta os direitos humanos inalienáveis do povo palestino.  O chamado “Quarteto” [União Europeia, os Estados Unidos, a Rússia e a própria ONU] nada mais é do que uma forma de tentar esconder a inação e submissão a um status quo brutal. A deferência (redigida pelos Estados Unidos) aos “acordos entre as próprias partes” (em vez do direito internacional) sempre foi uma tapeação transparente, destinada a reforçar o poder de Israel sobre os direitos dos palestinos com seus bens ocupados e despojados.

Senhor Alto Comissário, vim para esta Organização na década de 1980, porque encontrei nela uma instituição baseada em princípios e normas que estava declaradamente do lado dos direitos humanos, incluindo os casos em que os poderosos EUA, Reino Unido e Europa não estavam do nosso lado. Enquanto o meu próprio governo, suas instituições subsidiárias e grande parte dos meios de comunicação dos EUA ainda apoiavam ou justificavam o apartheid sul-africano, a opressão israelense e os esquadrões da morte centro-americanos, a ONU se colocava em defesa dos povos oprimidos dessas terras. Tínhamos o direito internacional do nosso lado. Tínhamos os direitos humanos do nosso lado. Tínhamos os princípios do nosso lado. Nossa autoridade estava enraizada em nossa integridade. Mas não mais.

Nas últimas décadas, partes fundamentais da ONU renderam-se ao poder dos EUA e ao medo do lobby israelita, para abandonar estes princípios e renunciar ao próprio direito internacional. Perdemos muito neste abandono, notadamente a nossa própria credibilidade global. Mas é o povo palestiniano que tem sofrido as maiores perdas como resultado dos nossos fracassos. É uma ironia histórica impressionante que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) tenha sido adotada no mesmo ano em que a Nakba foi perpetrada contra o povo palestino.

No ano em que comemorarmos o 75º aniversário da DUDH, faríamos bem em abandonar o velho clichê de que a Declaração nasceu das atrocidades que a precederam e em admitir que ela nasceu juntamente com um dos genocídios mais atrozes do século XX, o da destruição da Palestina. Em certo sentido, os autores da Declaração prometeram direitos humanos a todos, exceto ao povo palestino. E lembremo-nos também que a própria ONU carrega o pecado original de ter ajudado a facilitar a expropriação do povo palestino, ratificando o projeto colonial dos colonos europeus que se apoderou da terra palestina e a entregou aos colonos. Temos muito a expiar.

Mas o caminho para a expiação é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípio tomada nos últimos dias em cidades de todo o mundo, onde massas de pessoas se levantam contra o genocídio, mesmo com o risco de espancamento e prisão. Os palestinos e os seus aliados, os defensores dos direitos humanos de todos os matizes, as organizações cristãs e muçulmanas e as vozes judaicas progressistas que dizem “não em nosso nome”, estão todos abrindo o caminho. Tudo o que temos que fazer é segui-los.

Ontem, a poucos quarteirões daqui, a estação Grand Central de Nova York foi completamente invadida por milhares de judeus defensores dos direitos humanos, solidários ao povo palestino, exigindo o fim da tirania israelita (muitos deles correndo o risco de serem presos). Ao fazê-lo, instantaneamente derrubaram o argumento da propaganda Hasbará israelita (e o velho tropo antissemita) de que Israel, de alguma forma, representa o povo judeu. Não representa. E, como tal, Israel é o único responsável pelos seus crimes. Sobre este ponto, vale a pena repetir, apesar das calúnias do lobby israelita, que as críticas às violações dos direitos humanos cometidas por Israel não são antissemitas, assim como as críticas às violações sauditas não são islamofóbicas, as críticas às violações de Mianmar não são anti- Budistas, ou críticas às violações indianas não são anti-Hinduístas. Quando procuram nos silenciar com calúnias, devemos levantar a voz e não baixá-la. Creio que concordará, Senhor Alto Comissário, que é disso que se trata a própria essência de falar a verdade ao poder.

Mas também encontro esperança naquelas partes das Nações Unidas que se recusaram a comprometer os princípios dos direitos humanos da Organização, apesar da enorme pressão para o fazer. Nossos relatores especiais independentes, comissões de inquérito e corpo de peritos em tratados, ao lado da maior parte do nosso pessoal, continuaram a defender os direitos humanos do povo palestino, enquanto outras partes das Nações Unidas (mesmo ao mais alto nível) têm vergonhosamente curvado suas cabeças ao poder. Como guardiões das normas e padrões de direitos humanos, o ACNUDH tem o dever particular de defender esses padrões. A nossa tarefa, creio eu, é fazer ouvir a nossa voz, desde o Secretário-Geral até ao mais recente recruta da ONU, e horizontalmente em todo o conjunto do sistema da ONU, insistindo que os direitos humanos do povo palestino não estão sujeitos a qualquer debate, negociação ou compromisso em qualquer lugar sob a bandeira azul.

Como, então, seria uma posição baseada nos padrões da ONU? Em que direção trabalharíamos se fôssemos fiéis às nossas advertências retóricas sobre os direitos humanos e igualdade para todos, responsabilização dos perpetradores, reparação das vítimas, proteção dos vulneráveis e autonomização dos titulares de direitos, todas elas amparadas pelo estado de direito? A resposta, creio, é simples: se tivermos a lucidez de ver para além das cortinas de fumaça propagandísticas que deformam a visão de justiça pela qual juramos, a coragem de abandonar o medo e a deferência em relação aos Estados poderosos, e o desejo de verdadeiramente abraçar a bandeira dos direitos humanos e da paz. É verdade que este é um projeto de longo prazo e uma subida íngreme. Mas temos de começar agora ou render-nos a um horror indescritível. Vejo dez pontos essenciais:

1 Ação legítima: em primeiro lugar, devemos, no seio das Nações Unidas, abandonar o paradigma falido (e em grande parte insincero) de Oslo, a sua ilusória solução de dois Estados, o seu Quarteto impotente e cúmplice, e a sua subjugação do direito internacional aos ditames de alegado oportunismo político. As nossas posições devem basear-se inequivocamente nos direitos humanos e no direito internacional.

2 Clareza de visão: devemos parar de fingir que se trata simplesmente de um conflito territorial ou religioso entre duas partes beligerantes e admitir a realidade da situação em que um Estado com um poder desproporcional coloniza, persegue e desapropria uma população autóctone com base na sua etnia.

3 Um Estado único baseado nos direitos humanos: devemos apoiar o estabelecimento de um Estado único, democrático e secular em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus, e, portanto, apoiar o desmantelamento do projeto colonial profundamente racista e o fim do apartheid em todo o país.

4 Luta contra o apartheid: devemos redirecionar todos os esforços e recursos das Nações Unidas para a luta contra o apartheid, como fizemos para a África do Sul nas décadas de 1970, 1980 e no início da década de 1990.

5 Retorno e indenização: devemos reafirmar e enfatizar o direito ao retorno e à indenização total de todos os palestinos e suas famílias que vivem atualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o mundo.

6 Verdade e justiça: devemos apelar a um processo de justiça transicional, aproveitando plenamente as décadas de investigações, pesquisas e relatórios acumulados pelas Nações Unidas, para documentar a verdade e garantir a responsabilização de todos os perpetradores, a reparação para todas as vítimas e soluções para injustiças documentadas.

7 Proteção: devemos insistir no envio de uma força de proteção da ONU com recursos suficientes e um mandato prolongado para proteger os civis desde o rio até ao mar.

8 Desarmamento: devemos defender a remoção e destruição dos enormes arsenais de armas nucleares, químicas e biológicas de Israel, para que o conflito não conduza à destruição total da região e, potencialmente, de mais além.

9 Mediação: devemos reconhecer que os Estados Unidos e outras potências ocidentais não são mediadores credíveis, mas principalmente partes no conflito que são cúmplices de Israel na violação dos direitos palestinos, e devemos engajá-los como tal.

10 Solidariedade: devemos abrir amplamente as nossas portas (e as do Secretário Geral) às legiões de defensores dos direitos humanos palestinos, israelitas, judeus, muçulmanos e cristãos que se levantam em solidariedade com o povo da Palestina e os seus direitos humanos, e colocar termo ao fluxo descontrolado de lobistas israelitas nos escritórios dos líderes da ONU, onde defendem a continuação da guerra, a perseguição, o apartheid e a impunidade, e aviltam os nossos defensores dos direitos humanos por sua defesa de princípios dos direitos palestinos.

Levaremos anos para conseguir isso e as potências ocidentais lutarão contra nós a cada passo do caminho, por isso devemos ser resolutos. No plano imediato, temos de trabalhar por um cessar-fogo e pelo fim do cerco a Gaza, opor-nos à limpeza étnica de Gaza, de Jerusalém e da Cisjordânia (e outros locais), documentar o ataque genocida a Gaza, contribuir para o fornecimento de ajuda humanitária massiva e reconstrução dos palestinos, cuidando dos nossos colegas traumatizados e das suas famílias, e lutando arduamente por uma abordagem calcada em princípios nos gabinetes políticos da ONU.

O fracasso da ONU na Palestina até agora não é razão para nos retirarmos. Pelo contrário, deveria nos dar a coragem para abandonar o paradigma falido do passado e comprometer-nos totalmente com um caminho mais baseado em princípios. Como ACDH, juntemo-nos com ousadia e orgulho ao crescente movimento anti-apartheid em todo o mundo, acrescentando nosso logotipo à bandeira da igualdade e dos direitos humanos para o povo palestino. O mundo está nos observando. Todos teremos de prestar contas da nossa posição neste momento crucial da história. Fiquemos do lado da justiça.

Obrigado, Alto Comissário Volker, por ouvir este último apelo do meu gabinete. Dentro de alguns dias deixarei o escritório pela última vez, depois de mais de três décadas de serviço. Mas não hesite em entrar em contato comigo se eu puder ser útil no futuro.

Sinceramente,

Craig Mokhiber

Sobre o autor

Craig Mokhiber ( na foto) era diretor do escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH) em Nova York. Advogado e especialista em direito internacional humanitário, política e metodologia, serve as Nações Unidas desde 1992. Como chefe da equipe de Direitos Humanos e Desenvolvimento na década de 1990, liderou o trabalho original do ACNUDH sobre abordagens baseadas nos direitos humanos para desenvolvimento e definições de pobreza baseadas nos direitos humanos. Ele também serviu como conselheiro sênior de direitos humanos da ONU na Palestina e no Afeganistão, liderou a equipe de especialistas em direitos humanos ligados à missão de alto nível em Darfur, liderou a unidade de “estado de direito e democracia” e foi chefe da seção de questões econômicas e sociais e chefe do departamento de desenvolvimento e questões econômicas e sociais na sede do Alto Comissariado (Fonte: website das Nações Unidas)

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