A privatização dos presídios
A exemplo do longo processo de ingresso do setor privado em serviços públicos como educação, saúde e previdência, a intenção estratégica do financismo é fazer com que o sistema prisional também seja transformado em espaço de acumulação de capital
A página do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) da Presidência da República apresentou um balanço bastante positivo de um leilão muito especial ocorrido no Rio Grande do Sul no dia 6 de outubro deste ano. Tratava-se de um evento realizado na sede da B3 (antiga Bolsa de Valores de São Paulo) onde estavam sendo apresentados os lances do capital privado na disputa pelo direito de compor oficialmente o modelo de Parceria Público Privada (PPP) para construir e operar um presídio no município de Erechim, no Rio Grande do Sul.
Toda a pompa envolvida na operação de marketing desse modelo diferenciado de privatização lembrava as cenas das vendas de empresas estatais na década de 1990, como a Vale do Rio Doce e as siderúrgicas pertencentes ao Estado brasileiro. No centro da cena meticulosamente montada no coração do financismo brasileiro, não faltou nem mesmo a simbólica batida de martelo para anunciar o consórcio vencedor. A melhor oferta foi apresentada pela empresa Soluções Serviços Terceirizados, que apresentou proposta de R$ 233,00 para o valor da vaga dia e um deságio de 0,004292% em relação ao valor estipulado em edital. Uma tristeza verificar como decisões a respeito de uma política pública tão fundamental como essa sejam reduzidas a cifras monetárias e percentagens.
A nova modalidade de transferência de responsabilidade pública ao capital privado estava embasada em um Decreto especialmente preparado pelo Ministro da Fazenda, por meio do qual os itens “segurança pública e sistema prisional” passaram a fazer parte de um conjunto bem mais amplo de dispositivos de incentivo a “projetos de investimento considerados como prioritários na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa”. Assim, a privatização de presídios também passa a contar com estímulos financeiros e com apoio de linhas de financiamento do próprio BNDES. São benefícios com recursos públicos destinados aos conglomerados interessados no novo nicho de negócios.
Capital privado na gestão do sistema prisional.
O prazo de concessão da unidade prisional é de 30 anos e o valor total do contrato é de R$ 2,5 bilhões. Apesar de não ter sido o primeiro presídio a ser operado no regime de parceria entre o Estado e o capital privado, a experiência gaúcha pode converter-se em ponto de virada no sistema. Até o presente momento, já havia o presídio de Ribeirão das Neves, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, que teve sua concepção elaborada no modelo da PPP. Porém, a partir do momento em que se consolida uma robusta estrutura política, jurídica, institucional e financeira de apoio à participação do capital privado no sistema prisional, aí tudo pode mudar de figura.
A exemplo do longo processo de ingresso do setor privado em serviços públicos como educação, saúde e previdência, a intenção estratégica do financismo é fazer com que o sistema prisional também seja transformado em espaço de acumulação de capital. As alternativas das formas de como proceder à privatização podem variar. Há casos de PPPs, existem situações em que se recorre ao modelo de concessão, em outros casos vale a opção pela terceirização. Mas a regra geral parece ser a instituição de um conjunto de medidas de apoio e de incentivo ao capital privado, com o objetivo de assegurar ganhos e manter a atratividade para os novos nichos. A tendência à concentração das atividades em torno de poucos e grandes conglomerados tem sido uma constante na entrada dos grandes fundos financeiros estrangeiros na área educacional, bem como na verticalização absurda que se manifesta nos diversos ramos do setor da saúde.
Em geral, o movimento envolve também o estrangulamento da capacidade de o Estado brasileiro oferecer condições mínimas de manutenção ou de ampliação da rede pública deste tipo de serviços públicos. Não é por acaso que a curva exponencial de crescimento da participação privada na oferta de saúde, educação e previdência, por exemplo, coincide com o aprofundamento das políticas de austeridade fiscal a partir do início da década de 1990. A demanda por esse tipo de serviço por parte da população se mantém crescente e o capital passa a ser apresentado como a panaceia milagrosa para a solução do impasse.
A mercantilização da segurança pública e das prisões.
A lógica de funcionamento dos sistemas se transforma de maneira radical. A busca de maximização dos lucros e do retorno financeiro aos acionistas se converte na bússola orientadora das ações dos grandes grupos operando em nome ou em lugar do setor público. A qualidade dos serviços oferecidos ou a melhoria do bem-estar da população deixa de ser o mote para as atividades privatizadas. Na complexa balança entre receitas e despesas para setores com elevada sensibilidade social, prevalece também a intenção de elevar as diversas forma de faturamento, ao mesmo tempo em que se busca medidas de “otimização e eficiência” para reduzir as despesas.
No caso da privatização do sistema prisional, a lógica do financismo introduz outro elemento de perversidade social. Se a construção e operação de presídios se converter efetivamente em mais um espaço de lucratividade assegurada para o capital privado, a garantia do lucro repousa na ampliação da escala modelo. Os presídios passariam a compor mais um setor da economia privada, onde uma variável relevante passa, obviamente, a ser o número de detentos. Assim, a tendência será sem dúvida alguma de se ampliar o poderoso lobby contra as medidas de desencarceramento ou de legalização das drogas, por exemplo.
Os dados apresentados periodicamente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública nos revelam os riscos de uma perpetuação do quadro das profundas desigualdades de nossa sociedade no quesito do sistema prisional. A maioria dos detentos são pobres, negros e jovens. O principal fator de ingresso no sistema refere-se a condenações (nem sempre de forma definitiva) envolvendo pequenas quantidades de drogas. Ora, se o universo total de detentos no Brasil atualmente se encontra na ordem de 644 mil indivíduos, é de se imaginar que o apetite da privatização não vá se contentar com alguma redução desse número.
Desta forma, estamos diante de uma realidade em que o programa do governo eleito e as necessidades da população se opõem de maneira frontal aos interesses do financismo e de setores desejos por ampliar seu espectro de atividades econômicas. Faz-se urgente a retirada de todo e qualquer apoio do governo federal a mais esta aventura irresponsável de parcela de nossas classes dominantes. Os domínios da segurança pública e do sistema prisional devem permanecer em sua integralidade em mãos do Estado. O Presidente Lula precisa ser advertido da necessidade de retirar esses dois itens do referido decreto sobre PPPs. Não cabe ao setor público incentivar com benesses econômicas e financeiras o ingresso do capital privado em áreas tão sensíveis como estas.
Doutor em Economia e membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal.