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Pós-fascismo: as lições do Brasil e da França

Pós-fascismo: as lições do Brasil e da França

Os limites ao exercício do poder são constantemente ultrapassados sem que haja quase nenhuma resistência por parte da sociedade ou da Justiça

A frágil democracia brasileira vem funcionando ultimamente como um hímen complacente, expressão que meu amigo Otto Lara Resende usava para significar excesso de condescendência em certas situações.

Vemos tudo ser aceito e digerido por uma sociedade resignada, os limites ao exercício do poder são constantemente ultrapassados – quando quem governa é a direita – sem que haja quase nenhuma resistência por parte da sociedade ou da Justiça, cuja função numa democracia é garantir o bom funcionamento das instituições democráticas.

Penso na complacência da sociedade diante do sigilo de 100 anos, do orçamento secreto, dos constantes cortes de verbas da saúde e da educação, do escândalo da tentativa de compra de vacinas superfaturadas, do viagra e das próteses penianas para os velhos militares… além de toda a série de horrores que a imprensa e as instituições foram normalizando nos últimos quatro anos.

O Brasil avança para um pós-fascismo, misto de fundamentalismo neopentecostal e do projeto de poder totalitário e antidemocrático do bolsonarismo.

Se os brasileiros não disserem claramente, dia 30 de outubro, que desejam outro modelo de país, o Brasil pode tornar-se uma teocracia fundamentalista que vem se construindo no ódio ao pensamento racional, à cultura, ao debate de ideias, às artes em geral. Com a caução dos militares que já dirigem o país desde 2018.

O Brasil não vive o fascismo mussoliniano que a Itália conheceu de 1922 a 1943. Mussolini, o Duce, instalou um governo ditatorial em 1922 até ser demitido do cargo de primeiro-ministro pelo rei Vítor Emanuel II, em 25 de julho de 1943. O ditador foi preso, para ser libertado pelos alemães e « reinar » sobre uma « República Social Italiana » fantoche, em Salo, norte da Itália, ocupado pela Alemanha até 1945. Benito Mussolini foi morto por guerrilheiros resistentes.

O fascismo mussoliniano não é um modelo copiado ao pé da letra no Brasil, mas vai sendo reinventado e adaptado ao século XXI ao Sul do Equador. Na conferência de Umberto Eco, “Reconnaître le fascisme” (Grasset, 2017) o grande semiólogo, filósofo e linguista escreve: “Pode-se jogar o fascismo de mil formas, sem que jamais o nome do jogo seja outro”. Em todas as formas de fascismo, diz Eco, a cultura é suspeita porque é identificada ao pensamento crítico.

“No fascismo italiano o poder legislativo tornou-se uma ficção, o executivo controlava diretamente o poder judiciário e a mídia, promulgando diretamente novas leis (entre as quais as que faziam a defesa da raça com o apoio formal do Holocausto) “, escreve Umberto Eco.

O domínio do Executivo sobre os outros poderes vem sendo tentado no Brasil desde 2018 e poderia se exacerbar num novo mandato.

Bandeiras 

Quando, em 2008, cheguei à casa do general Paul Aussaresses, na Alsácia, para entrevistá-lo para a Folha de S.Paulo – entrevista que se desdobrou em diversos encontros que viraram um livro (A tortura como arma de guerra – da Argélia ao Brasil) – vi em destaque na sua sala uma enorme bandeira francesa pregada na parede.

Paul Aussaresses era coronel durante a guerra da Argélia e foi o temido chefe dos esquadrões da morte. Os militares franceses matavam e faziam desaparecer os corpos de resistentes e independentistas argelinos. Foram milhares de desaparecidos naquela guerra, na qual os franceses aperfeiçoaram diversas formas de enfrentar a Frente de Libertação Nacional, entre as quais o controle das populações civis e os interrogatórios sob tortura. A “escola francesa” foi, como mostro no livro, um modelo para a ditadura brasileira.

Aussaresses nunca deixou de ser anticomunista, racista e adorador de sua bandeira, ranço de todo fascista. Os neofascistas do partido Front National – que completou este mês cinquenta anos e foi fundado por Jean-Marie Le Pen, ex-torturador da Guerra da Argélia –– desfilam com bandeiras e as exibem em todos os comícios. O símbolo do partido na época da fundação era uma chama (inspirada na chama do partido fascista italiano) com as cores da bandeira francesa: azul, branco e vermelho. Aos poucos, o Rassemblement National, novo nome do partido de Le Pen, foi abandonando imagens associadas ao fascismo para tornar Marine Le Pen mais palatável ao eleitorado.

Em aliança com a Liga e com o Forza Italia, partidos de Matteo Salvini e de Berlusconi, o partido pós-fascista Fratelli d’Italia, obteve maioria nas eleições italianas de 25 de setembro levando Georgia Meloni ao poder. Esta denominação de pós-fascista é a que está sendo mais usada pelos jornais franceses e italianos para designar os novos seguidores de Mussolini, que Meloni elogiou alguns anos atrás. Os vídeos estão aí para mostrar sua admiração pelo Duce.

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Como em outros países europeus, a extrema-direita francesa cresce a cada nova eleição.

Este ano, o partido de Marine Le Pen passou de 8 deputados a 89 na Assemblée Nationale, a Câmara dos Deputados francesa. E pela terceira vez seu partido chegou ao segundo turno este ano, como em 2002 e em 2017.  Em 2002, Jean-Marie Le Pen havia tido 16,86% ultrapassando por muito pouco o candidato do Partido Socialista, o primeiro-ministro Lionel Jospin, que obteve 16,18%. Foi a primeira vez que os franceses viram o neofascismo às portas do Eliseu.

Em 2017, a extrema-direita voltou a aparecer no segundo turno com a classificação de Marine Le Pen. O resultado final foi de 33,9% para ela e 66,1% para Emmanuel Macron. Naquele ano, o partido de Le Pen elegeu 8 deputados.

Mas em 2022, o Rassemblement National (RN) colocou novamente Marine Le Pen no segundo turno da eleição presidencial. Macron recuou um pouco, sendo eleito com 58,55% e Marine Le Pen alcançou 41,45% dos votos (contra 33,9% na eleição anterior). Nas eleições legislativas, dois meses depois da presidencial, o RN elegeu 89 deputados!

O que significa esse crescimento espetacular?]

Que a França não está imune ao pós-fascismo, que já está no poder em alguns países da Europa e no Brasil.   

“La possibilité du fascisme” (La Découverte, 2018), livro de Ugo Palheta, é uma leitura fundamental para refletir e preparar a batalha da nova eleição presidencial francesa de 2027, que pode levar a primeira mulher e a primeira representante da extrema-direita ao Palácio do Eliseu. Um verdadeiro pesadelo para um país que se pensa imune ao fascismo pela sua história.

Nas duas últimas eleições presidenciais francesas, em 2017 e em 2022, muitos eleitores votaram no segundo turno não necessariamente para eleger Emmanuel Macron mas para repelir a ameaça da extrema-direita representada por Marine Le Pen.  

Vale lembrar que, no Brasil, o PL de Bolsonaro passou este ano de 76 para 99 cadeiras, fazendo a maior bancada no Congresso. Um crescimento considerável e assustador.

Em 2018, jornal suíço previa o desastre

Grande parte da imprensa brasileira ainda parece não avaliar o risco que um novo governo do capitão representa para a democracia.

Em longa reportagem intitulada “A tentação autoritária”, no jornal online “Republik”, da Suíça, o jornalista Philipp Liechterbeck, escreveu em 2018:

“Se Bolsonaro ganhar a eleição, não será apenas o Brasil a viver um trauma. Sua vitória vai provocar um terremoto político internacional”.

Na excelente reportagem, Liechterbeck explicava:

“Se Bolsonaro tornar-se presidente, o gigante sul-americano será dirigido por um aventureiro de extrema-direita que quer sair das Nações Unidas e considera Adolf Hitler um grande estrategista. Ele atiça o ódio aos negros, aos homossexuais, despreza as mulheres e os indígenas e incita à violência contra todos os que têm posições políticas diferentes das suas”.

Em 2018, o jornal suíço não era o único a se alarmar com a possibilidade de uma vitória do candidato neofascista ou pós-fascista, como preferem os italianos. Os jornais franceses também publicaram matérias sobre a extrema polarização que o Brasil vivia, que corria sérios riscos de ser governado por um admirador de Hitler e de Donald Trump.

Naquele ano de 2018, a imprensa brasileira parecia viver num mundo paralelo.

Combatia até mesmo a designação de candidato de « extrema-direita » para o capitão, que considerava de « direita ». Em qualquer democracia um político saudoso da ditadura e defensor da tortura seria considerado de extrema-direita.

Este ano, a declaração de apoio a Lula da terceira colocada, Simone Tabet, a do PDT de Ciro Gomes, além do apoio dos economistas neoliberais materializou a frente republicana que repudia o autoritarismo antidemocrático e o sistema militar instalado no poder no Brasil desde 2018.

Vivemos um momento histórico no qual somos chamados a optar entre um país armado e dividido pela pregação de ódio e um Brasil reconciliado com seu ideal de justiça social, de inclusão e fraternidade.

Com um governo que respeite a Constituição e a estrita separação dos poderes que ela prevê.

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