Assassinatos antecipados: Joaquim Alencar de Seixas (2/1/1922 – 17/4/1971) – “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.
Há 52 anos, a repressão da ditadura cometia mais um crime bárbaro, que continua impune.
Em represália à execução de Devanir José de Carvalho, principal dirigente da
organização, um comando conjunto do MRT e da ALN matou a tiros, no dia 15
de abril de 1971, o industrial Henning Albert Boilesen, presidente da Associgás
e da Companhia Ultragás, na esquina da Rua Capanema com a Alameda Casa
Branca, no bairro do Jardim América, em São Paulo. Boilesen era um dos financiadores e ativo colaborador do DOI-Codi/SP.
O “justiçamento”, noticiado pela imprensa, causou forte impacto na opinião pública.
No dia seguinte, a repressão acabaria de atingir o MRT na cabeça, capturando,
separadamente, dois dos seus últimos dirigentes, participantes da ação contra
Boilesen: Joaquim Alencar de Seixas e Dimas Antônio Casemiro.
Joaquim foi preso com o seu filho Ivan, de 16 anos, na Rua Vergueiro, na altura
do nº 9.000, no dia 16 de abril de 1971. Do local da prisão, foram levados para
a 37ª Delegacia de Polícia, na altura do nº 6.000 da mesma rua. Ainda no pátio
do estacionamento, começaram a ser espancados, enquanto alguns policiais
trocavam os carros usados no esquema da prisão. Apanharam com tal violência
que a corrente da algema que prendia o pulso do pai ao do filho se rompeu.
Foram levados então para a sala de interrogatórios e torturados um defronte
ao outro. No mesmo dia, a polícia invadiu a casa da família Seixas e prendeu a
mulher e duas filhas de Joaquim.
Os jornais de São Paulo publicaram no dia seguinte uma notícia surpreendente:
em nota oficial, os órgãos de segurança informavam que Joaquim Alencar de
Seixas tinha morrido em um tiroteio. Enquanto isso, ele continuava vivo, sendo
torturado na mesma delegacia em que se encontravam sua mulher, Fanny, e
seus filhos Ivan, Ieda e Iara.
Às 19h daquele mesmo dia, o assassinato antecipado de Joaquim virava
realidade.
Fanny, percebendo que o marido morrera, chegou nas pontas dos pés até uma
janela e conseguiu ver quando policiais estacionavam uma perua C-14 no pátio
da delegacia, forravam o porta-malas com jornais e jogavam nele o corpo de
Joaquim. Conseguiu também ouvir o seguinte diálogo:
— De quem é este presunto?
— Este é o Roque. (Nome de guerra usado por Joaquim, morto aos 49 anos.)
Vida militante
Nascido em Bragança, no Pará, Joaquim Alencar de Seixas começou a trabalhar como operário e a participar de atividades políticas desde a juventude. Na
função de mecânico de aviões, trabalhou na Varig, Aerovias e Panair, perdendo
muitas vezes o emprego por questões políticas. Em 1964, trabalhava na Petrobras
como encarregado do setor de manutenção quando houve o Golpe de Estado.
Ele e vários líderes sindicais simularam um acidente para poder fugir ao cerco
dos militares, que já tinham tomado a Refinaria Duque de Caxias, no Rio, com
tanques de guerra, carros de combate e muitos soldados armados. Acionado
o alarme contra acidentes, as ambulâncias foram liberadas levando os líderes
cobertos com lençóis manchados com tinta vermelha. Posteriormente, foram
todos demitidos sem direito algum. Joaquim e família foram para o Rio Grande
do Sul. Naquele Estado, participou da resistência contra a ditadura, escapou
várias vezes de ser preso e foi testemunha da prisão e morte de companheiros,
como no caso de Manoel Raimundo Soares.
Voltou para o Rio de Janeiro, foi motorista de táxi, e trabalhou pela última vez
na Coca-Cola de Niterói, como chefe do setor de mecânica e manutenção.
Foi então para São Paulo, ingressou no MRT e tornou-se um dos seus dirigentes.
Desmontando a farsa
O Dossiê cita a existência de uma foto do corpo de Joaquim, que consta do
processo, na qual estão visíveis os sinais de tortura e de um tiro, na altura do
coração, que indicaria a causa mortis.
Os seus assassinos estão indicados no Dossiê e no parecer da relatora Suzana
Keniger Lisbôa na Comissão Especial:
(…) o então major Carlos Alberto Brilhante Ulstra, o capitão Dalmo Lúcio Muniz
Cirillo, o delegado Davi Araújo dos Santos, o investigador de polícia Pedro Mira
Granzieri e vários outros (…).
E mais:
Assinam o laudo de necropsia os médicos-legistas Pérsio José B. Carneiro e
Paulo Augusto de Queiroz da Rocha, que confirmam a falsa versão oficial da
repressão de que Joaquim foi morto em tiroteio e omitem as torturas. Vários
presos políticos declararam em auditorias militares, à época, as torturas e o
assassinato de Joaquim na Oban.
A relatora apresenta provas da responsabilidade do Estado na morte de Joaquim:
— Documento localizado no arquivo do Dops/SP, com a qualificação da vítima,
em papel timbrado do Ministério do Exército, Quartel-General Codi/II Ex (OB) – DOI, confirmando a sua prisão;
— cópia de requisição de exame do IML, com a marca “T” em vermelho e a
profissão especificada de terrorista, informando que faleceu às 13h do dia
16/4/1971, na Avenida Cursino, após travar violento tiroteio com os órgãos de
segurança;
— laudo de exame necroscópico, que confirma a versão oficial, descreve diversas
equimoses, sem especificar de que forma poderiam ter sido produzidas, e tiros,
nenhum na região da cabeça (grifado no parecer);
— foto do corpo de Joaquim, encontrada nos arquivos do Dops/SP, focalizando apenas o rosto e parte do tronco, que evidencia, mesmo para um leigo, as
marcas de tortura.
Além disso, há um Parecer Técnico Pericial, solicitado pelo Grupo Tortura
Nunca Mais, do Rio de Janeiro, ao perito Nelson Massini, que deu base para
instruir processo disciplinar junto do Conselho Regional de Medicina de São
Paulo contra os médicos-legistas que assinaram o laudo de necropsia. No parecer, Massini divide as lesões descritas no laudo em dois grupos, as contusas
e as pérfuro-contusas, acrescentando, para melhor compreensão, o que são
hematomas e equimoses:
As lesões descritas no Laudo são tipicamente lesões contusas e não se relacionam com aquelas referentes à ação de projéteis de arma de fogo. Destaque-se, inclusive, que as mais severas se localizam na cabeça e não consta nenhum ferimento por projétil naquela região.
E mais adiante:
Fica evidente, pelas descrições do próprio Laudo, apesar das ressalvas apontadas,
que Joaquim Alencar de Seixas sofreu, além dos ferimentos mortais de projéteis
de armas de fogo, outras lesões provenientes de “meios” e/ou instrumentos
constituídas de forte dor física e sofrimento físico que se define como tortura
ou forma cruel de violência.
O parecer relaciona, então, as lesões pérfuro-contusas, em número de sete, e
registra que não foram descritas de forma a se perceber se são compatíveis com
os orifícios de entrada e saída, agregando:
Outro detalhe importante que deveria ser observado no presente caso: já que
chegou ao necrotério com história de “violento tiroteio”, presume-se que Joaquim Alencar de Seixas tenha reagido com muitos disparos de arma de fogo,
sendo assim haveria sem dúvida resíduos de pólvora em sua mão, visíveis a
olho nu.
Nas observações, afirma:
O Laudo, apesar de conter omissões importantes que permitiriam uma visão
mais completa dos fatos que ocorreram (…), chega a uma causa mortis coerente
com a descrição feita.
No entanto, o mesmo não se pode dizer da circunstância qualificadora cuja
resposta corresponde ao quesito de nº 4 (quatro) do Laudo e que foi respondido “não”, quando pelas lesões contusas sofridas fica evidente o processo de crueldade a que foi submetido Joaquim Alencar de Seixas antes do desfecho com os tiros de misericórdia.
No caso em análise, verifica-se traumas abdominal, craniano, dorsal, demonstrando um processo de espancamento, brutalidade a toda prova, o que nos leva
à preocupação de que quando foi atingido pelos tiros já estivesse em estado
comatoso devido ao violento trauma craniano sofrido.
Portanto, apesar de o Laudo revelar a intenção do relator demonstrar com clareza as lesões encontradas, encontra-se incompleto e incoerente ao responder
o quarto quesito que, a meu ver, deveria ter como resposta “sim”.
O quesito nº 4 é o seguinte:
(A morte) foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura,
ou por outro meio insidioso ou cruel?