Austeridade e privatização

Austeridade e privatização

            A adoção das diretrizes da austeridade fiscal como uma das orientações estratégicas da política econômica do governo tem provocado consequências bastante danosas para o conjunto da sociedade brasileira. Um dos mais aspectos mais perversos de tal receituário refere-se à abertura de uma larga avenida que leva à privatização de áreas e setores que tradicionalmente sempre ficaram como sendo de responsabilidade do setor público.

            Nos movimentos de curto prazo e na lógica do controle do caixa do Tesouro Nacional, a obediência cega e burra às regras do austericídio estrangula a capacidade de realização de despesas públicas em rubricas chamadas inocentemente de “primárias”. Na verdade, isso significa a contenção dos dispêndios governamentais em políticas públicas não-financeiras. O impedimento voluntário de aportar os recursos necessários para saúde, previdência social, segurança pública, educação, assistência social, saneamento e outros é apontado como uma virtude da tal da responsabilidade fiscal. Por outro lado, o compromisso com as despesas volumosas direcionadas para o pagamento de juros da dívida pública merece todo o tipo de elogios por parte do financismo e da alta tecnocracia incrustada no Estado e que se revela comprometida com aqueles interesses.

            No entanto, o estrangulamento da capacidade de gastos nos setores de maior sensibilidade social não diminui a demanda da grande maioria da população por tais serviços públicos. Assim, a solução que se apresenta é caminhar pela via da transferência de tais responsabilidades do governo para o setor privado. Os caminhos são variados, mas todos eles fazem parte do mesmo processo de privatização. Pode ser a realização de contratos de parceria público privada (PPPs), pode ser também por meio da terceirização das atividades, pode ser ainda a definição de contratos de concessão. O fato concreto é que em todas as hipóteses, o Estado deixa de ser o provedor de tais serviços públicos.

Arrocho fiscal para privatizar.

            Os principais argumentos apresentados pelos defensores de tal opção neoliberal referem-se à suposta maior eficiência do setor privado e na falácia da “ausência de recursos” públicos para dar conta de tais obrigações constitucionais. Os resultados que podem ser analisados a partir da experiência brasileira e internacional, no entanto, apontam em direção oposta. Vários países europeus, por exemplo, estão adotando a via da reestatização de suas empresas de água e saneamento, em razão do fracasso da experiência privatizante. Por outro lado, os péssimos serviços prestados em áreas fundamentais que foram transferidas ao capital privado no Brasil também desmentem o mito liberaloide. O escândalo mais recente das privatizações de aeroportos desnuda a ideia de que o setor privado sempre faz melhor e mais barato. As tarifas subiram de forma exagerada e os serviços deixam a desejar.

            Outro aspecto relevante na adoção da austeridade fiscal como linha mestra de atuação do Estado refere-se à impossibilidade de levar em frente projetos envolvendo a correção de rumos das privatizações adotadas até o momento atual. Ao impedir o aporte de recursos do Tesouro Nacional para programas governamentais considerados estratégicos para o desenvolvimento, o Novo Arcabouço Fiscal opera como fator impeditivo de se promover o necessário retorno para as mãos do setor público de aventuras privatizantes absolutamente ineficientes e irresponsáveis. Esse é o caso da Eletrobrás e das subsidiárias mais lucrativas da Petrobrás, para citarmos apenas alguns exemplos mais recentes.

            A austeridade fiscal funciona também como a definidora de espaços e regras de funcionamento de novas áreas de acumulação de capital privado. Algumas iniciativas adotadas nos últimos tempos apontam perigosamente para substituição da responsabilidade do governo pela inciativa voltada para o lucro apropriado privadamente. Assim, a lógica da operação dos empreendimentos sob um novo patrão leva o serviço público a ser gerido e administrado segundo os interesses do capital e não ao atendimento das necessidades da maioria da população.

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Presídios, unidades socioeducativas e parques nacionais.

            A privatização do sistema de presídios deu um passo importante com a transferência da unidade prisional no município de Erechim, no Rio Grande do Sul, a um consórcio privado. A verdadeira batalha travada pelo governador tucano Eduardo Leite em prol dessa opção vai muito além do que uma simples alternativa à suposta carência de recursos. Trata-se de uma verdadeira escolha de natureza ideológica pelo modelo privatista em um setor de elevadíssima sensibilidade social e de ligação direta coma segurança pública. A lógica passa a ser a de aumentar a rentabilidade do capital privado, onde políticas de desencarceramento e de melhoria das condições dos presos deixa de ser prioridade como política pública. Afinal, a eventual redução da população carcerária elimina o foco da rentabilidade e do crescimento do setor.

            Por outro lado, o governo de Minas Gerais, administrado pelo bolsonarista Romeu Zema busca um caminho de privatizar as unidades de função socioeducativa naquela unidade da federação. A proposta tem sido objeto de críticas generalizadas, tendo em vista a irresponsabilidade de se delegar esse tipo de serviço, de natureza claramente estatal, para o capital privado. A experiência “inovadora” que o ex governador tucano, Aécio Neves, promoveu ao entregar a administração do presídio de Ribeirão das Neves ao capital deve contribuir também para aumentar as desconfianças com relação a esse intento de Zema. Deixar o importante trabalho de ressocialização de parcela de jovens e adolescentes em mãos do capital privado reúne todas as evidências de uma opção equivocada e desastrosa.

            Outro setor que se encontra sob ameaça de incremento de privatização é do meio ambiente. A privatização do simbólico Parque Nacional de Jericoacoara, no litoral do Ceará, aponta para esse risco. A ideia de transferir a responsabilidade pela operação daquele verdadeiro santuário natural ao capital privado também é antiga. No entanto, tendo em vista as polêmicas envolvidas na solução a ser adotada e a resistência dos atores sociais envolvidos, a privatização não havia avançado muito. Mas foi justamente depois da chegada de Lula ao seu terceiro mandato que a operação foi concluída, envolvendo toda a pompa simbólica do martelo sendo batido nos salões da B3, a antiga Bolsa de Valores de São Paulo. A entrada do BNDES no financiamento das operações financeiras desse tipo de empreendimento criminoso deveria servir como um sinal de alerta para se impedir a continuidade desse tipo de iniciativa.

            Os exemplos acima apresentados revelam as trágicas consequências provocadas pela adoção da austericídio como meta de governo. Além de provocar redução significativa na qualidade e na quantidade de serviços públicos, a obsessão com resultados fiscais a qualquer custo pode contribuir para o aprofundamento do processo de privatização em nosso país. Caso Lula não assuma efetivamente o controle sobre os rumos da política econômica, a autonomia concedida aos desvios neoliberais de Fernando Haddad pode comprometer os objetivos do governo e colocar em riscos o desempenho eleitoral da base aliada em 2024 e 2026.

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