Longa crise argentina leva Milei, de extrema-direita, ao poder

Longa crise argentina leva Milei, de extrema-direita, ao poder

O discurso disruptivo e o estilo provocativo de Milei pegaram de forma extraordinária entre a classe média empobrecida e especialmente entre os jovens, que nunca viram a Argentina com as possibilidades de progresso que os mais velhos conheciam.

POR DANIEL GUTMAN

BUENOS AIRES – A longa crise socioeconômica da Argentina, que se expressa com 40% da população na pobreza e a deterioração geral da renda, levou o país sul-americano neste domingo, 19, a terreno desconhecido: a eleição como presidente de Javier Milei, um extrema-direita que até há alguns anos não tinha qualquer atividade política ou partidária. Ninguém sabe o que está por vir agora.

Milei, de 53 anos, que venceu por 11 pontos no segundo turno o centrista peronista Sergio Massa, ministro da Economia do atual presidente Alberto Fernández, começou a subir os degraus da fama há oito anos.

Economista de profissão, a princípio fez isso lentamente, e depois com um ritmo frenético que arrasou os políticos tradicionais, desgastados pela deterioração permanente das condições de vida da maioria da população.

Sua plataforma de lançamento foi o seu papel como palestrante em programas políticos de TV nos quais, muitas vezes gritando e usando insultos, soube ter empatia com o mal-estar que se aprofundava a cada dia e se espalhava por quase todos os cantos do país sul-americano com uma população de 46 milhões de habitantes.

Diante das câmeras, Milei chamou os políticos de “criminosos” e “parasitas”, sem distinção de partidos, e rapidamente se tornou a personagem mais cobiçada pelos produtores, já que sua presença gerava picos de audiência.

Assim, começou a expandir sua ideologia ultraliberal, que chama de libertária. E popularizou a ideia de que para travar o declínio da Argentina é preciso liquidar ao mínimo o Estado, o apoio ao sistema de educação, saúde e assistência social que já foi referência na América Latina e que hoje está evidentemente esgotado pelo desastre econômico.

Já na campanha, o candidato – que não contava com o apoio de nenhum político tradicional conhecido até receber o apoio do ex-presidente de direita Mauricio Macri, que enfrentava o segundo turno – costumava exibir uma motosserra elétrica, como símbolo de que vem acabar não só com o Estado atual, mas com os privilégios da classe política – que ele chama de “casta” – e com tudo o que está estabelecido.

Popularidade entre os jovens

O discurso disruptivo e o estilo provocativo de Milei pegaram de forma extraordinária entre a classe média empobrecida e especialmente entre os jovens, que nunca viram a Argentina com as possibilidades de progresso que os mais velhos conheciam.

Grupos de amigos do ensino médio (na Argentina você pode votar a partir dos 16 anos) apareceram na TV para dizer que votariam por unanimidade em Milei, enquanto jovens trabalhadores precários também mostraram apoio quase total a alguém que eles veem como uma pessoa nova na política e sem contaminação.

Com o desemprego mais baixo dos últimos 20 anos (6,2% segundo os últimos dados oficiais), a Argentina enfrenta uma realidade à qual não está habituada: pessoas empregadas que não conseguem sobreviver. A inflação sempre em alta – em 2023, chegou a quase 150% ao ano – deteriorou a renda de quase todos e Milei semeou nesse terreno fértil.

“Você já cometeu muitos erros. Vamos tentar agora com um de nossa escolha” é a frase surpreendentemente semelhante que muitos jovens garçons ou entregadores em domicílios de bairros de classe média repetiram nas últimas semanas a pessoas mais velhas que lhes pediram explicações sobre um fenômeno que eles não conseguem entender.

A principal proposta de Milei tem sido eliminar o peso, a moeda nacional, e dolarizar, como já fizeram o Equador, El Salvador e o Panamá na América Latina, economias muito menores que as da Argentina.

A ideia gerou entusiasmo entre muitos eleitores que se desesperam com a desvalorização semanal do peso argentino, apesar de a grande maioria dos economistas ter alertado que isso só levaria a um maior empobrecimento, porque o país tem reservas líquidas negativas em dólares no seu Banco Central.

O agora eleito presidente disse justamente que fecharia o Banco Central, ao qual responsabiliza pela inflação, por ser o emissor da punida moeda argentina.

Um pôster da malsucedida campanha de rua contra o já eleito presidente Javier Milei. Oferece corações e pulmões à venda no Mercado Liberado, já que quem governará a Argentina a partir de 10 de dezembro defendeu a compra e venda de órgãos como normal. (Imagem: Daniel Gutman/IPS).

Como Trump e Bolsonaro

Na noite da vitória, Milei apareceu diante de seus seguidores no palco de um hotel cinco estrelas no centro de Buenos Aires com sua irmã, Karina Milei, que se dedica à astrologia e ao espiritismo, segundo registros da Receita Federal. Ela é a sua principal colaboradora e ele a chama publicamente de “a Chefe”, em termos masculinos.

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“A situação na Argentina é crítica. Não há espaço para o gradualismo nem para a tibieza, não há espaço para meias-medidas”, afirmou o autodenominado economista anarco-libertário, que se declarou admirador dos ultradireitistas Donald Trump e Jair Bolsonaro, no seu primeiro discurso enquanto presidente eleito.

“Gradualismo” é uma palavra que tem sido muito utilizada na política argentina, porque era o estilo que, segundo ele mesmo, Macri pretendia utilizar para corrigir os desequilíbrios da economia argentina quando era presidente (2015-2019).

Foi um governo de direita imprensado entre quatro governos de centro-esquerda (2003-2015 e 2019-2023) do chamado ramo kirchnerista do peronismo.

Mas o governo de Macri terminou mal – não só com uma inflação mais elevada e uma pobreza maior, mas também com uma dívida monumental com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que agora sufoca a economia -, o que o impediu de ser reeleito em 2019.

Agora, com o apoio do próprio Macri, que sugeriu que fracassou como presidente porque não se atreveu a realizar reformas estruturais, Milei prometeu não repetir o mesmo erro e aplicar políticas de “choque”.

Especificamente, durante a campanha, ele anunciou que iria impor um programa de ajuste dos gastos públicos mais severo do que o exigido pelo FMI, uma organização financeira cujas políticas de austeridade geraram uma forte deterioração social e afetaram a situação política na própria Argentina e em outros países da região.

Assim, Milei disse que irá privatizar todas as empresas públicas, incluindo as ferrovias, a companhia aérea de bandeira e os meios de comunicação estatais.

Disse também que eliminará os subsídios a serviços públicos como eletricidade, gás natural, saneamento e transportes, pelos quais hoje todos os argentinos pagam muito menos do que o seu valor real: tanto os pobres como aqueles que se encontram numa situação econômica confortável. A viagem de ônibus em Buenos Aires, por exemplo, custa apenas cinco centavos de dólar.

Milei também prometeu cortar relações com o Brasil – principal parceiro comercial da Argentina – porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é “comunista” e que não dialogará, pelo mesmo motivo, com a China, comprador número um das matérias-primas agrícolas produzidas no país.

Entre muitas outras extravagâncias, manifestou-se a favor da criação de um mercado de venda de órgãos e do porte gratuito de armas, embora tenha dito que é contra o aborto, legalizado na Argentina pelo Congresso Nacional em 2020, após uma longa luta do movimento feminista.

O agora eleito presidente também rompeu com um consenso que parecia inamovível desde a recuperação da democracia, há 40 anos: o repúdio aos crimes da última ditadura militar (1976-1983). Ele chamou isso de “excessos” de repressão e elegeu Victoria Villarruel, uma advogada que defende abertamente soldados condenados por crimes contra a humanidade, como vice-presidente.

Milei gerou medo num setor da sociedade que, apesar de tudo, quer defender o que permanece de pé num país com uma crise que já dura há demasiado tempo. Por outro lado, um setor mais amplo priorizou a necessidade de mudanças radicais. Na Argentina, prevaleceu a raiva radical – a raiva, como a chamam internamente –, o cansaço social e, em menor medida, também a esperança de que algo novo esteja por vir.

Agora, a Argentina enfrenta a incerteza, com uma figura que é muito excêntrica, anti-sistema, fundamentalista de mercado, negacionista das alterações climáticas e dos direitos das mulheres, oposta ao Estado, às obras públicas e à igualdade de oportunidades, levada à Casa Rosada presidencial pelos que não viveram a última e sangrenta ditadura militar, pelos que sentem que a democracia não lhes deu respostas.

Daniel Gutman, correspondente da IPS na Argentina desde 2017, é advogado de profissão e trabalha como jornalista na Argentina desde 1990. Trabalhou nos jornais La Prensa e Diário Popular e durante 18 anos foi membro da redação do jornal Clarín.

Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.


Javier Milei dirige-se aos seus seguidores na noite de domingo, 19, após a sua retumbante vitória eleitoral, acompanhado pela sua irmã, Karina Milei, a quem chama de “a chefe”. Imagem: Cortesia de Todo Noticias (TN)

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