Escolhas fatídicas. Supremacia Nuclear (III)

Escolhas fatídicas. Supremacia Nuclear (III)

O então presidente George Bush sênior (à esq.) e o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev, assinam o START I, em 31 jul. 1991 (Fonte: The George Bush Presidential Library and Museum/Wikimedia)

No final de 1989, o conflito Leste-Oeste era passado, mas as linhas mestras do futuro ainda não tinham sido traçadas. A ordem emergente então – nunca de todo realizada – foi resultado de escolhas feitas em resposta a problemas discretos, com consciência difusa de suas implicações e significado.

Por SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ

Quadratura do círculo? A expressão demanda um rápido esclarecimento. Com efeito, a forma como a Guerra Fria terminou – desmobilização voluntária de um dos contendores, jamais vencido em campo de batalha – é um dado da realidade objetiva e, como tal, não constitui problema. Ele surge sob esta figura apenas em sua relação com um conceito de ordem internacional que não o comporta, ou só o acomoda com dificuldade.

Mas quando este conceito vem à luz? O discurso de Anthony Lake que comentamos é de agosto de 1993 – cerca de quatro anos depois dos acontecimentos que selaram o fim da Guerra Fria. Ora, o tempo da política não se mede pelo relógio. Quatro anos em período rotineiro pode ser pouco, mas em época de mudança revolucionária é uma eternidade. No final de 1989, o conflito Leste-Oeste era passado, mas as linhas mestras do futuro ainda não tinham sido traçadas. A ordem emergente então – nunca de todo realizada – foi resultado de escolhas feitas em resposta a problemas discretos, com consciência difusa de suas implicações e significado. Como sói acontecer com frequência, o fato precede a doutrina que o apresenta como necessário. Para entender o contexto no qual a Rússia – alquebrada, deprimida, mas ainda pesadamente armada – afigura-se como problema insolúvel, devemos considerar brevemente duas escolhas do vencedor que contribuíram fortemente para moldar a nova ordem.

File:President Clinton and CIA Director John Deutch - Flickr - The Central Intelligence Agency.jpg

(Arquivo) O então presidente americano, Bill Clinton; o vice-presidente Al Gore; o diretor da CIA, John Deutch, e o conselheiro de Segurança Nacional, Tony Lake, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C., em 22 fev. 1996 (Crédito: Biblioteca Presidencial William J. Clinton/Wikimedia Commons)

Supremacia nuclear

Por mais que estivesse economicamente prostrado, a existência de um Estado com o potencial nuclear da Rússia constituía um problema intragável para a nova ordem, porque negava um de seus pressupostos: o emprego da força – ou a ameaça crível de seu emprego – para fazer valer os seus preceitos e normas.

Certo? Em termos.

A resposta será afirmativa, se a questão for contemplada na perspectiva da dissuasão nuclear. As condições históricas para esta doutrina são conhecidas: não apenas a quebra do monopólio atômico que os Estados Unidos detiveram até 1949, mas a capacidade da potência rival de responder com efetividade a um eventual ataque nuclear, o que dependia da disponibilidade de ogivas em quantidade suficiente e meios para entregá-las. É a certeza compartilhada do contragolpe devastador que inibe a beligerância de ambos e exclui entre eles a hipótese de guerra. “Destruição mútua assegurada”, M.A.D. no acrônimo em inglês, trocadilho que sempre fez a delícia dos críticos. Esse estado de coisas foi atingido na década de 1960 do século passado.

Durante a Guerra Fria, os especialistas discutiram interminavelmente como deveriam ser entendidos os termos desta equação. O que constitui um ataque devastador? Quão elevado precisaria ser o custo do segundo golpe para que se tornasse inaceitável, afastando assim a ameaça da agressão? Mas as diferentes respostas a tais questões não alteravam a lógica do cálculo.

Ele se modifica inteiramente, porém, se concebermos a possibilidade de evitar as consequências funestas do primeiro ataque, o que idealmente poderia ser conseguido mediante a destruição do armamento nuclear do inimigo[1] e/ou da montagem de um sistema de defesa capaz de neutralizar, no todo ou em parte, o seu eventual ataque.

Com seus efeitos inibitórios e permissivos (a imunidade ao adversário traduzia-se em liberdade de projeção de poder em terceiros espaços), a situação de equilíbrio nuclear envolvia estímulos a que esta possibilidade fosse ativamente buscada. Mas qualquer movimento neste sentido prometia deslanchar uma corrida armamentista elevando sobremaneira o risco de guerra. É no contexto dessas pressões contraditórias que a dissuasão ganha forma, gradualmente, como um regime internacional. A criação da Agência Internacional de Energia Atômica, em 1958, o Tratado de Limitação de Testes Nucleares, em 1963, o Tratado de Não Proliferação Nuclear, de 1968, e os Acordos SALT I, de 1972, que estabeleciam limites fixos aos veículos lançadores estratégicos (mísseis intercontinentais, mísseis balísticos lançados de submarinos e bombardeiros) são momentos importantes no processo de constituição deste regime.

President Ford and Soviet General Secretary Leonid Brezhnev sign Joint Communiqué following talks on limitation of strategic offensive arms in Vladivostok, November 24, 1974 (Gerald R. Ford Library/David Hume Kennerly)

Presidente Gerald Ford e o então secretário-geral soviético, Leonid Brezhnev, assinam um comunicado conjunto após conversas sobre a limitação de armas estratégicas ofensivas em Vladivostok, em 24 nov.  1974 (Fonte e crédito: Gerald R. Ford Library/David Hume Kennerly)

Mas, para o tema em discussão aqui, é o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, de 1972, que mais importa. Este tratado vedava a construção de sistemas nacionais de defesa de mísseis balísticos com potencial para interceptar os mísseis balísticos intercontinentais da outra superpotência, embora permitisse a pesquisa sobre esses dispositivos em laboratório. Sobre ele, vale a pena citar o comentário do autor de um estudo valioso sobre o tema.

The superpowers therefore agreed to a condition of mutual vulnerability by signing the Anti-Ballistic Missile Treaty (ABM Treaty) on May 26, 1972. This treaty outlawed the deployment of large national missile defenses, and codified the strategic condition known as Mutually Assured Destruction (MAD). Henceforth, the ability to defend became viewed as the conceptual opposite to deterrence, and anathema to security. In time, the ABM Treaty came to be held as sacrosanct by some actors in the US and others in the international system, which viewed it as the cornerstone of strategic stability, an essential pivot of the global arms control regime, and a symbol of great power co-operation[2].

Compreende-se, assim, o impacto provocado pelo anúncio feito por Reagan, em 23 de março de 1983, de que seu governo daria início a um programa gigantesco para a construção de um escudo antimísseis – sistema complexo de sensores, satélites e lançadores capazes de interceptar ainda no ar qualquer artefato dirigido contra o território dos Estados Unidos – o qual, além de proteger sua população, livraria a humanidade da situação insana e imoral da paz como o avesso da hecatombe. Durante anos, o líder republicano tinha sido um crítico contumaz dos acordos de controle de armas, simples rendição, a seu ver, à chantagem do inimigo. Recebido por alguns com maravilhamento, angústia por outros e perplexidade geral, seu discurso trazia a público o elemento mais espetacular de uma política que rompia declaradamente com a estratégia da dissuasão, ao postular que os Estados Unidos deveriam estar preparados para travar, se necessário, e prevalecer em um conflito nuclear com a União Soviética.

Tal disposição não impediu que, em seu segundo mandato, Reagan estivesse à testa, com Gorbachev, de negociações sobre armas nucleares de ambição sem precedentes. Já fiz referência a este episódio que marcou o final da Guerra Fria e não preciso insistir nele. Mas devo observar que o processo negociador só avançou, porque o líder soviético assentiu em deixar o programa de defesa antimísseis fora da discussão.

O sonho de Reagan, como sabemos, não se materializou. Referida ironicamente pelos críticos como “Guerra nas Estrelas”, a SDI – Iniciativa de Defesa Estratégica na sigla em inglês – esbarrou em dificuldades técnico-científicas e problemas orçamentários derivados do custo financeiro astronômico das pretensões nela depositadas. Reduzido em seu alcance – proteção do arsenal nuclear, não dos centros urbanos –, sua implantação protelada sine die, o programa não teve o efeito revolucionário imaginado: a lógica da dissuasão continuou dominando as negociações pela redução de armas nucleares que se estenderam pelo mandato do sucessor de Reagan.

Mas o seu significado a médio e longo prazo não pode ser minimizado. Basta considerar a mudança no universo da política de defesa nacional dos Estados Unidos implicada na magnitude dos recursos financeiros e técnico-científicos que mobilizou e nas expectativas assim despertadas. Com orçamento projetado de cerca de US$ 26 bilhões para os cinco primeiros anos, e custo total estimado na casa dos trilhões, a SDI envolveu a realização de milhares de contratos de Pesquisa & Desenvolvimento, os maiores dos quais, naturalmente, com os gigantes do setor. No final de 1985, o quinhão da Lockheed Martin, primeira da lista dos 20 maiores contratantes, foi de US$ 1,24 bilhão, enquanto o total canalizado para o seleto grupo (que reunia outros nomes conhecidos como General Motors, Boeing, General Eletric, Raytheon, entre outros) atingiu a cifra de US$ 7,554 bilhões. Contemplando ainda uma miríade de pequenas firmas privadas, a maior parte para atividades de consultoria, centros de pesquisa espalhados pelas universidades mais prestigiadas do país, além de dezenas de grandes laboratórios públicos mantidos pelos três ramos das Forças Armadas (além da DARPA, Defense Advanced Research Project Agency, e da DNA, Defense Nuclear Agency), estimou-se que cerca de 19 mil cientistas, engenheiros e técnicos trabalhavam para a SDI em 1987[3].

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Estava formado, assim, um poderoso amálgama de grupos econômicos, burocráticos e profissionais com forte interesse no avanço do programa, que era sustentado no campo político pelos defensores (principalmente republicanos) de uma estratégia agressiva em relação à União Soviética.

O tema da defesa antimísseis manteve-se em pauta nos governos Bush sênior e Clinton, mas agora em chave diferente. Superada a ameaça soviética, em condições de unipolaridade, o desafio a enfrentar não vinha mais de uma grande potência nuclearizada – “par competidor” (do inglês “peer competitor”), para usar a expressão cifrada – mas de Estados proscritos (“rogue states”), ou de organizações terroristas que poderiam fazer uso de mísseis balísticos para atacar alvos pontuais (tropas americanas, ou forças aliadas) com armas de destruição em massa (químicas, biológicas e mesmo nucleares) em teatros regionais. O emprego de mísseis Scud pelo Iraque durante a Guerra do Golfo serviu como advertência. Mas situação muito mais séria ocorreu em 1994 na crise com a Coreia do Norte, ocasião em que foi estimado entre 300 e 500 mil o número de vítimas na hipótese de um ataque nuclear à Coreia do Sul, onde os Estados Unidos mantêm uma tropa de cerca de 30 mil homens[4].

Ao longo do tempo, a resposta dada a esta situação tomou duas direções. De um lado, esforço concentrado no desenvolvimento de armas nucleares e convencionais – o emprego combinado tendia a borrar em alguma medida as diferenças entre ambas – mais eficientes e precisas, numa estratégia de contraproliferação que contemplava o emprego preventivo de ambas, se necessário, em flagrante violação do espírito e da letra do TNP.

A valorização do nuclear nas novas condições criadas com o fim da Guerra Fria não era unânime, mas, no trabalho de revisão da política nuclear dos Estados Unidos conduzido ainda no primeiro governo Clinton, prevaleceu – contra a orientação do então secretário assistente de Defesa, Ashton Carter, encarregado de dirigir os estudos – a visão do Comando Estratégico (SRATCOM, na sigla em inglês), que reservava um papel central a este componente do poder militar da superpotência[5]. Vencida a primeira batalha, o ponto de vista do Comando Estratégico predominou amplamente na reforma do setor nuclear dos Estados Unidos, como nos informa o autor de um estudo de referência sobre o tema.

This reform essentially meant the transition from a quantitative to a qualitative posture. Even though President Bill Clinton in 1997 issued new guidance to the war planners that reportedly removed all previous requirements for planning to fight and win protracted nuclear wars, the nuclear posture that resulted from STRATCOM’s reform  and the improved flexibility of the nuclear war planning system that flowed from it  means that much remains the same: protracted nuclear war or not, STRATCOM still has to “win” any conceivable nuclear clash, whether it be with Russia, China, or so-called “rogue” states. This “credible deterrent” still requires flexible, multiple-platform, and hardened nuclear forces, planning principles that remain firmly rooted in STRATCOM’s analyses from the 1990s[6].

De outro, retomada do programa de defesa antimísseis, redefinido agora em seu escopo e abrangência: desenvolvimento de sistemas de defesa adaptáveis, concebidos para interceptar mísseis balísticos de curto ou médio alcance em regiões conflitivas do mundo. Introduzida já no governo Bush sênior (National Missile Defense Act, dezembro, 1991), esta orientação foi mantida durante os dois mandatos de Clinton, longo período durante o qual o debate sobre o tema girou em torno da compatibilidade do programa, em suas sucessivas versões, com o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos de 1972, reproduzindo-se sempre a polarização no Congresso entre os defensores de uma interpretação ampla do Tratado de forma a torná-lo condizente com um programa nacional de defesa antimísseis (republicanos, representantes políticos dos interesses aglutinados em torno da Iniciativa de Defesa Estratégica de Reagan) e democratas, mais sensíveis ao impacto que um avanço menos comedido nesta área teria previsivelmente no relacionamento com a Rússia[7].

Reagan e Gorbachev assinam o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), na Casa Branca, em Washington, D.C., em 8 dez. 1987 (Crédito: Ronald Reagan Library/Wikimedia/Domínio Público)

Em 1997, o governo dos Estados Unidos negociou com a Rússia um “acordo de demarcação” que estabelecia critérios de diferenciação entre defesa contra mísseis de teatro (permitida) e defesa antimíssil estratégica, ou nacional (proibida), mas, em janeiro de 1999, cedendo à maioria republicana no Congresso, Clinton promulga a Lei Nacional de Defesa contra Mísseis (National Missile Defense Act) nos termos da qual se obrigava a instalar um escudo nacional contra mísseis “assim que tecnologicamente possível”[8]. Meses depois, no calor da crise provocada pelos bombardeios da OTAN a Belgrado, Clinton procurou tranquilizar o recém-eleito Vladimir Putin, garantindo-lhe ser pessoalmente contrário à revogação unilateral do Tratado sobre Mísseis Balísticos. Fica ao leitor a pergunta sobre como essas palavras teriam caído nos ouvidos do presidente russo. O certo é que, em julho do ano seguinte, ele se juntava ao chefe de Estado chinês, Jiang Zemin, em Pequim, para denunciar os planos americanos sobre defesa contra mísseis balísticos, prometendo a construção de uma aliança estratégica entre os dois países, a fim de combater o predomínio dos Estados Unidos na política mundial[9].

***

O resto da história é conhecido. Atentados do 11 de Setembro; operação militar no Afeganistão; “Guerra Global ao Terror”; saída do Tratado sobre Mísseis Balísticos; nova Estratégia de Segurança Nacional (2002) que consagra a doutrina da guerra preventiva.

Com George W. Bush, a opção pela supremacia nuclear é explícita. Mas só conseguimos entender este fato se o encaramos como o coroamento de um processo que tem início ainda quando o mundo festejava o fim da Guerra Fria.


Notas 

[1] Cf. Lieber, Keir A; Press, Dary G.. The New Era of Counterforce. Technological Change and the Future of Nuclear Deterrence, International Security, Vol. 41, No. 4, 2017, pp. 9-49.

[2] Steff, Reuben. Strategic Thinking, Deterrence and the US Ballistic Missile Defense Project from Truman to Obama. Surrey/Burlington, Ashgate Publishing, 2013, p. 1.

[3] Reiss, Edward. The Strategic Defense Initiative. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, p. 60. As informações contidas neste parágrafo foram extraídas todas desta obra. Cf., pela ordem, pp. 60, 69 e 95.

[4] Cf. McDpnough, David S.. Nuclear Superiority. The New Triad and the Evolution of Nuclear Strategy. Adelphi Paper 383, London, The International Institute for Strategic Studies (IISS), 2006, p. 36.

[5] Cf. Kristensen, Hans M. The 1994 Nuclear Posture Review, Nuclear Information Project, July 8, 2005, apud, Steff, Reuben, op. cit. p. 70.

[6] Kristensen, Hans M.. The Matrix of Deterrence U.S. Strategic Command Force Structure Studies, The Nautilus Institute for Security and Sustainable Development, May, 2001. Disponível em: <http://nautilus.org/wp-content/uploads/2015/07/Matrix-of-Deterrence-KP.pdf>.

[7] Análise circunstanciada do debate político sobre o tema pode ser encontrada em Powaski, Ronald E.. Return to Armageddon. The United States and the Nuclear Arms Race, 1981-1999. Oxford/New York, Oxford University Press, 2000.

[8] Steff, Reuben & Nicholas Khoo. Hard Balancing in the Age of American Unipolarity: The Russian Response to US Ballistic Missile Defense during the Bush Administration (2001-2008). The Journal of Strategic Studies, 2014 Vol. 37, No. 2, 222-258 (p. 235).

[9] Rennie, David. Russia and China vow to defy US dominance, The Telegraph, July 19, 2000.


Artigo publicado originalmente no Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). O texto é a terceira da série O Quadrilátero da Crise. Confira também:

O Quadrilátero da crise. A guerra na Ucrânia e o governo Biden (I)

A Quadratura do Círculo. A Política dos Estados Unidos para a Rússia no Pós-Guerra Fria (II)

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