Estado étnico ou democrático?

Estado étnico ou democrático?

«Enquanto o laço entre a nacionalidade israelense e as leis de Nuremberg não for rompido, Hitler continuará indiretamente a definir quem é judeu. Definir uma cidadania moderna segundo critérios religiosos ou genéticos é muito problemático, particularmente para os judeus».

A afirmação é de Avraham Burg – ex-presidente da Knesset, o Parlamento israelense, e presidente interino de Israel em 2000 – no livro «Vaincre Hitler» (Vencer Hitler), publicado em francês em 2007. Em 359 páginas, o autor – que deu a seu livro o título de «Hitler a vaincu» (Hitler venceu) e o mudou por orientação do editor – reflete sua visão de um «judaísmo humanista e universalista», como diz no subtítulo.

Ele questiona a «lei do retorno», fundadora do Estado de Israel, que define quem é judeu, exatamente segundo os critérios étnicos estabelecidos pelos nazistas em Nuremberg, em setembro de 1935. Baseadas em teorias raciais da ideologia nazista, as leis de Nuremberg formaram o arsenal jurídico da perseguição sistemática dos judeus na Alemanha.

Segundo Burg, que mora na França desde  os políticos israelenses alegavam que a famosa «lei do retorno» é «uma resposta às leis de Nuremberg» e estabeleciam que é judeu «todo indivíduo nascido de mãe judia ou convertido ao judaísmo sem praticar outra religião”. Os fundadores de Israel queriam mostrar que a mesma pessoa apontada como judeu para ser perseguida na Alemanha seria reconhecida como judeu em Israel para ser protegida.

Avraham Burg acrescenta:

«Israel deve se liberar das leis de Nuremberg que analisam até a quarta geração para definir um judeu.  Diante dessa definição problemática, penso que Israel deveria renunciar à antiga concepção de ‘Estado-nação do povo judeu’ para se tornar o país de todos os judeus e de todos os seus cidadãos não-judeus».

Subversivo

Esse questionamento de Burg é tão subversivo quanto inaceitável para os defensores da «supremacia judaica» atualmente no poder com Netanyahu. Para eles, é indiscutível que o “povo judeu” é superior à «escória» que habitava a Palestina antes da criação de Israel em 1948. O povo palestino, que teve um Estado delimitado pela ONU em 1947, nunca pôde concretizar a Resolução 181 das Nações Unidas, que criou os dois Estados na antiga Palestina.

Hoje, a guerra contra o Hamas é apresentada pelos supremacistas que governam Israel como uma «guerra de civilização», uma forma grandiloqüente de escamotear a colonização e a inaceitável ocupação dos territórios palestinos (Cisjordânia e Jerusalém Oriental) desde 1967 após a Guerra dos Seis Dias. E demonstrar o desprezo que têm pelos muçulmanos, associados sempre à ideia de terrorismo.

«Eles são a barbárie e nós a civilização», afirmou recentemente Netanyahu, que com seus aliados reflete como num espelho a ideologia racista e as concepções de superioridade racial dos «arianos». Um humorista francês, Guillaume Meurice, causou polêmica este mês ao designar Netanyahu em uma de suas crônicas como «um nazista sem prepúcio».

Superar o culto do Holocausto

Avraham Burg se insurge contra o “culto do Holocausto” que, segundo ele, é explorado de forma obsessiva pelo sistema político.

«Nunca escondi que as viagens obrigatórias de estudantes israelenses aos campos de extermínio na Polônia eram perigosas. Trata-se de uma experiência emocionalmente forte, que cria uma nova realidade psíquica, reatualizando sem cessar os horrores do passado… Em vez de quebrar o círculo patológico, nós o perpetuamos. Em vez de curar, mergulhamos de novo na doença. Em vez de deixar o esquecimento cicatrizar as feridas, nós as arranhamos até fazê-las sangrar. O nacionalismo israelense vê nesse monte de cinzas, que representaram uma humanidade sorridente e criativa, uma maneira de fecundar e nutrir nossa alma torturada e temerosa. Por isso, não perco nenhuma oportunidade de dissuadir um aluno ou um professor de fazer a viagem a Auschwitz».

Burg se insurge no livro e a cada vez que fala à imprensa:

«É tempo de deixar Auschwitz e construir um Estado de Israel saudável. Se não o fizermos, corremos o risco de desaparecer. Hoje em Israel há um racismo que nos faz lembrar o dos exterminadores… Nossa resposta a Hitler deve ser uma união dos justos deste mundo contra a coalizão dos que não buscam a justiça, e parte destes últimos pertencem ao meu povo. É assim que podemos vencer Hitler. Muitas vezes, no fogo da polêmica me calei para evitar uma ruptura na sociedade israelense, uma guerra fratricida. Eu mudei. E me pergunto : são eles meus irmãos ? Não. As mulheres caridosas que escondem sob os cabelos naturais a idéia de Grande Israel não são minhas irmãs mas minhas inimigas.»

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 Uma raça imaginária

 Ainda mais radical que Burg é o historiador israelense Shlomo Sand, autor de dois livros fundamentais, entre muitos : «Une race imaginaire-Courte histoire de la judéophobie» (Uma raça imaginária-Curta história da judeofobia») e «Comment le peuple juif fut inventé» (Como o povo judeu foi inventado). Sua premissa básica é que não existe um povo judeu mas uma religião que se espalhou quando ela ainda fazia proselitismo em diversas partes do mundo.

 No seu livro «Como deixei de ser judeu» «(Comment j’ai cessé d’être juif», 2013) ele diz que não pode se dizer judeu, uma vez que não existe judeu laico. Seu livro foi muito debatido em Israel e na França, que tem a maior comunidade judaica da Europa.

Em entrevista que me deu a propósito deste livro, publicada na revista Carta Capital em 2014, ele disse :

 “Em Israel e no estrangeiro, os sionistas do início do século XXI rejeitam o princípio da nacionalidade israelense para admitir apenas uma nacionalidade, a judia”.

E acrescentou : “Cada vez mais, tenho a impressão de que sob certos aspectos Hitler saiu vitorioso da Segunda Guerra Mundial”.

Shlomo Sand pensa que Hitler venceu a guerra ideológica pois, exatamente como os nazistas, “os sionistas consideram a identidade judaica como algo à parte, uma etnia e mesmo às vezes com bases raciais”. Como os nazistas.

Ele conta que mesmo pessoas bem informadas desconhecem que na Universidade de Tel Aviv «há laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que os judeus são um ‘povo-raça’ que partiu há dois mil anos da terra que se chama Israel».

Shlomo Sand diz que algo tribal, racista, se impôs em Israel porque os sionistas definem o Estado israelense não como o Estado de seus cidadãos mas dos cidadãos judeus.

«Não discuto a existência de Israel, discuto a identidade etnocêntrica da política israelense».

Segundo o historiador, o sionismo nunca parou a colonização que vem do fim do século XIX até hoje.

“Mesmo entre 1948 e 1967 havia uma colonização sionista em Israel. Tomaram as terras de palestinos israelenses e deram aos judeus israelenses”.

Por que Israel nunca aceitou um Estado palestino?

Sand responde :

«Porque os sionistas pensam que o centro geográfico desse Estado é o centro da antiga “pátria dos judeus”, Hebron e Jericó. Para muitos, sobretudo para as elites políticas e intelectuais, renunciar a isso é muito difícil. Enquanto não houver uma verdadeira pressão internacional sobre o Estado de Israel, não haverá paz. Para salvar Israel de si mesmo o mundo deve acordar, sobretudo os Estados Unidos. Eles podem pedir que Israel respeite o direito dos palestinos, saia dos territórios ocupados e favoreça a criação do Estado palestino. Em Israel, não vejo um movimento político capaz de realizar esse projeto.»

Essa afirmação é de uma entrevista que Shlomo Sand me deu em 2014, mas é perfeitamente pertinente no contexto atual da guerra Israel-Hamas.

*Imagem em destaque: Kyle Taylor / Flickr

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