Mundo em transe. Notas sobre a crise e o futuro da ordem internacional
Um ano depois, o que parecia ser uma guerra de movimento – com participação indireta e limitada de terceiros – destinada a terminar mais cedo do que tarde em uma mesa de negociação, está convertida em uma guerra de atrito, ao que tudo indica prolongada, que arrasta, cada vez mais, em seu vórtice os Estados Unidos e seus aliados da OTAN.
1. Introdução
Quem poderia imaginar! Mal debelada a pandemia – ao menos para os países mais fortemente afetados em suas primeiras ondas, o Brasil incluído – quando a ideia de retorno à normalidade, ou a algo assemelhado, começava a se desenhar no horizonte sobreveio a crise. Os acontecimentos estão ainda frescos na memória de todos. Concentração de tropas, tentativas natimortas de negociação, comunicados alarmistas, trocas de acusações… até que, em 24 de fevereiro de 2022, os tanques russos atravessaram as fronteiras da Ucrânia. A reação não se fez esperar. Denunciando o ataque como violação flagrante dos princípios basilares do direito internacional, os Estados Unidos e seus aliados europeus garantiram ao governo ucraniano a assistência militar necessária para repelir o ataque, e adotaram sanções econômicas sem precedentes com o fim proclamado de sufocar a Rússia e de derrubar seu regime político. Pari passu, lançaram contra esta uma campanha global de propaganda, cuja agressividade evocava os momentos mais tensos da Guerra Fria.
Um ano depois, o que parecia ser uma guerra de movimento – com participação indireta e limitada de terceiros – destinada a terminar mais cedo do que tarde em uma mesa de negociação, está convertida em uma guerra de atrito, ao que tudo indica prolongada, que arrasta, cada vez mais, em seu vórtice os Estados Unidos e seus aliados da OTAN. Em algum momento haverá negociações de paz, ninguém discute. Mas esse momento parece muito distante, e as condições em que se dará são uma incógnita – pois constituem exatamente, o objeto em disputa! Enquanto isso, prevalece a lógica da ascensão aos extremos, cujo limite é a generalização do conflito e a catástrofe nuclear.
Mas não é só. Entrementes, o risco de guerra entre grandes potências elevou-se perigosamente em outra parte do mundo. O estopim da crise foi a decisão de Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, de viajar em caráter oficial a Taiwan, nos primeiros dias de agosto, para reforçar simbolicamente o apoio às suas pretensões independentistas. Grande espetáculo coreográfico, as imagens permanecem gravadas em nossa lembrança. Em resposta ao que denunciou como interferência inaceitável nos assuntos internos chineses, desafio à sua integridade territorial e sua soberania, a China promoveu um cerco naval inédito, acompanhado por voos não autorizados de aviões de combate no espaço aéreo taiwanês e exercícios militares que incluíram disparos com fogo real no entorno da ilha.
Seis meses mais tarde, memorando assinado pelo general de quatro estrelas Michael A. Minihan, chefe do Comando de Mobilidade Aérea, que supervisiona a enorme frota de aeronaves de transporte e reabastecimento da Força Aérea dos EUA, instava seus subordinados a se preparar para a eventualidade de uma guerra contra a China já em 2025. Tendo causado escândalo por sua retórica necrofílica – “A letalidade é o que mais importa”; “Quando você pode matar seu inimigo, cada parte de sua vida é melhor. Sua comida tem um gosto melhor. Seu casamento é mais forte” – o documento foi contraditado por fontes autorizadas, que se apressaram em descartar o prognóstico sombrio[1]. Mas o certo é que o general boquirroto não estava sozinho. Os planejadores estratégicos americanos trabalham com o cenário de guerra no Estreito de Taiwan a médio prazo e discorrem sobre ele, por vezes, em entrevistas ao público.
Ucrânia… Taiwan… situações críticas diversas, cada uma delas com seus determinantes e sua dinâmica própria, mas que se entrelaçam como aspectos de um conflito global considerados por muitos observadores acreditados como uma guerra mundial de novo tipo.
Reconhecidamente trivial, esta constatação suscita as perguntas: como definir a situação internacional presente? O que nos levou a ela? O que esperar do futuro?
Perguntas grandes, que demandariam muita pesquisa e o esforço combinado de estudiosos de várias disciplinas. Neste curto ensaio, vou formular algumas respostas tentativas, tomando como ponto de partida uma reflexão sobre o mundo que se desenhava no final do século passado, com o término da Guerra Fria.
2. A ordem emergente no pós-Guerra Fria e suas falhas.
“What is at stake is more than one small country, it is a big idea—a new world order, where diverse nations are drawn together in common cause to achieve the universal aspirations of mankind: peace and security, freedom, and the rule of law. Such is a world worthy of our struggle, and worthy of our children’s future.”[2]
Uma nova ordem mundial. Para além da retórica altissonante, característica nesse tipo de documento, mas acentuada em tempos de guerra (o pequeno país em questão era o Kuwait e a guerra feita em seu nome se estenderia ainda por um mês – 2/11/1990-28/02/1991), era esse o horizonte que se descortinava no limiar da última década do século passado – impressão reforçada alguns meses depois (19/08/1991) pela tentativa frustrada de golpe que selou o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Combinando elementos com genealogias distintas, a face mais conhecida da ordem emergente evocada na fala do Presidente dos Estados Unidos é a globalização neoliberal: remoção de barreiras ao comércio de bens e serviços; livre movimentação dos capitais; mercantilização sem peias da vida social e predomínio da lógica financeira em todos seus domínios; redução do papel do Estado como provedor de bens públicos e planejador estratégico; privatização, ampliação e reforço dos direitos de propriedade; desregulamentação; precarização da relação laboral – na linguagem insípida de seus cultores, flexibilização do mercado de trabalho.
Conformada em resposta à crise do capitalismo administrado do pós-guerra que atingiu o auge na segunda metade da década de 1970, a globalização neoliberal não denota um estado de coisas realmente existente, mas um discurso distópico, que passa a impregnar a realidade, ao se materializar em leis e regulamentos e ao se converter em programa institucionalizado de governos e organizações internacionais. Duas delas – o FMI e o Banco Mundial – tinham longa história e desempenhavam papel de relevo no enquadramento dos países da periferia na ordem econômica em construção, através das condicionalidades embutidas nos programas de estabilização fornecida por um, e dos programas de ajuste estrutural vendidos pelo outro. [3] No instante em que Bush celebrava a vitória antecipada sobre o Iraque, a organização mais cabalmente simbólica da globalização neoliberal ainda não saíra do laboratório – o longo processo de negociação aberto em 1986, na Conferência de Punta del Este (Uruguai), do GATT, cujo resultado mais vistoso, anunciado quase oito anos depois em Marrakesh, foi a Organização Mundial do Comércio, mais conhecida pela sigla OMC.[4]
A matéria da nova ordem emergente era, portanto, a globalização econômica tal como definida. Mas sua caracterização ficaria incompleta se não contivesse uma palavra sobre o seu complemento espiritual, seu concomitante valorativo: a consagração do tema dos direitos humanos como matéria de legislação internacional, e a transformação da democracia em requisito à aceitação de qualquer país como membro pleno da comunidade internacional reconstituída.
Mas esta afirmação precisa ser qualificada. Direitos humanos e democracia são conceitos políticos e, como tais, essencialmente contestáveis. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, evidencia este fato ao alinhar – sem se ater às tensões entre eles – direitos individuais (liberdades negativas) e direitos sociais, de caráter substantivo (direitos a), que demandam ação da autoridade garantidora dos mesmos, assim convertida em agência incumbida de provê-los. No quarto de século que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial essas duas modalidades de direitos humanos coexistiram, embora nem sempre muito harmoniosamente. Não mais assim na nova ordem neoliberal. Nesta, os direitos individuais são tidos como sagrados, enquanto o acesso a bens e a oportunidades de vida passa a ser visto como recompensa pelo esforço de cada um, fundada no livre funcionamento do mercado, cabendo ao poder público o papel residual de garantir o mínimo necessário à vida em sociedade, aos carentes de condições para obtê-lo por conta própria.
Esclarecimento análogo caberia fazer em relação ao outro componente do par. A democracia entronizada na nova ordem emergente pouco tem a ver com as noções clássicas de “bem comum” e “vontade do povo”, mantidas em seu vocabulário corrente como relíquias que contemplamos com reverência, mas não têm mais nenhuma serventia. A democracia em causa está reduzida ao acesso a postos de governo por meio da competição pelo voto, em eleições livres e honestas, entendido este regime como o mais adequado para assegurar o respeito aos direitos individuais, fundamento da ordem em sua dupla natureza, econômica e política.
A advertência é indispensável, pois da união entre o universalismo dos conceitos e o particularismo do conteúdo neles infundido resulta um traço perturbador da nova ordem: a exigência de dar efetividade aos dois imperativos em causa e o silêncio a respeito do sujeito desta obrigação, sobre as condições de sua entrada em ação e sobre os meios empregados.
A tensão entre este discurso normativo e os princípios básicos do direito internacional – fundado no conceito de igualdade soberana dos Estados, com seu corolário, a não intervenção e a não ingerência nos assuntos internos de outros Estados – é patente. O debate em torno dela ocupará amplo espaço no trabalho da ONU e na agenda de movimentos sociais e de grupos intelectuais e políticos em todo o mundo.[5] E ganharia intensidade variável de acordo com a dramaticidade das operações militares “redentoras” que se tornaram corriqueiras no período.
Operações salvadoras – sob distintas formas. Cumpre salientar a observação porque ela nos remete aos dois pilares em que a ordem emergente em questão repousa: a superioridade econômica das potências ocidentais, e a supremacia militar incontrastável dos Estados Unidos.
Sobre o primeiro deles farei apenas um rápido registro a fim de deixar fixadas algumas balizas para o argumento que será traçado a seguir. Entre as potências ocidentais acima referidas sobressaem-se claramente os Estados Unidos – pelo tamanho de sua economia; a extensão e profundidade de seu sistema financeiro; o lugar ocupado por sua moeda – divisa-chave na economia global –, mas também pelo papel de vanguarda desempenhado na reconfiguração produtiva conhecida como “terceira revolução industrial”. Esses atributos, aliados à sua posição geopolítica, garantiam aos Estados Unidos a condição de sede do modelo exemplar de capitalismo.
Menos conhecido do grande público, o segundo pilar demanda um comentário um pouco mais largo. Praticamente, todas as inovações que redundariam na terceira revolução industrial, bem como nos desenvolvimentos que nos levam agora à assim chamada indústria 4.0, tiveram origem em investimentos militares feitos pelo Estado americano no contexto da Guerra Fria.[6] O resultado desse esforço prolongado – programas bilionários, custeados a fundo perdido durante décadas – tornou-se espetacularmente visível aos olhos do comum dos mortais na Guerra do Golfo – espécie de feira para exibição de sistemas de armas que pareciam ter saído de um filme de ficção científica.
E, como observa um estudioso, na base de todos eles a tecnologia de informação. Em suas palavras:
“It is information technology, in the shape of precision guidance, that permits aircraft to strike targets with great accuracy. It is information technology, in the form of situational awareness systems … that permits ground formations to coordinate their operations more effectively. It is information technology, in the form of networked communications, that allows carrier battle groups to operate dispersed and yet mass their firepower.”[7]
A noção de que o mundo estava nos umbrais de uma revolução na tecnologia militar foi formulada inicialmente por analistas soviéticos e, segundo muitos observadores, teve papel importante nas mudanças timidamente introduzidas por Andropov, depois amplificadas no duplo programa de reformas (Glasnost e Perestroika) de Gorbachev. A Guerra do Golfo universalizou esta percepção. Os Estados Unidos saem do episódio consagrados como poder militar inigualável, de novo tipo.
O paralelismo é notável. As tecnologias de informação e comunicação, que transformam a economia e pavimentam o caminho da globalização são ao mesmo tempo fator multiplicador do poder militar dos Estados Unidos.
A nova ordem emergente parecia assentada, portanto, em sólidos alicerces, e assim foi percebida durante anos. Mas a dupla face das tecnologias de informação nos adverte para a existência nesta ordem de falhas, rachaduras, que se tornariam pouco a pouco cada vez mais evidentes.
A primeira a se manifestar e a mais óbvia foi sua propensão a viver crises financeiras recorrentes. Gestada na crise do capitalismo regulado, a liberalização dos mercados de capitais, cerne da globalização neoliberal, tinha como consequência – previsível, mas desconsiderada – a propagação na economia real da volatilidade característica destes. Três grandes crises financeiras internacionais (o colapso da serpente monetária europeia, em 1992; o colapso do peso mexicano, em 1994, e a crise asiática de 1997-98 – com suas sequelas: a crise da dívida russa e a crise cambial brasileira, no final de 1998, que levaria no início de 1999 à desvalorização do Real, atingindo mortalmente regime de convertibilidade argentino, fato que lançou o país, dois anos depois, numa crise econômica e política catastrófica), além de um sem-número de episódios localizados em diferentes pontos da periferia. A localização dessas ocorrências na organização espacial da economia capitalista levou alguns analistas a lhes atribuir um papel funcional: esta seria a forma pela qual o capitalismo neoliberal se reproduziria ampliadamente. Havia um fundo de verdade no argumento, mas ele minimizava a possibilidade de que, em algum momento, a fragilidade financeira fosse se traduzir em crise econômica grave na capital do sistema. Pois foi o que se deu com o colapso do mercado hipotecário nos Estados Unidos, em 2008.
O impacto social desta crise – que cedo se estenderia à Europa – é conhecido. Aqui, importa observar que ela exacerbaria os traços mais perversos do capitalismo neoliberal – aumento das desigualdades e da pobreza; degradação das condições de trabalho e de vida – alimentando um mal-estar continuado, que está na origem do Brexit, do trumpismo, e da expansão da extrema-direita por todo o mundo.
Em outro plano, o pilar econômico da ordem emergente era minado pelo dinamismo pujante de novos polos de acumulação na Ásia, que se integram gostosamente nos mercados globais, mas praticam um tipo de capitalismo próprio, marcado por forte intervenção estatal na economia. À medida que se expandem e ganham maior confiança em si mesmos, esses centros – penso sobretudo na China, mas também na Índia – passam a disputar espaços com as potências ocidentais nas organizações internacionais e o poder de definir regras para a economia.
Contudo, era o alicerce militar que apresentava falhas mais graves e mais prementes. Uma delas surgia como contraface não antecipada dos avanços tecnológicos que haviam conferido supremacia incontestável nesta esfera aos Estados Unidos. Vimos como as tecnologias de informação e comunicação eram de uso dual e estavam revolucionando também a economia. Cabe indicar agora que o trânsito entre as duas vias podia se fazer iterativamente.
É o que os estudos sobre a difusão do poder militar nos ensinam. Se o sistema de posicionamento global e a internet, em suas sucessivas gerações, desempenharam papel decisivo na dianteira militar alcançada pelos Estados Unidos sobre seus homólogos, ao se difundir na economia e na vida social criaram um ambiente propício para a ação de inimigos heterogêneos.
“The Internet is an accelerator for non-state actors. Non-state actors can leverage advances in information technology at almost no cost. NSAGs use information technology across many activities, such as propaganda, recruitment, tactical communications, weapons procurement, research, and organizational communication. All this can be done, and done almost always better, online.”[8]
A internet, porém, é apenas um exemplo conspícuo da conversão do uso civil ao militar. Casos mais banais, mas nem por isso menos importantes, são representados pelos dispositivos explosivos improvisados (IED, na sigla em inglês), fabricados com ingredientes de uso doméstico corrente e detonados por meio de rádios, ou celulares. Embora não comparáveis, os números a seguir nos dão uma ideia a respeito da efetividade deste tipo de armamento. De acordo com os dados do Departamento de Defesa, no curso da operação Liberdade do Iraque, iniciada em 2003 e concluída formalmente em 2010, descontadas as perdas por suicídio e acidentes, as forças americanas sofreram 35.429 baixas, entre mortos (3.482) e feridos (31.947).[9] Outro banco de dados indica que, dos 5.413 soldados americanos mortos em ação, com causa conhecida, no Iraque e no Afeganistão entre 2011 e 2020, cerca de 2.640 deles foram vítimas de IEDs (52% para o Iraque; 48,2% para o Afeganistão)[10] E estudo clínico realizado com amostra de 1.566 combatentes feridos em ação no Iraque constata que 38% deles foram atingidos por dispositivos explosivos improvisados.[11]
É comum na literatura de Relações Internacionais o erro derivado do que denomino concepção atuarial das relações militares de força. Compara-se gastos em defesa, ou em casos menos toscos “capacidades materiais”, e conclui-se daí que tal Estado tem poder militar maior do que outro. Por essa métrica os Estados Unidos – com um dispêndio superior ao gasto somado dos nove ou dez países que lhes seguem na lista dos maiores orçamentos em defesa, e com a indústria bélica tida como a mais avançada do mundo – seria imbatível. Deixa-se de considerar as variáveis organizacionais e as condições sociopolíticas envolvidas em seu exercício e as diferentes hipóteses de emprego da força. Nesta ótica, as sucessivas derrotas sofridas pelos Estados Unidos diante de inimigos muito mais fracos parecem surpreendentes.
Quando levamos em conta a complexidade envolvida na conversão entre recursos materiais e poder militar, podemos aquilatar adequadamente a relevância da proposição que se segue,
“… it was also the evolution of technology that enabled the weak to resort to asymmetric means. For it increasingly produces comparatively cheap and less sophisticated weapons systems which provide capabilities to strike back even against the most sophisticated forces. Consequently, the asymmetric advantages of the strong even among states do not necessarily translate into domination over an opponent any longer.”[12]
Foi uma lição dura, que os planejadores estratégicos americanos custaram muito – e pagaram um preço enorme – para aprender. Não aconteceu o mesmo em relação à outra falha no alicerce militar da ordem emergente. Esta foi imediatamente identificada como uma falha congênita, e desde o primeiro momento esse reconhecimento se constituiu em um dos fatores determinantes da conduta internacional dos Estados Unidos.
Muito simples. Guerra Fria foi a denominação cunhada para designar o que Thomas Schelling caracterizou como “jogo de motivos mistos”. Não estranha o fato de que o seu resultado tenha assumido a forma de uma situação igualmente mista: vitória parcial em uma “guerra” da qual a potência derrotada saía rota, humilhada, ofendida, mas não submetida. A União Soviética foi politicamente esmagada, fragmentou-se e, como tal, deixou de existir. Mas não foi militarmente vencida, o seu território não foi ocupado, e sua sucessora – a Rússia – preservou o aparato militar da potência caída, com o arsenal nuclear respectivo.
Ironicamente, mantiveram-no com a ajuda dos Estados Unidos. Em seus derradeiros momentos, a União Soviética contava com um arsenal dotado de cerca de 30-40.000 armas nucleares, estratégicas e táticas, estacionadas em 14 das 15 Repúblicas. Nessas condições, o colapso da URSS gerava o tríplice problema de garantir a integridade e consolidar o arsenal de armas táticas; evitar a emergência de novos Estados nucleares, abastecidos de mísseis balísticos intercontinentais, e impedir o vazamento de material físsil para Estados falidos, organizações criminosas, ou grupos terroristas.
Graham Allison e colegas estudaram minuciosamente como os Estados Unidos lidaram com esses três desafios, salientando o que ainda restava a fazer no que concernia ao último. Para o argumento esboçado aqui, no entanto, o fundamental está contido na informação que aparece no início de seu livro.
“The Bush administration and the Congress wasted no time in deciding that the United States could accept only one nuclear successor state to the Soviet Union – Russia; this was a view shared by most other states on the planet… In practice, however, the process of denuding Belarus, Kazakhstan, and Ukraine of the strategic nuclear weapons they had inherited proved to be no simple matter, particularly in the case of Ukraine.”[13]
Na ocasião, a Rússia estava mergulhada em crise econômica catastrófica, que lhe cobrou, em cinco anos, metade do PIB. Desde então, a vida política russa passou por várias fases, e o mesmo se deu com sua postura diante do mundo. Da cordura ocidentalista dos primeiros tempos, à assertividade do penúltimo Putin, diversas abordagens com vistas à integração na ordem emergente foram tentadas – inutilmente, como sabemos. A postura da Rússia varia num espectro amplo, o que permanece fixo, sempre igual a si mesmo é o pressuposto da política norte-americana, logo “Ocidental”: a Rússia não é confiável; pode ser bem tratada, receber afagos mais ou menos generosos, mas decisões fundamentais não podem ser com ela divididas.
Isso não se deve à má vontade dos dirigentes ocidentais, seus esquemas de percepção, suas ideias, sua “imagem do outro”… A dificuldade básica está ancorada neste dado duro da realidade. A ordem pós-Guerra Fria assentava-se no pressuposto do monopólio normativo (poder de gerar, interpretar e reinterpretar normas) e coercitivo do condomínio ocidental, sob o comando dos Estados Unidos. Pois bem, por seu potencial destrutivo a bomba atômica foi definida certa vez como a arma absoluta.[14] Independente de suas intenções reais ou proclamadas, a persistência de um Estado dotado de arsenal nuclear capaz de devastar os Estados Unidos, ainda que se condenasse nessa hipótese ao mesmo destino, lançava uma sombra sobre a ordem projetada.
3. A crise da ordem internacional do pós-Guerra Fria e a estratégia restauradora de Biden.
Falhas, ou se preferir contradições, da ordem internacional emergente no pós-Guerra Fria. Seus efeitos não tardaram a se manifestar.
Os deslocamentos sociais produzidos pela reorganização neoliberal do capitalismo – no centro e na periferia – engrossaram os movimentos migratórios e alimentaram um mal-estar difuso que cedo ganhou voz na nebulosa dos movimentos sociais antiglobalização os quais se projetaram na arena internacional durante a conferência da OMC, em Seattle, em novembro de 1999. Fortemente coreografados, os protestos encenados pelos ativistas na pacata cidade do noroeste americano não foram os responsáveis principais pelo fracasso do conclave, mas chegaram como um sinal precursor de problemas vindouros. A globalização e seus descontentes. Como se verá a seguir, eles reaparecerão mais tarde com outras máscaras e uma contundência incomparavelmente maior.
A reforma intelectual-moral e política prometida na nova ordem logo passou a enfrentar sérios percalços, também, especialmente nas duas zonas principais de conflito na política internacional: o Oriente Médio e os Bálcãs. Quanto aos primeiros, basta referir o fracasso do processo de paz israelo-palestino, depois do assassinato de Iitzak Rabin, em novembro de 1995, da eleição do ultradireitista Benjamin Netanyahu, em 1996, e das provocações de Sharon, que se elegeria a seguir ao cargo de Primeiro-Ministro no clima de tensão aguda adrede criado. A resultante final desse processo foi a montagem de um sistema de controle brutal que infirmava o discurso humanitário invocado pelos Estados Unidos em suas intervenções militares em outras partes do mundo. Como o fazia, embora mais silenciosamente, o regime de sanções imposto ao Iraque depois da Guerra do Golfo, que não provocou a queda de Saddam Hussein, objetivo pretendido, mas levou à destruição de milhares de vidas humanas (500 mil menores de 5 anos, entre 1991-1998, segundo relatório do Fundo de Crianças das Nações Unidas).[15] Combinados, os dois desenvolvimentos davam caução ao discurso que articulava, em suas várias vertentes, o islamismo político radical – a primeira e até então mais séria contestação levantada contra a ordem internacional emergente.
O outro teste enfrentado por esta em suas pretensões normativas ocorria nos Bálcãs. Mais particularmente na antiga Iugoslávia. Tida até o fim da Guerra Fria como modelo de caminho benigno (menos centralizado e menos repressivo) ao socialismo, a Iugoslávia desintegrou-se na esteira de guerras múltiplas. Eslovênia, Croácia, Bósnia… Nesta última, os embates foram mais prolongados e envolveram atrocidades tanto mais chocantes porquanto perpetradas em solo europeu. A guerra civil na Bósnia motivou a intervenção da OTAN e conduziu a um acordo intermediado pelos Estados Unidos que se revelou infrutífero. Em 3 de junho de 1999, a OTAN, sob comando americano, inicia a operação militar contra a Sérvia. Foram 79 dias de bombardeios incessantes, que levariam à queda e à prisão do presidente da Sérvia, Slodoban Milosevic, posteriormente condenado em Tribunal Penal Internacional ad hoc criado por decisão do Conselho de Segurança da ONU, em 1993, para julgar crimes contra a humanidade cometidos naquele conflito.
A questão do Kosovo representa um teste crítico para a ordem internacional emergente porque a decisão de atacar a Sérvia não foi tomada pela ONU, mas pela OTAN, com base em razões humanitárias estranhas aos fundamentos conceituais do direito internacional. Além disso, tendo feito aflorar divergências não tão sutis no condomínio ocidental – e na opinião pública dos países integrantes –, ela levou as relações dos Estados Unidos com a Rússia a um ponto máximo de tensão, que em determinado momento chegou próximo ao enfrentamento físico entre tropas dos dois países.[16]
Múltiplos testes, de variada natureza. Mas não se pode dizer que a ordem em construção tenha sido reprovada neles. Apesar do desgaste, ainda que não tão lustrosa, ela encerrava a década confiante e íntegra. Os grandes desafios estavam reservados para o novo milênio.
O primeiro a mencionar, em respeito à ordem da exposição, tem nome definido e inscrição temporal supostamente clara: a crise financeira global. Prenunciada já em meados 2007, quando se tornou evidente a situação precária do mercado norte-americano de dívidas hipotecárias, a crise manifestou-se abertamente em março, com a quebra do Bearn Stearns, quinto maior banco de investimento dos Estados Unidos, que fora antecedida de perto pela nacionalização temporária do Northen Rock pelo Banco da Inglaterra. O susto, porém, não durou muito, e pouco depois a estranha impressão que se tinha era de um rápido retorno à normalidade. A catástrofe ocorreu em 15 de setembro de 2008, quando o Tesouro americano decidiu deixar à sua própria sorte o Lehman Brothers, o quarto maior bancos de investimento, cuja falência, espalhou o pânico por todos os cantos do mundo, quebrando traumaticamente os laços de confiança que sustentam a cadeia do crédito. A conversão do choque financeiro em crise econômica foi quase imediata. Apesar da resistência surpreendente exibida pela China e pela Índia, e da rápida e vigorosa recuperação brasileira, a crise econômica continuava uma realidade sombria no começo da década seguinte – os países bálticos mergulhados em profunda recessão e a moeda europeia ameaçada em sua integridade pela situação calamitosa das contas públicas em vários países da zona do euro, a começar pela Grécia.
Poderia ter sido muito pior, não fossem as medidas adotadas pelo governo dos Estados Unidos para conter a propagação da crise e debelar-lhe os efeitos: operação compulsória de salvamento de bancos organizadas pelo Secretário do Tesouro de turno, Hank Paulson; resgate bilionário, com fundos públicos, da General Motors; linha de crédito aberta à autoridade monetária europeia pelo FED, que passava a atuar assim como banco de última instância global. Não posso me deter no tema. Relevante para os propósitos deste artigo é destacar o impacto social da crise: a recessão; o desemprego renitente; as perdas financeiras dramáticas das famílias de classe média; o espetáculo chocante de “sem tetos”, aos milhares, acampados em espaços vazios em meio à opulência das grandes cidades. E apontar os seus reflexos políticos: a alavancagem de um movimento de extrema-direita que aliava a indignação com a presteza do governo em gastar o dinheiro do distinto público a favor dos bancos e a rejeição profunda ao primeiro presidente negro na história dos Estados Unidos. O Tea Party manteve-se no centro da política americana durante o primeiro mandato de Obama, perdendo força a seguir. Mas os seus ativistas tiveram papel decisivo na eleição de Donald Trump, em 2016, e se mantiveram como um ingrediente fundamental do trumpismo.[17]
Não se trata de um fenômeno de política doméstica. Com o duplo slogan que sintetizava sua plataforma eleitoral – America First, e Make America Great Again –, Trump operou um giro na política externa da superpotência, que rompia frontalmente com o consenso bipartidário que a informou desde o final da Guerra Fria e, nesse sentido, presidiu a construção da ordem internacional criada sob sua batuta.
Além disso, Trump converteu-se em catalizador de movimentos de extrema-direita por todo mundo, os quais em suas variadas modalidades contestavam (e contestam!) as crenças embutidas no discurso e nas práticas da nova ordem internacional, denunciadas como expressões do liberal-globalismo.
Nesse sentido, a grande crise financeira de 2008 está significativamente conectada a processos que minavam a ordem internacional em gestação em dois planos, pelos efeitos corrosivos sobre suas bases de sustentação interna e pelo espaço que abriam para a contestação direta de suas pretensões normativas.
Antes disso, porém, a ordem internacional já havia sofrido o choque do atentado de 11 de setembro, com seus desdobramentos, a guerra no Afeganistão e no Iraque. A rigor, foi uma série de choques: o estupor causado pela descoberta repentina da vulnerabilidade – os ataques em Nova York e em Washington foram os primeiros sofridos pelos Estados Unidos em seu território desde a guerra contra os ingleses em 1812; a divisão na Aliança Atlântica no debate sobre as supostas armas de destruição em massa no Iraque; a decisão de invadir este país, mesmo sem o aval da ONU, cujo Conselho de Segurança havia rejeitado pouco antes a resolução apresentada com este fim pelos Estados Unidos – com o voto da França, da Alemanha… e da Rússia. A “guerra ao terror” parecia justificar os atos mais extremados, mas seu impacto negativo sobre a legitimidade das instituições da ordem internacional vigente era facilmente perceptível.
Mais importante do que o custo político foi a surpresa reservada aos Estados Unidos e aliados no campo de batalha. Deslanchada em 19 de março de 2003, a Operação Liberdade do Iraque não encontrou grande resistência e, três semanas depois, os tanques norte-americanos adentravam Bagdá. As imagens das estátuas derrubadas simbolizando a queda do regime do Baath circularam o mundo, que viu pouco depois, capturado em um esconderijo subterrâneo, a figura arrogante de seu líder agora reduzido a um trapo. Nenhuma reserva no tratamento dado ao inimigo, nenhuma tentativa de cooptar parte das elites do regime deposto na tarefa de construir uma nova ordem política. A resposta veio meses depois, sob a forma da insurgência.
O Iraque se somava, assim, ao Afeganistão, ocupado por tropas da OTAN há mais de dois anos, desta feita com autorização das Nações Unidas. Nos dois casos, a Forças aliadas se viram envolvidas em longo e desgastante conflito com forças irregulares, que se valiam dos expedientes milenares da guerra assimétrica para infligir custos (objetivos e políticos) crescentes às forças de ocupação. Em ambos, os Estados Unidos e seus aliados fizeram o possível para contê-los, mediante o uso generalizado de companhias privadas de serviços militares e do aliciamento de forças locais – estratégia usual na política de impérios passados. Nada disso bastou para garantir o sucesso das empreitadas: os Estados Unidos foram obrigados a se retirar oficialmente do Iraque, que passou a girar na órbita do Irã, seu principal rival estratégico na região, transformando-se mais tarde em território disputado pelo ISIS (acrônimo inglês de Estado Islâmico do Iraque), organização jihadista criada na guerra contra o invasor ocidental; e acabou por abandonar o Afeganistão, assistindo impotente ao avanço das tropas do Taliban, já no começo de administração Biden.
O terceiro evento de implicações sistêmicas a assinalar foi a inflexão observada na Rússia com a ascensão de Vladmir Putin, depois das experiências amargas da guerra interna na Chechênia e da humilhação face às forças da OTAN no Kosovo. A mudança no início não foi notável, em vista da prioridade dada à superação dos problemas internos e à solidariedade aos Estados Unidos logo após os atentados de 11 de setembro. Mas ela ficou patente em 2008, quando a Rússia reagiu militarmente, de forma fulminante, à tentativa do governo georgiano de assumir pela força o controle da província separatista da Ossétia do Sul. Esse movimento, que consternou os planejadores estratégicos nos Estados Unidos e alhures, se deu no contexto da expansão da OTAN até à fronteira da Rússia, e da instalação de um sistema antimísseis na Polônia, o qual ao afetar seriamente seu poder dissuasivo expunha a Rússia a uma situação de grande vulnerabilidade.
A ordem internacional emergente depois da Guerra do Golfo assentava-se no pressuposto de que os Estados Unidos e aliados podiam ser fustigados por atores não-estatais e precisavam se preparar para derrotá-los, mas não sofriam ameaças mais sérias por parte de outras potências. Os acontecimentos da Geórgia mostraram ao mundo que tal avaliação era equivocada. A partir daí o liberalismo internacionalista, guiado pela ideia reguladora da Cosmópolis, encontrava um desafiante de peso. O qual logo depois se lançava em amplo programa de reforma militar para se dotar dos meios correspondentes à sua política soberana.[18] A disposição russa de empregá-los manifestou-se com assertividade notável na crise ucraniana, em 2014, que culminou na anexação da Crimeia, e numa crise prolongada no relacionamento entre a aliança Ocidental e a Rússia[19]. Desde então, esse conflito vem se constituindo em uma das determinações gerais mais importantes da configuração geopolítica do mundo em que vivemos, fato patenteado pela eclosão da guerra ora em curso na Ucrânia.
O quarto desenvolvimento transformador em escala global foi a continuidade do avanço econômico da China, no período aberto pela crise financeira de 2008, sua rápida ascensão nos setores de tecnologia de ponta – de uso dual (civil e militar) – e a crescente assertividade de sua política exterior a partir de 2013, sob o comando de Xi Jinping. Não obstante o elevado grau de integração econômica entre China e Estados Unidos – e o fato de a inserção da primeira na economia capitalista internacional ter se dado “a convite” da superpotência –, o crescimento acelerado da China, com as propriedades estruturais que caracterizam a sua economia (coexistência entre um setor privado fortemente internacionalizado e amplo setor bancário e produtivo estatal), cedo despertou inquietações nos círculos dirigentes dos Estados Unidos. Inicialmente focadas em aspectos pontuais de política econômica (manipulação cambial) e em práticas comerciais (violações de direitos de propriedade intelectual, por exemplo), depois da crise de 2008 elas adquirem clara conotação geopolítica. É sob esse prisma que deve ser entendido o pivô asiático anunciado pela então Secretária de Estado Hillary Clinton, em 2010.
Assentada na ampliação e estreitamento de laços com Estados refratários à influência chinesa na região, o coração da estratégia americana era o projeto da Parceria Transpacífica – TPP, no acrônimo em inglês. Tratava-se, claramente, de estabelecer um processo seletivo de geração de normas internacionais mais restritivas do que as convencionadas em negociações multilaterais no âmbito da OMC, a serem generalizadas posteriormente via adesão forçada ao conjunto do pacote. A China (mas também a Índia) foi mantida a distância desse processo, que culminou na assinatura do acordo, em outubro de 2015.
Como se sabe, o Congresso dos Estados Unidos não ratificou o acordo, que nem sequer foi submetido à sua apreciação. O governo Trump abandonou a estratégia de contenção indireta da China em prol de uma abordagem agressiva, aplicada via negociações bilaterais.
A reorientação política, porém, não obscurece o forte elemento de continuidade no plano estratégico: ligando os dois períodos há uma mudança drástica nos Estados Unidos quanto ao papel da China no mundo, que passa a ser encarada como rival estratégico dos Estados Unidos, num consenso bipartidário com ampla aceitação na opinião pública americana. Consenso que se apoiava no reconhecimento tardio de que a China avançava celeremente na conquista de setores de tecnologia de ponta o que a qualificava para ocupar a curto ou médio prazo, no plano militar igualmente, a posição de grande potência.[20]
A inflexão verificada na postura chinesa com Xi Jinping radicaliza uma correção de rumo incipiente que já se ensaiava há anos, a partir das lições extraídas pela elite chinesa da guerra movida pela OTAN na Iugoslávia. Ela se contrapõe à tentativa de contenção (ou socialização coercitiva, para usar a sugestiva expressão cunhada por Andrew Hurrell para interpretar a mudança no paradigma da política externa brasileira nos anos 1990[21]), em dois planos interligados. No campo da diplomacia econômica, com o megaprojeto do One Belt One Road, que oferece a seus parceiros (na Ásia, no Oriente Médio e na Europa) a oportunidade de se conectarem com o mercado chinês através de gigantescos planos de investimento em infraestrutura, generosamente financiados pelo Banco Asiático de Desenvolvimento, e outras instituições financeiras chinesas). No plano militar, com um significativo incremento no orçamento de defesa, cujas expressões materiais mais visíveis são a ampliação da frota de naves de médio porte da Marinha de Guerra, e a criação de uma frota de porta-aviões (o terceiro dos quais, lançado ao mar em junho de 2022, projetado e construído na própria China)[22] e a expansão impactante de seu arsenal nuclear[23]. Particularmente preocupante na grande estratégia chinesa para os Estados Unidos era a ênfase posta na fusão da tecnologia civil e militar. Objetivo claramente enunciado em documentos oficiais de caráter público, esta diretiva refletia o aprendizado dos planejadores chineses no estudo atento da experiência americana.[24]
Compreende-se, assim, a prioridade conferida ao desenvolvimento científico-tecnológico na estratégia do governo Biden e o seu esforço metódico por bloquear o acesso de empresas chinesas a bens requeridos para a fabricação de produtos de alta tecnologia – em particular, componentes de microprocessadores e equipamentos avançados para sua produção. Definindo a China como competidor estratégico com “intenção e, cada vez mais a capacidade de remodelar a ordem internacional (a seu favor)”, o governo Biden empenha-se em recompor aliança atlântica, esgarçada pela política de seu antecessor, e inclui entre os objetivos centrais de sua Estratégia de Segurança Nacional a implementação de programas ambiciosos de política industrial, com ênfase na cadeia produtiva de semicondutores e nos setores de computação avançada, comunicação, tecnologias de energia limpa e biotecnologia. Inclui também entre os seus objetivos centrais o fortalecimento da democracia, que implica o reconhecimento dos resultados das eleições, admitindo que “We have not always lived up to our ideals and in recent years our democracy has been challenged from within.”[25]
A securitização de temas de política industrial – até bem pouco tempo atrás, anátema para os neoliberais – e de questões controversas de política doméstica, como a legitimidade dos resultados e os procedimentos eleitorais – são indicações eloquentes da situação crítica vivida pelos Estados Unidos, pelo menos aos olhos de sua elite – ou da fração dela que ora empolga o poder.[26]
4. Mundo em Trânsito. Presente prolongado … além do horizonte
Pesquisa prospectiva realizada com especialistas em relações internacionais brasileiros quase vinte anos atrás apontou, como cenário mais provável em 2022, a “desconcentração conflituosa” do poder mundial – os outros foram batizados assim: “multipolaridade benigna”; “unipolar consolidado” e “ordem liberal cosmopolita”. No cenário mais provável, a primazia dos Estados Unidos na economia e na política mundiais estaria reduzida pela ocorrência de um desses eventos, ou de sua combinação: fortalecimento econômico e militar da China; aprofundamento da União Europeia. A pesquisa identificava ainda a ascensão da Índia e a integração da Rússia à UE como fatores que reforçariam aquele resultado. Não vem ao caso examinar aqui as hipóteses causais que levaram a tal conclusão. Mas creio ser interessante rever como o cenário tido como provável era caracterizado.
“A transição para um sistema dotado de vários polos de poder é o elemento central neste cenário. Mas o elemento que o distingue é a maneira como ela se processa. Neste cenário, a desconcentração se opera de forma conflituosa, pela emergência de competidores com meios e disposição para contestar o papel de liderança da superpotência na condução dos assuntos internacionais.”[27]
A referência se justifica, a meu ver, porque o futuro antecipado em 2004 é agora o nosso presente, o que nos permite cotejar as projeções feitas no passado com os desenvolvimentos reais que se desenrolam à nossa vista.
O artigo que expunha os resultados da pesquisa completava o desenho do cenário mais provável em 2022 apontando cinco tendências que se manifestariam com força, caso ele se materializasse.
1) “aumentam “as tensões entre os principais atores da política internacional, que se lançam em jogos de aliança envolvendo também potências pequenas e médias.”
2) “conflitos étnicos e religiosos geram situações críticas, mas as discrepâncias entre as grandes potências inibem as intervenções internacionais para saná-las.”
3) as tensões no Oriente Médio continuam elevadas, (mas) “os Estados Unidos reduzem sua presença militar na região, pela dificuldade de arcar com os (seus) custos econômicos e políticos.”
4) “em outras regiões … conflitos étnicos e religiosos criam condições favoráveis para organizações terroristas, que intensificam sua atividade.”
5) “No plano das relações econômicas, as divergências entre os principais atores levam à multiplicação de acordos minilateralistas, em detrimento do
sistema multilateral.”
6) “Em todos os níveis, decresce a importância e a participação das ONGs em organismos multilaterais, que passam a enfrentar sérias dificuldades.”
Por economia de espaço, deixo ao leitor a prerrogativa de conferir se – e em que medida – as tendências descritas se verificaram. Ao invés disso, chamo a atenção para a grande lacuna contida no desenho daquele cenário. Com efeito, ele previa a multiplicação de conflitos e o apelo recorrente à violência nas relações internacionais. Mas não contemplava a realidade mais perturbadora do nosso presente: a hipótese do enfrentamento direto entre as grandes potências, com o seu corolário, a possibilidade objetiva da hecatombe nuclear.
No momento em que escrevo não se trata mais de uma hipótese, mas de um fato. A guerra na Ucrânia não contrapõe uma grande potência militar (a Rússia) e o país vizinho que luta desesperadamente para preservar sua independência. Desde o início, a Ucrânia tem sido o teatro de operações militares de uma guerra que opõe a Rússia e o bloco Ocidental comandado pelos Estados Unidos. Foi o que Annalena Baerbock, Ministra das Relações Exteriores da Alemanha, reconheceu em reunião plenária do Parlamento Europeu ao rebater as críticas a seu país pela relutância em fornecer tanques Leopard à Ucrânia com a frase desastrada: “… não fazemos o jogo da culpa na Europa, porque estamos lutando uma guerra contra a Rússia, e não uns contra os outros.”
Em guerra contra a Rússia, a Europa parece estar também em rota de colisão com a China. Testemunham o fato a propaganda agressiva difundida pelos meios de comunicação, a atmosfera de suspeita que passa a cercar o intercâmbio cultural com este país e as medidas restritivas de rigidez crescente adotadas contra suas empresas no Velho Continente. Rússia e China. Unindo as duas rejeições o discurso fortemente ideologizado, que faz apelo aos ideais dos direitos humanos e da democracia, e os pesados custos econômicos e sociais da ruptura (ou enfraquecimento, no caso chinês) dos laços com dois parceiros fundamentais em qualquer estratégia de afirmação autonômica. Com eles, a Europa se lança em um conflito ciclópico em que tem tudo a perder, como caudatária dócil dos Estados Unidos.
Este o principal desacordo entre o real e o previsto. Em 2004, um ano depois de ter sediado forte reação à política americana para o Iraque, as veleidades europeias de uma política externa e de defesa comuns ainda pareciam críveis. Tendo esbarrado sempre na resistência dos Estados Unidos, tais pretensões reduzem-se hoje a lembranças nostálgicas, alimentadas ocasionalmente por discursos edificantes entoados na língua de Molière.
O conglomerado Ocidental (que inclui ainda a Austrália e o Japão) X Rússia e China. Uma Nova Guerra Fria? Não exatamente. A semelhança entre o mundo de hoje e o que prevaleceu na segunda metade do século passado é superficial. Não mais dois blocos separados ideológica e economicamente. Não mais a certeza do absurdo da guerra entre as duas superpotências.
Mas a diferença principal está nas relações de força no campo internacional. Os Estados Unidos continuam como maior economia do mundo (embora não mais, se considerado o PIB em paridade de poder de compra) e seu poder militar – que inclui também o seu sistema de alianças e a rede sem igual de bases espalhadas por todos os quadrantes do mundo) – continua formidável, ainda que não lhe garanta vitórias certas em todas e quaisquer hipóteses de guerra, e esteja ficando para trás em alguns itens importantes, como sistemas de misseis hipersônicos, por exemplo, nos quais a vantagem da Rússia e da China é indiscutível. Mesmo assim, em perspectiva de longo prazo, seu peso relativo encolheu muito. Não apenas na comparação com a China – rival estratégico cujo avanço faz e fará todo o possível por conter, como prioridade número um de sua grande estratégia – mas em relação ao resto do mundo.
O qual percebe claramente que a superpotência está lançada em uma guerra defensiva, na tentativa algo desesperada de inverter tendências estruturais profundas para manter indefinidamente a supremacia que hoje lhe foge aos pés. Por isso, a maioria dos países na Ásia, na África, no Oriente Médio e na América Latina não se sensibiliza facilmente pela retórica que divide ontologicamente o mundo entre democracias e autocracias e refugam a cobrança para envolver-se em conflitos que não lhes dizem respeito diretamente, cientes de que o significado dos valores invocados para esse efeito não é unívoco e está em disputa na casa de seus promotores autoproclamados.
Presente prolongado. Nada indica que a situação de alta conflitualidade atual esteja próxima do fim. Nesse sentido, o futuro que podemos antever é de um trânsito turbulento em que conhecemos o estado inicial mas não temos ideia sobre o estado de coisas que haverá depois da travessia.
Mas para agir neste presente tão perigoso, precisamos visar além do horizonte. Nesse movimento, pessimismo e otimismo se fundem e a utopia se converte em condição necessária do realismo.
Notas
[1] Lamothe, Dan, “U.S. General warns troops that war with China is possible in two years”, The Washington Post, 27/01/2023.
[2] Bush, George, Address Before a Joint Session of the Congress on the State of the Union, January 29, 1991.
[3] O papel desempenhado por esses organismos foi salientado no livro que dediquei à análise do processo de reestruturação capitalista em curso no último quartel do século passado, em perspectiva comparativa. Cf, Velasco e Cruz, S. Trajetórias. Capitalismo Neoliberal e Reformas Econômicas nos Países da Periferia. São Paulo, Editora da UNESP, 2007.
[4] Para uma análise do processo que leva à criação da OMC e aos impasses que ela vive nos dias atuais, Cf. Velasco e Cruz, S. Estados e Mercados. Os Estados Unidos e o sistema multilateral de comércio. São Paulo, Editora da UNESP, 2017.
[5] Discuti diferentes aspectos deste tema em dois textos. Cf. “Democracia e Ordem Internacional. Reflexões a partir de um país grande semiperiférico”, in Velasco e Cruz, S. Globalização, Democracia e Ordem Internacional. Ensaios de teoria e história. Campinas e São Paulo, Editora da UNICAMP/Editora da UNESP, 2004, pp. 195-245, e “Notas sobre o paradoxo dos direitos humanos e as relações hemisféricas”, in Velasco e Cruz, S. Contracorrente. Ensaios de teoria, análise e crítica política. São Paulo, Editora da UNESP, 2019, pp. 25-44.
[6] Ruttan, Vernon W. Is War Necessary to Economic Growth? Military Procurement and Technology Development, Oxford/New York, Oxford University Press, 2006.
[7] Mahnken, Thomas G. Technology and the American Way of War Since 1945. New York, Columbia University Press, 2008, p. 222.
[8] Knoll, David Louis. Twenty-first Century Diffusion Patterns: How Military Innovation Spreads Among Non-State Armed Groups. PhD Thesis, The Fletcher School of Law and Diplomacy, 2015, p. 2.
[9] Goldberg, Matthew S. Updated Death and Injury Rates of U.S. Military Personnel During the Conflicts in Iraq and Afghanistan, Working Paper Series, Congressional Budget Office, 2014.
[10] Overton, Iain. A decade of global IED harm reviewed AOV- Action on Armed Violence, 15/10/2020.
[11] Owens, Brett D. et alli. “Combat Wounds in Operation Iraqi Freedom and Operation Enduring Freedom”, The Journal of Trauma_Injury, Infection, and Critical Care, Vol. 64, N. 2, 2008, pp. 295-299.
[12] Sieg, Hans Martin. How the Transformation of Military Power Leads to Increasing Asymmetries in Warfare? From the Battle of Omdurman to the Iraq Insurgency”, Armed Forces & Society, Vol. 40(2), 2-13, pp 332-356 (p. 340).
[13] Allison, Graham T. et alli. Avoiding Nuclear Anarchy. Containing the Threat of Loose Russian Nuclear Weapons and Fissile Material. Cambridge, Mass., The MIT Press, 1996, p. 3.
[14] A expressão intitula o texto seminal de Brodie, precursor do debate sobre a estratégia da dissuasão nuclear nos Estados Unidos. Cf. Brodie, Bernard (Ed.). The Absolute Weapon. Atomic Power and World Order, Harcourt, Brace and Company, 1946. Para uma apresentação brilhante da diferença entre a lógica da guerra convencional e da guerra nuclear, Cf. Waltz, Kenneth, “Nuclear Myths and Political Realities”, The American Political Science Review, Vol. 84, No. 3 (Sep., 1990), pp. 731-745.
[15] Cf. Murden, Simon W. The Problem of Force. Grappling with the Global Battlefield, Boulder, Col., Lyme Rienner Publishers, 2009, p. 67. Para análise detida do tema, Cf. Mueller, John & Mueller, Karl “Sanctions of Mass Destruction”, Foreign Affairs, Vol. 78, No. 3, 1999, pp. 43-53.
[16] Cf. Primakov, Yevgeny, Russian Crossroads. Toward the New Millenium, New Haven & London, Yale University Press, 2004, pp. 266 e segs. e Talbott, Strobe, “Putinism: The Backstory” The Sixt Annual Ernst May Memorial Lecture, in Burns, Nicholas and Johnathon Price (eds.), The Crisis With Russia, The Aspen Institute, 2014.
[17] Nem sempre reconhecida, esta conexão é explorada em trabalhos que discuti em Velasco e Cruz, Sebastião, “Uma casa dividida. Donald Trump e a transformação da política americana”, in ____ & Bojikian, Neusa M. P. (orgs.) Trump: Primeiro Tempo. Partidos, políticas, eleições e perspectivas. São Paulo, Editora da UNESP, 2019, pp. 11-43.
[18] Cf. Almeida Neto, Getúlio Alves de. O Poder pela Força: uma análise da reforma militar russa e sua relação com o posicionamento internacional do país. Dissertação de Mestrado, Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UNESP/ UNICAMP/ PUC-SP), 2021.
[19] Tratei da internacionalização da crise ucraniana de 2014 no artigo, “Ser ou não Ser? Ucrânia, Rússia e os Dilemas da Política Externa Alemã”, Carta Internacional (ABRI: Associação Brasileira de Relações Internacionais), Vol. 8, No. 2, 2013, pp. 58-80.
[20] Cf. Graham Allison et alli. The Great Tech Rivalry: China vs the U.S., Avoiding Great Power War Project Belfer Center for Science and International Affairs Harvard Kennedy School, 2021; Cordesman, Anthony H., China: The Civil-Military Challenge, Volume One of a Graphic Net Assessment, Washington, DC, Center for Strategic and International Studies-CSIS, 2021; Cordesman, Anthony H., Major Powers and Strategic Partners. A graphic net assessment, Washington, DC, Center for Strategic and International Studies-CSIS, 2022.
[21] Hurrell, Andrew. Progressive Enmeshment, Hegemonic Imposition or Coercive Socialization? Understanding Policy Change in Brazil. Working Paper, 1995.
[22] Cf. Hille, Kathrin, “China’s focus on giant aircraft carriers makes it vulnerable to missile threat”, Financial Times, 11/08/2021. “Lançado ao mar o Fujian, terceiro porta-aviões da Marinha Chinesa”, Revista Força Aérea, 17/06/2022.
[23] Brands, Hall, “China’s Nuclear Buildup Changes Balance of Power”, Bloomberg Opinion, 7/09/2020. Brown, Gerald C., “Understanding the Risks and Realities of China’s Nuclear Forces”, Arms Control Today, 06/2021; “China’s Nuclear Forces Swell: a Tri Polar World?” Cheng, Dean, The Heritage Foundation, 4/08/2021.
[24] Cf. Manoj Joshi, “China’s Military-Civil Fusion Strategy, the US Response, and Implications for India, ORF Occasional Paper No. 345, 2022, Observer Research Foundation. Resultado atualizado do monitoramento americano dessa política pode ser encontrado em Military and Security Developments Involving People’s Republic of China. A Report to Congress. Department of Defense, 2022.
[25] The White House, National Security Strategy, October 12, 2022, p. 16.
[26] Sobre a eleição presidencial americana de 2020 como eleição contestada e o impacto da polarização política que assim se manifestava na política internacional do Estados Unidos, Cf. Velasco e Cruz, Sebastião C., “Estados Unidos 2020: uma eleição não como as outras. Implicações internacionais.”, in ____ & Bojikian, Neusa Maria P. (Orgs.), De Trump a Biden. Partidos, políticas, eleições e perspectivas, São Paulo, Editora da UNESP, 2019, p. 279-289.
[27] Velasco e Cruz, S. & Sennes, R., “O Brasil no Mundo. Conjecturas e Cenários”, Estudos Avançados, V. 20, n. 56, 2006, p. 29-42, republicado em Velasco e Cruz, S. O Brasil no Mundo: ensaios de análise política e prospectiva. São Paulo, Editora da UNESP, 2010, p. 133-146 (p.138).
Artigo originalmente publicado no Observatório Político sobre Estados Unidos (OPEU)
Coordenador do INCT-INEU. Professor de Ciências Políticas da Unicamp e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). É autor, entre outros, de Contracorrente: Ensaios de teoria, análise e crítica política (2020, Unesp) e Estados e mercados: Os Estados Unidos e o sistema multilateral de comércio (Unesp, 2017).