O boicote a Israel e a carta de Roger Waters a Caetano Veloso
A polêmica em torno da declaração de José Genoino nos traz de volta à realidade do movimento BDS (Boycott, désinvestissement et sanctions). Para lutar contra a ocupação da Cisjordânia e o apartheid que Israel impõe aos palestinos que têm cidadania israelense (20% da população do país) – que os supremacistas judeus chamam de «árabes israelenses» para negar a identidade palestina do povo autóctone – foi criada, há alguns anos, a campanha BDS, um movimento internacional que tem como objetivo boicotar Israel, sua política colonial e de apartheid. O BDS promove boicote não somente econômico, mas também universitário, cultural e político contra Israel, seus cidadãos e empresas.
Desde o início, o boicote cultural teve o apoio do músico Roger Waters, do escritor John Berger, da ativista Arundhati Roy, do cineasta Ken Loach, do cineasta franco-israelense Eyal Sivan, bem como de duas outras personalidades já desaparecidas: o uruguaio Eduardo Galeano e o cineasta Jean-Luc Godard. Para boicotar Israel, os cineastas citados decidiram não participar dos festivais de cinema israelenses.
Em setembro de 2009, o Conselho Ecumênico das Igrejas declarou estar convencido da necessidade de «um boicote internacional dos bens produzidos nas implantações israelenses ilegais (colônias) nos territórios ocupados». O Conselho Ecumênico publica no seu site o apelo lançado em 11 de dezembro de 2009 pelo coletivo Kairos Palestina: «A moment of Truth ; A Word of Faith, Hope and Love from the Heart of Palestinian Suffering» (este título faz referência explícita a um documento datado de 1985 e publicado na África do Sul para lutar contra o apartheid). Entre os signatários do document Cairos, está o centro teológico palestino Sabeel.
O regime racista da África do Sul
O movimento de boicote contra o regime racista da África do Sul levou ao fim do apartheid, como todos sabemos. O antigo líder antiapartheid, Nelson Mandela – considerado um terrorista pelos supremacistas brancos que o condenaram a mais de 20 anos de prisão – mostrou como a história dos oprimidos obedece a um tempo lento no qual a Justiça acaba por se impor. O “terrorista” Mandela foi eleito presidente de seu país depois de ganhar o Prêmio Nobel da Paz no ano anterior.
Muitos dos que se opõem ao boicote contra Israel preferem ver no BDS um movimento antissemita, que eles comparam aos boicotes dos nazistas aos comerciantes judeus. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. O boicote a Israel preconizado pelo BDS não é contra um grupo étnico ou religioso, mas contra um Estado que esmaga os palestinos e coloniza suas terras.
Mesmo não tendo nenhum caráter racista, os partidários do boicote a empresas israelenses e a acordos bilaterais entre universidades europeias e israelenses são frequentemente denunciados na Justiça por partidários de Israel.
O movimento BDS combate a colonização da Cisjordânia e de Jerusalém Leste, luta pela igualdade de direitos para os palestinos que têm nacionalidade israelense e pelo retorno dos refugiados palestinos a suas terras.
O BDS age através do boicote de todas as empresas e produtos israelenses e na sua criação estão o cineasta Ken Loach e o bispo Desmond Tutu, entre muitos outros. Sabe-se que foi graças ao boicote e sanções que o regime do apartheid na África do Sul foi vencido.
Os defensores de Israel costumam acusar os partidários do BDS de ameaçar a existência do Estado judaico. Eles ousam defender o sistema judiciário e a sociedade israelense como igualitários. Apesar de uma realidade muito bem documentada que prova o contrário, Israel é frequentemente citado por eles como “a única democracia do Oriente Médio”.
A «Terceira Conferência Internacional Sobre o racismo» foi patrocinada pela Unesco e realizada em Durban, África do Sul, de 31 de Agosto a 8 de Setembro de 2001. Nela, alguns países tentaram ressuscitar a resolução 3379 da Assembleia Geral das Nações Unidas intitulada «Eliminação de todas as formas de discriminação racial» que afirmava que «o sionismo é uma forma de racismo e de discriminação racial». A resolução havia sido adotada em 1975 e revogada em 1991. Os Estados Unidos e Israel retiraram-se da Conferência e a moção que igualava o sionismo a uma forma de racismo não pôde ser votada.
Em setembro de 2003, durante a Conferência Internacional da Sociedade Civil de Apoio ao Povo Palestino, na ONU, Avia Pasternak, representante de Taayoush – organização israelense que milita pela paz entre Judeus e árabes – declarou-se favorável a um boicote das sociedades internacionais que têm instalações de produção nas colônias judaicas dos territórios palestinos ocupados por Israel.
Esta campanha foi apoiada por cidadãos israelenses (Naomi Klein, Neve Gordon, Eyal Sivan, Yael Lerer) e federações judaicas como a JEPJ e UFPJ (entre eles Michel Warschawski), pelo Movimento contra o racismo e pela amizade entre os povos (MRAP), além do então presidente da Assembleia Geral da ONU, Miguel d’Escoto Brockmann, por universidades britânicas, canadenses, francesas ou libanesas, por políticos de esquerda e por sindicatos canadenses, britânicos e sul-africanos.
Boicote contra a Rússia, arma da UE e dos Estados Unidos
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, a UE e os Estados Unidos decretaram um pacote com boicote e sanções drásticas à Rússia e a todas as empresas russas. Por que contra Israel esse tipo de ação se torna um escândalo?
Ao se expressar, José Genoíno apenas defendeu um boicote já existente, sem citar o BDS.
Por que a África do Sul foi boicotada e ninguém acusou os países que apoiaram o boicote de racismo anti-negros? Por que ninguém acusou a União Europeia e os Estados Unidos de racismo antirusso quando decretaram o boicote como resposta à invasão à Ucrânia?
Por que propor sanções contra Israel seriam prova de antissemitismo? A colonização, o apartheid, os bombardeios em Gaza há mais de 100 dias e os assassinatos diários de palestinos por colonos na Cisjordânia colocam Israel do lado dos «países delinquentes» (rogue states) como nomeou George Bush a Síria, o Iraque e o Irã em 2003.
Não, nesta história Israel não é a vítima.
Acusar pessoas e instituições de antissemitismo é o expediente mais fácil para calar os protestos contra o horror dos bombardeios diários à população civil de Gaza, vítima de um genocídio e de uma nova limpeza étnica que pretende “terminar o trabalho de Ben Gurion de 1948», como disse um ministro fascista do governo Netanyahou.
A acusação de antissemitismo é «a intolerável chantagem», tese do livro de artigos de autores judeus, entre eles Étienne Balibar e Judith Butler, «Antissemitisme: l’intolérable chantage», que traduzi em 2004 para o português.
Penso que José Genoíno quis defender o boicote a Israel e não a judeus, a indivíduos. O BDS é internacional, existe e é praticado em dezenas de países e é utilizado contra empresas israelenses que se envolvem no apartheid dos palestinos e na colonização insidiosa, protegida pelo exército e pelo governo Netanyahou, bem como por todos os que o precederam.
Para concluir, relembro que em 2015, quando Caetano Veloso ia se apresentar em Tel Aviv, o cantor Roger Waters, conhecido por sua militância pela causa palestina, escreveu a carta abaixo:
Querido Caetano,
Obrigado por usar seu tempo para responder à minha carta. Diálogo é realmente importante. Eu vou responder aos pontos que você levantou. Temo que você possa estar vendo a política israelense com lentes cor-de-rosa. O fato é que, por muitas décadas, desde a Nakba (catástrofe, expropriação do povo palestino) em 1948, as políticas coloniais e racistas de Israel têm devastado a vida de milhões de palestinos.
O movimento BDS, ao qual estou pedindo que se junte, é um movimento global que demanda liberdade, justiça e igualdade para os palestinos. Está aumentando rapidamente por causa da crescente consciência internacional sobre a opressão que os palestinos têm suportado nesses últimos 67 anos. O atual regime de extrema direita de Netanyahu é apenas o último governo perpetrando atos cruéis de injustiça e colonização. Mas isso não é um problema apenas da direita. Foi, na verdade, o partido de esquerda Trabalhista que fundou o programa de assentamentos ilegais e que também falhou em acabar com a ocupação das terras palestinas e fazer a paz.
Em sua carta, você diz que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir acreditavam em Israel antes de morrer. Até pode ser, mas isso foi naquele tempo, talvez à época eles não soubessem ou não compreendessem a brutalidade da ocupação das terras palestinas e a subjugação de seu povo. No entanto, eu sei o seguinte, os assoalhos respingados de vinho e café do Café Flores e do Les Deux Magots hoje reverberariam com o som de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir revirando-se em seus túmulos ao ouvirem seus nomes usados em vão e pregados ao mastro da ocupação e opressão do povo palestino.
Você menciona o arcebispo emérito Desmond Tutu, ele está entre os que abraçam o BDS, já que ele observou as ações de Israel e tem profunda empatia com o povo palestino. Há, como ele apontou a você, um apartheid nos territórios ocupados que é tão definitivo e desumanizante como o que havia na África do Sul do apartheid, quando leis de passagem infames e racistas estavam em prática. Assim como na África do Sul, palestinos e seus direitos legais são definidos por sua origem racial ou religiosa. Você consegue imaginar uma coisa dessas no Brasil ou na Inglaterra ou nos EUA ou na Holanda ou no Chile? Não. Por que não?
Porque é inaceitável, é por isso que não.
Caetano, se posso fazer uma pergunta, por que você não rejeitaria a cumplicidade com tamanha injustiça agora, assim como você certamente teria rejeitado o racismo branco contra a população negra da África do Sul nos anos 80?
Sua carta sugere que você acredita que seu futuro show em Tel Aviv pode ajudar a mudar a política israelense. Eu sugeriria que essa é uma posição ingênua. Infelizmente, não é apenas o governo israelense que precisa de uma mudança de mentalidade. Pesquisas indicam que impressionantes 95% do público judeu israelense apoiaram os bombardeios a Gaza em 2014 (561 crianças mortas), 75% não apoiam um Estado palestino baseado nas longamente negociadas fronteiras de 1967, e 47% acreditam que os cidadãos palestinos de Israel devem ser destituídos de sua cidadania.
Não, Caetano, tocar em Tel Aviv não vai mover o governo israelense ou a maioria dos israelenses nem um centímetro, mas vai ser visto como sua aprovação tácita ao status quo. Sua presença lá será usada como propaganda pela direita e proverá cobertura e apoio moral às políticas ultrajantemente racistas e ilegais do governo israelense.
É um dilema, eu sei, mas se você quer realmente influenciar o governo israelense, você se unirá a nós na linha de piquete do BDS. Nós estamos tendo um efeito poderoso, como você pode ver pela reação deles, os agressores vindo com toda a força para tentar esmagar nossas vozes de dissenso e nos silenciar.
Nós não seremos silenciados, somos fortes, e, juntos, nós podemos ajudar a libertar não só o povo palestino do jugo da opressão israelense, mas também o povo israelense da opressão de seu próprio excepcionalismo e dogma, que é fatal a ambos os povos.
Peço-lhe para não fazer sua participação em Tel Aviv. Em vez disso, tome a oportunidade de visitar Gaza e Cisjordânia e ver por você mesmo o que Sartre e Simone de Beauvoir não viveram para ver. Eu acredito que sua resolução de tocar em Tel Aviv se dissolverá em um mar de lágrimas e arrependimento.
Caetano, eu não conheço você, nunca nos encontramos pessoalmente, mas eu acredito que você tem boas intenções e não carrego nenhum ressentimento. Se você for a Tel Aviv, apesar de nossos apelos sinceros, e se você visitar Gaza ou os territórios ocupados, você pode muito bem ter uma epifania. Se você o fizer, por favor, nos procure, a todos nós, não só nas comunidades palestinas e judaicas, mas todos nós em solidariedade no Brasil e em outros lugares, todos nós no BDS por todo o mundo trabalhando por justiça e direitos iguais na Terra Santa. Nós iremos abraçá-lo.
Eu lhe agradeço de novo por se juntar a essa conversa. Por favor, vá e veja as coisas por si mesmo, mas sem se apresentar lá, sem cruzar a linha de piquete do boicote palestino. Talvez a UNRWA (agência da ONU para os refugiados palestinos) possa ajudar, eles certamente me ajudaram quando eu estava procurando a realidade. Vá e veja por você mesmo, você não terá que usar sua imaginação. A realidade é devastadora para além de qualquer coisa que você possa imaginar. Obrigado,
Seu colega,
Roger Waters
*Imagem em destaque: Palestinos entre os destroços de suas casas destruídas por ataques israelenses no norte da Faixa de Gaza (UN Photo/ Shareef Sarhan/Flickr)
Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar » (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.