Palestina: Freud anteviu a catástrofe
“Freud aceitava dificilmente a idéia de um Estado judaico viável, pois tal Estado feito por e para os judeus não poderia ser, no seu entender, um Estado secular”.
No século XX, a história do povo palestino é uma sucessão de expulsões de sua terra original e de massacres de aldeias pelos judeus que foram imigrando para a Palestina, ainda sob mandato britânico, motivados pelo sionismo.
O historiador israelense Ilan Pappé escreveu uma obra magistral sobre a expulsão dos palestinos : « Le nettoyage ethnique de la Palestine » (Ed. Fayard), que mostra como a instalação dos judeus e a criação de Israel traziam a lógica da limpeza étnica da Palestina.
O Plano da ONU de Partilha da Palestina, de novembro de 1947 – que previu um território para o futuro Estado de Israel e outro para o futuro Estado Palestino – tinha como objetivo fazer uma divisão da antiga Palestina sob mandato britânico para satisfazer as aspirações do povo judeu, « sem prejudicar os direitos civis e religiosos das coletividades não-judaicas existentes na Palestina », como assegura Lord Balfour, ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, em 1917, em carta a Lord Rothschild, representante da comunidade judaica britânica.
Segundo o historiador israelense Schlomo Sand, a Declaração Balfour – como ficou conhecida a carta – « é uma declaração de um colonialista que dá um presente que não lhe pertence ».
A ocultação do « problema palestino” – como o Ocidente passou a chamar a violência da ocupação dos territórios palestinos da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental, desde 1967 – tentou apagar o verdadeiro apartheid que Israel instalou no território israelense, onde 20% da população é constituída de árabes que têm a nacionalidade israelense e não gozam dos mesmos direitos dos judeus.
Na Cisjordânia ocupada, o sistema de controle da população palestina pelo exército é brutal, como todo sistema colonial de ocupação.
Na Cisjordânia, depois de 7 de outubro, 111 palestinos já foram assassinados por colonos e pelo exército de ocupação israelense.
A guerra desencadeada pelo Hamas dia 7 de outubro deste ano trouxe de volta o « problema palestino » que tinha sido ocultado pelos famosos « Acordos de Abraão », concebidos pela administração Trump para normalizar as relações de Israel com os países árabes.
No texto que segue, publicado em 2017 no site « Carta Maior », comento a famosa carta de Freud, na qual ele se mostra cético quanto à instalação do povo judeu na Palestina.
A História não desmentiu sua intuição.
*** Pelo que vemos se desenhar no horizonte com a nova aliança Trump-Netanyahu – que no encontro de ontem, em Washington, prepararam o mundo para o fim do sonho de criação do Estado Palestino – a caixa de Pandora está prestes a ser aberta.
Em Israel, uma multidão de judeus fundamentalistas messiânicos prega a demolição da Mesquita de Al-Acqsa, em Jerusalém, para a construir no local o novo Templo de Salomão.
Ora, essa mesquita é o terceiro lugar mais sagrado do Islã e foi construída no século VII, onde Maomé teria sido arrebatado ao céu.
O roteiro do apocalipse pode estar começando a ser escrito, uma vez que os países muçulmanos não vão ver a destruição da mesquita Al-Acqsa de braços cruzados. Sem falar do projeto de Trump de transferir a embaixada americana para Jerusalém. Como se sabe, a parte Leste da cidade, hoje ocupada por Israel, seria a capital do sempre adiado Estado Palestino.
Freud – que manteve uma correspondência com Einstein sobre a guerra e as pulsões que levam os homens a matar e exterminar seus semelhantes – nunca defendeu o sionismo.
Ao contrário, manifestou-se contra a criação de um Estado para os judeus na Palestina. Uma carta na qual ele expressa claramente sua pouca simpatia pelo projeto sionista foi escondida deliberadamente durante décadas pelos defensores da causa sionista.
As cartas de Freud são um capítulo à parte na sua obra. A maior parte delas é conhecida e estudada exaustivamente. Um terço das cartas, classificadas como confidenciais por seus descendentes e herdeiros, faz parte do “Arquivo Freud” e encontra-se na Biblioteca do Congresso, em Washington.
A carta em que Freud faz restrições ao sionismo foi escrita em 26 de fevereiro de 1930 e endereçada a Chaim Koffler, membro da Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina (Keren Hayesod). Koffler havia pedido a Freud, como a outros intelectuais judeus, um texto de apoio à causa sionista.
Traduzida por Jacques Le Rider para o francês, ela foi publicada pela revista Le Nouvel Observateur em dezembro de 2004, depois de ter sido revelada pelo jornal italiano Corriere della Sera, em julho de 2003. Em 1978, fora citada em inglês num artigo dedicado a Freud e a Herzl e, em 1991, depois de ter sido mencionada em uma revista semanal argelina para mostrar que Freud não tinha simpatia pelo sionismo, ela foi finalmente traduzida em inglês pelo psicanalista americano Peter Loewenberg, para provar que Freud fora vencido pela História.
Nenhum olho humano deve ler essa carta
O texto da carta mostra o quanto Freud era cético em relação ao projeto sionista de reinstalação dos judeus na Palestina. Por isso mesmo, ela foi cuidadosamente escondida por tanto tempo para cumprir a promessa de Abraham Schwadron a Koffler de que “nenhum olho humano a veria”. Dada a autoridade moral do autor, a carta poderia ser uma pedra no caminho dos que construíam o projeto sionista.
Em um dos trechos, Freud diz: “não penso que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico”. Como lembra a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, Freud combatia todas as formas de religião, inclusive o judaísmo. “Ele aceitava dificilmente a idéia de um Estado judaico viável, pois tal Estado feito por e para os judeus não poderia ser, no seu entender, um Estado secular”.
No final da carta, Freud fala do sionismo como de “uma esperança injustificada” e diz que não se sente capaz de exercer o papel de consolador de um povo “perturbado” por essa esperança.
Eis o texto que traduzo para o português a partir da tradução francesa de Le Rider:
Viena, 19 Berggasse,
26 de fevereiro de 1930.
Senhor Doutor,
Não posso fazer o que o senhor deseja. Minha dificuldade em despertar o interesse do público por minha personalidade é impossível de superar e as circunstâncias críticas atuais não me parecem favorecer essa empreitada. Quem quer influenciar o maior número de pessoas deve ter algo de empolgante a dizer, e isso meu julgamento pouco entusiasmado pelo sionismo não me permite. Tenho com certeza os melhores sentimentos de simpatia pelos esforços consentidos livremente, sinto-me orgulhoso pela nossa universidade de Jerusalém e me regozijo da prosperidade dos estabelecimentos dos nossos colonos. Mas, por outro lado, não penso que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico nem que o mundo cristão, como o mundo islâmico, possam um dia estar dispostos a confiar seus lugares santos aos cuidados dos judeus. Me pareceria mais sensato fundar uma pátria judaica sobre um solo não conotado historicamente; decerto, sei que para um objetivo tão racional, jamais seria possível suscitar a exaltação das massas nem a cooperação dos ricos. Admito também, com pesar, que o fanatismo irrealista de nossos compatriotas tenha sua parte de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes. Não posso ter a mínima simpatia por uma piedade mal interpretada que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional e por causa dela desafie os sentimentos dos habitantes da região.
Julgue o senhor mesmo se, com um ponto de vista tão crítico, eu posso ser a pessoa certa para fazer o papel de consolador de um povo perturbado por uma esperança injustificada. Ass : Freud.
Dezessete anos depois de escrita a carta, o Estado de Israel deixou de ser um sonho dos sionistas para se tornar realidade.
Lugares santos no centro da querela
Mas quem pode dizer que Freud não anteviu a catástrofe?
Elisabeth Roudinesco assinala que “Freud teve a intuição magistral de que a questão da soberania dos lugares santos estaria um dia no centro de uma querela quase insolúvel, entre os três monoteísmos. Ele temia, com razão, que “uma colonização abusiva acabasse por opor, em torno de um pedaço de muro idolatrado, os árabes fanáticos e anti-semitas aos judeus fundamentalistas e racistas”.
Num magnífico artigo publicado no jornal « Le Monde » de 18 de agosto de 2006, o filósofo Etienne Balibar e o físico Jean-Marc Lévy-Leblond percorrem a história de Israel para analisar a atualidade política do Oriente Médio e todas as ameaças que pesam sobre o mundo, em função do barril de pólvora em que se transformou a região.
No terceiro parágrafo do brilhante texto, os dois intelectuais escrevem: “A segunda guerra mundial foi um ponto de ruptura: ela trouxe o enfraquecimento do império britânico e levou à Palestina centenas de milhares de pessoas que escaparam à exterminação dos nazistas. O que conferiu ao Estado de Israel, criado pela “partilha” de 1947, uma nova legitimidade moral, sancionada pelo reconhecimento internacional quase unânime e pela admissão às Nações Unidas. O que não impede que o Estado que se proclamou como “Estado judaico” (apesar da presença em seu seio de uma grande minoria árabe muçulmana e cristã) e se deu por missão reunir no seu solo o maior número possível de judeus religiosos ou leigos do mundo inteiro (imigrantes recentes ou assimilados há muitos anos em seus países respectivos, vindos de culturas diversas e sendo vítimas de anti-semitismo em graus muito diferentes) tenha nascido na guerra e mesmo no terrorismo. Isso por causa da hostilidade irredutível (ao menos até a iniciativa do presidente Sadat) dos Estados árabes que o cercavam, por causa do próprio nacionalismo e panarabismo ascendente que os levavam a recusar a instalação de Israel na Palestina, depois a desejar sua destruição e padecer sua intenção simétrica, mais ou menos confessada, de expulsar a população árabe autóctone. »
Balibar e Lévy-Leblond continuam: “A frase de Golda Meir: ‘uma terra sem povo para um povo sem terra’ – em total contradição com a realidade – trazia em si uma lógica de eliminação, que continha em germe os elementos da catástrofe atual. Essa lógica de eliminação foi imediatamente denunciada por certos intelectuais (como Einstein, Buber, Arendt ou o fundador da universidade hebraica de Jerusalém, Judah Magnes)”.
Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira, 2016)», indicado para o Prêmio Jabuti e para o Prêmio Biblioteca Nacional, em 2017.
Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar » (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.