A crise é crônica e está fragmentando a sociedade na Argentina
BUENOS AIRES – É uma segunda-feira de manhã em abril na Rua Florida, no coração da capital da Argentina, e as pessoas reúnem-se em frente à vitrine de uma loja de eletrodomésticos para assistir a uma cena de violência de rua numa televisão que não pertence a um filme ou a uma série.
É ao vivo e acontece a poucos quilômetros, nos subúrbios pobres de Buenos Aires: colegas de um motorista da cidade morto durante um assalto atiram pedras no Ministro da Segurança da província de Buenos Aires, Sergio Berni, que tinha vindo para falar e oferecer a sua solidariedade em frente às câmeras.
Ninguém parece surpreendido entre os funcionários do escritório na audiência e vários não disfarçam uma certa satisfação por outras pessoas comuns terem decidido tomar medidas contra um representante da liderança política, alvo de um mal-estar generalizado, de acordo com todas as sondagens de opinião.
“Isto tinha de acontecer um dia destes. Os políticos recebem uma fortuna por não fazerem nada e nós trabalhamos o dia todo para ganhar uma mixaria… E ainda por cima, você vai para a rua e eles te matam para roubar”, comenta um dos telespectadores. Os restantes olham com aprovação.
O cenário reflete o clima de cansaço e tensão em amplos setores da sociedade argentina, no meio de uma longa e profunda crise económica, que nos últimos cinco anos deteriorou persistentemente o poder de compra dos salários, devido a uma inflação que ocasionalmente dá descanso por um par de meses, só para voltar mais tarde com mais força.
Se em 2022 havia lugar para um optimismo modesto, devido a uma recuperação da atividade económica na pandemia pós-Covid-19, hoje parece distante, pois o início deste ano trouxe notícias que refletem a magnitude da degradação social neste país latino-americano.
Em 31 de março, o número oficial da pobreza para a segunda metade de 2022 foi divulgado, atingindo 18,1 milhões de pessoas, ou 39,2% da população, neste país do cone sul-americano de cerca de 46 milhões de habitantes, de acordo com os números mais atualizados.
Como 2021 fechou com 37,3%, isto significa que num ano um milhão de pessoas foram lançadas na pobreza, apesar de a economia, graças à recuperação da atividade no período pós-pandêmico, ter crescido 4,9%, acima da média da região, segundo a Comissão Económica para a América Latina e as Caraíbas (CEPAL).
Mas estes dados já são antigos e os de 2023 serão piores devido à aceleração da inflação, o que é surpreendente mesmo pelos padrões da Argentina, um país bem acostumado a esta doença.
O aumento de preços em fevereiro atingiu 6,6%, excedendo a taxa anual de 100% (de março de 2022 a fevereiro de 2023) pela primeira vez desde 1991.
Talvez o pior dado seja que os preços cresceram muito mais do que a média, 9,8%, em alimentos, o item em que os menos abastados gastam quase todo o seu dinheiro.
A este quadro deve acrescentar-se uma seca extrema que afectou a colheita de soja e outros grãos, que são o maior produtor de divisas da Argentina. As estimativas de várias organizações públicas e privadas sobre quanto dinheiro o país irá perder em exportações este ano vão de 10 a 20 mil milhões de dólares.
Esta é uma das razões pelas quais o Banco Mundial, que tinha previsto um crescimento de 2% da economia argentina este ano, reviu as suas estimativas no início de Abril e concluiu que não haverá crescimento económico em 2023.
Cozinhas de sopa
A cerca de 15 quilômetros do centro de Buenos Aires, no bairro de Loyola, os dados frios da economia tornam-se casas precárias separadas por corredores estreitos, pilhas de lixo nas esquinas das ruas, cães magros passeando entre crianças que brincam na rua.
Num reboque de caminhão com a publicidade de um político em campanha, um dentista extrai dentes gratuitamente para os residentes locais, que lutam cada vez mais para ter acesso aos serviços de saúde.
O bairro fica em San Martín, um dos municípios do chamado Conurbano, que rodeia Buenos Aires. Estes subúrbios acolhem 11 milhões de pessoas (quase um quarto da população total do país), e a taxa de pobreza é de 45%, o que é mais elevada que a média nacional.
“Nunca vi o que está se passando hoje. Antes, só os homens costumavam sair de cartonera (à procura de coisas valiosas no lixo), porque se pensava que a rua não era para as mulheres. Mas hoje em dia as mulheres também saem”, diz à IPS Luis Ángel Gómez, 58 anos, nascido e criado no bairro, que faz trabalhos de pedreiro e outros biscates.
De facto, os carrinhos dos cartoneros, que antes só eram vistos nos bairros mais densamente povoados de Buenos Aires ao pôr-do-sol, quando os gerentes dos edifícios põem os sacos de lixo para fora, são agora vistos por toda a cidade e a qualquer hora.
Gómez tem gerido uma sopa dos pobres em Loyola durante 10 anos, onde fornece almoço três vezes por semana e lanches duas vezes por semana a mais de 70 crianças e adolescentes. É uma sala com telhado de lata, um par de fogões a gás e fotografias de crianças sorridentes como decoração.
“O município dá-me alguns bens: 20 quilos de carne picada e dois caixotes de frango por mês. Depois disso, cozinho com donativos”, diz Gómez. “Esta caixa foi-me dada pela empresa que recolhe o lixo no município”, acrescenta ela, mostrando caixas de leite de longa duração.
A atividade da cantina, diz Gómez, não é suficiente para cobrir as necessidades dos vizinhos: “A minha preocupação sempre foi dar às crianças um futuro melhor e alimentei-as até terem 14 ou 15 anos de idade. Hoje também tenho de ajudar os pais e os avós”, comenta ele.
A classe média no slide
A crise acelerou desde 2018 e aprofundou-se com a pandemia, mas a Argentina tem estado num período de estagnação, com baixo crescimento económico e muito pouca criação formal de emprego privado há mais de uma década.
Um trabalho apresentado recentemente pela Universidade Católica Argentina (UCA) revela que desde 2010 o acesso à alimentação e saúde e ao emprego e segurança social piorou, apesar da assistência social, atingindo cinco milhões de lares de um total de 12 milhões.
“Há uma crescente polarização social na Argentina, com as classes médias a ficarem cada vez mais fracas. Cada crise deixa uma parte da sociedade fora do sistema”, disse à IPS o sociólogo Agustín Salvia, diretor do Observatório Social da Dívida Social Argentina da UCA, que é considerado um ponto de referência no país.
Salvia explicou que a melhoria da atividade económica após a saída da covid-19 permitiu a criação de novos empregos até ao terceiro trimestre do ano passado, mas que a pobreza aumentou da mesma forma porque eram quase todos empregos precários e de baixos salários.
“O ciclo de recuperação pós-pandêmico terminou. Desde o último trimestre de 2022 não houve mais criação de emprego, o que, somado à inflação, fará crescer a pobreza em 2023”, acrescenta Salvia.
O especialista afirma que a pobreza estrutural ou crónica costumava ser de 25 ou 30% na Argentina, mas agora estabilizou nos 40% ou 45%, com uma deterioração marcada pela estagnação do emprego de qualidade, o que empurrou muitas famílias de classe média para a pobreza.
ED: EG
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